ERA FELIZ E NÃO SABIA...

Eu reclamava muito de como era minha vida, minha mãe e meus avós faziam tudo que eu queria, investiam tempo e dinheiro em meu lazer, porém nunca era o suficiente. Depois de reclamar a todo o momento de tudo o que falavam e faziam, percebi que eles cansavam e não respondiam mais.

Meu avô um dia saiu de casa para comprar um jogo que eu reclamei por semanas por não ter, como que todos meus amigos tinham e eu não?

Ele saiu quase chorando, pois, não sabia se teria dinheiro suficiente para pagar. Ligou o carro, buzinou, eu olhei, ele abanou em minha direção e foi a última vez que eu o vi.

Minha avó ficou desesperada a procura dele, minha mãe não tinha tempo de ajudar, precisava trabalhar para realizar meus desejos. Ela saia de casa antes de eu acordar e voltava quando eu já estava dormindo.

Depois de algumas pistas sobre o paradeiro de meu avô, minha avó foi até a delegacia, o delegado havia ligado para pedir algumas informações, pelo que sei. Ao saber que havia acontecido, ela teve um surto psicótico, saiu correndo em direção de uma ponte e não foi mais vista, a história eu sei porque me contaram.

Minha mãe que eu via pouco, no dia seguinte do ocorrido com minha avó, saiu para trabalhar no mesmo horário de sempre, beijou minha testa e saiu. Eu realmente achei estranho aquela mulher ir trabalhar após a mãe ter desaparecido, mas de verdade, não demorou muito para me distrair.

Fiquei sozinho, joguei vídeo game, liguei o computador, comi muitos doces e fiquei acordado a sua espera, mas ela não voltou. Tentei ligar para o telefone dela, mas dava sempre na caixa de mensagens, liguei para minha tia que então foi a polícia. Pelo que soube, depois de algumas perguntas na vizinhança e amigos, perceberam que era mais um caso estranho, sem explicação, precisariam de mais tempo.

O conselho tutelar então me enviou para casa da minha tia, não era tão próxima da família, visitava uma ou duas vezes ao ano. Era uma senhora solteira, não tinha filhos e isso me alegrava, pois, pensei que enfim teria tudo que sempre quis.

Já no primeiro dia, percebi que não sentia falta dos sumidos, dentro de mim, eles mereciam o que havia acontecido, não faziam tudo que eu queria, então por que existiam? Ora, eu era o que mais importava na vida deles, sempre me diziam isso.

Na primeira refeição que fiz na casa de minha tia, esperava um banquete, mas ela serviu um arroz empaçocado, feijão aguado e um pedaço de carne que consegui apenas chupar o caldo, era tão duro que não consegui mastigar para engolir, deu saudade da comida da minha avó, ela cozinhava muito bem.

Pedi para ver TV, a tia tinha uma bem grande, mas assistia novela mexicana o tempo todo, disse que quando terminasse, ela deixaria eu ver, mas aquilo nunca acabava.

Pedi a senha do Wi-Fi, mas ela nem sabia que se tratava. Perguntei se ela podia comprar um jogo para o meu game, e ela disse que dinheiro não dava em árvore e que se eu quisesse dinheiro deveria trabalhar, mas eu tinha só 12 anos.

Dormi cedo. Acordei imaginando ser um pesadelo, mas não, era tudo verdade. O café da manhã já estava servido, me preparei para comer meus cereais com biscoito recheado, mas havia apenas pão e café. Eu afogava o pão na xicara para ver se conseguia mastigar aquilo que parecia uma pedra e o café tinha tanto açúcar que não consegui engolir.

A minha tia era quase completamente surda, então assistia as suas novelas no nível mais alto da TV, e o pior é que ela dormia com ela ligada, e a partir do segundo dia, eu não conseguia mais dormir, virei um zumbi.

Mais alguns dias se passaram, a comida era sempre a mesma, porém agora o arroz estava pior, tinha gosto de vinagre e sem sal, o feijão não aparecia mais, sobrou apenas o caldo e a carne acabou, sobrou apenas as galinhas que ela criava no pequeno pátio da casa e mesmo eu dizendo que sentia fome, ela servia menos. No café, às vezes tinha só o café. Eu não reclamei, tentei suportar calado.

Minha tia era assustadoramente doce e como eu não reclamava, ela julgava que estava tudo certo. Comecei a pedir para Deus me levar também; queria sumir, ir ao encontro da minha família, eu era feliz e não sabia.

Quando eu já estava em completo desespero, vi minha tia falando num celular que eu nem sabia que existia. Ela falava feliz que eu estava sofrendo, entendi que ela estava fazendo tudo para me maltratar.

Resolvi fugir daquela casa do mal, iria à procura de minha mãe e de meus avós. A noite quando ela se deitou para assistir à novela eu preparei tudo, juntei algumas roupas dentro de uma sacola e esperei que ela apagasse, mas ela não dormiu, quando toquei na porta, ela gritou mandando eu deitar. Não tinha o que fazer, era um refém. Dormi.

No outro dia, quando acordei no sofá da sala, onde agora era minha cama, percebi toda minha família em minha volta, parecia uma miragem. Minha avó estava com os olhos cheios de lágrimas, meu avô sorria tímido e minha mãe estava de braços abertos para me abraçar. Esfreguei os olhos, belisquei meu braço acreditando que estava sonhando, mas não, eles estavam ali.

Fizeram tudo aquilo para eu entender e dar valor a tudo que eu tinha. De uma forma bem estranha, psicótica e completamente louca, confesso. E sim, com certeza, entendi!

A felicidade por tê-los de volta foi tanta, que nem ao menos deu tempo para sentir raiva do que fizeram comigo.

Percebo agora que todos os ensinamentos da minha mãe, os conselhos de meu avô e principalmente a comida de minha avó era tudo que eu precisava para ser feliz.

Hoje eu apenas agradeço a família que eu tenho, loucos, completamente loucos, mas loucos de amor!