Reminiscências
O Sr. S. não saia muito de casa desde a aposentadoria, ao que passava a solidão dos dias lendo livros, trocando correspondências e esperando o próximo dia. Na verdade, muitas vezes ficava entediado e se punha a observar a vivacidade do mundo lá fora se modificar conforme mudavam as estações.
Em certo dia de monotonia, quando ele já não imaginava receber visitas, a campainha denunciou a chegada de alguém. Ao atender o chamado não se surpreendeu por ver que se tratava do carteiro, que lhe trazia algumas cartas. O que o espantou foi haver entre estas um convite incomum. Se tratava apenas de um curto bilhete invitando-o a ir ao parque e indicando em que ponto e que horas deveria encontrar o remetente ignoto.
Prontamente se arrumou para ir ao dúbio encontro, porém, ao sair se viu impedido no mesmo momento por uma dúzia de pessoas sorrindo à sua porta, alguns amigos e parentes próximos carregando um bolo e felicitações. Não fazia ideia de que se tratava, seria possível ter esquecido o próprio dia natalício?
Não houve saída, teve que recebê-los a contragosto, sempre com o olhar no relógio para não perder a hora do curioso encontro. E apesar da boa surpresa que tivera, estava absorto em descobrir do que se tratava o convite. Quando se viu livre deles, agradecendo carinhosamente a atenção de todos, buscou apressado um táxi.
A cada minuto sua apreensão aumentava. Podia pensar em várias razões para alguém lhe fazer sair de sua rotina, mas não tinha certeza de nada.
Quando chegou ao ponto combinado não encontrou uma pessoa a lhe esperar, mas ainda faltavam 20 minutos, então esperou e esperou. Sua ansiedade se tornava impaciência e fadiga a cada minuto. Mas, esperou e esperou, até que chegou uma mulher e parou perto dele. A estranha, de pele escura e olhos âmbar, que de alguma forma o deslumbravam, o encarava como se esperasse dele o reconhecimento merecido a alguém com quem se dividiu uma vida. Então, como sabendo que a memória não o iluminaria nesse momento, ele se ergueu e perguntou:
"Eu a conheço, senhora?”
"Em outra época conhecia, ambos conhecíamos. Mas creio que agora somos duas pessoas moldadas pelos anos, diferentes de quem éramos e diferentes de quem queríamos ser." Enquanto falava, ela demonstrava uma certa melancolia, como revivesse épocas antigas em suas lembranças.
"Bom, tais palavras não me dizem o que eu gostaria de saber. Se foi você que me chamou a vir aqui, eu gostaria de saber ao menos porque se atrasou tanto? Estava já disposto a ir embora.”
"Eu queria saber se a sua determinação continuava a mesma. Sua paciência me diz que sim. Não se lembra mesmo de mim, Edgar?”
"Infelizmente não... Por que me chama pelo primeiro nome?”
"Porque foi assim que você se apresentou a mim, quando estudávamos em C.T. Naquela época você me chamava de Lótus.”
Ao ver que o homem não se recordava, ela se entristeceu. E Sr. S. teve medo de magoá-la por isso, mas não havia o que fazer, sua memória havia se obscurecido com a idade. Para quebrar aquele silêncio que se instaurava ele desculpou-se:
"Sinto muito por isso. Os anos destroem um pouco de nós ao passar, e nessa jornada ficaram muitos fragmentos meus. Como você pode ver, estou quebrado e velho." Sorriu para ela com máximo de esforço que pôde.
"Está tudo bem." Ela sorriu, resignando-se. "Talvez seja melhor assim, não te torturarei para evocar antigos fantasmas. Espero não ter te incomodado, quem sabe possamos nos ver novamente." Entregou a ele uma foto com uma mensagem. "Bom esse é o meu presente, feliz aniversário.”
Então a misteriosa senhora seguiu seu caminho, enquanto ele, ficando para trás sozinho no meio do parque, sentia-se cada vez mais intrigado. Na foto ele reconhecia seu próprio rosto, como era outrora. Estava ao lado de uma jovem de pele escura e cabelos cacheados. Por tais traços ele reconheceu ser, provavelmente, essa jovem a mesma senhora com quem conversava há pouco. Mas tal presente não lhe trouxe alguma faísca de lembrança, sua memória persistia ofuscada.
O texto, assinalado por Lótus atrás da foto, apenas dizia: “Assim com a mesma certeza que o hoje se tornará ontem, o amanhã virá usurpar a posição do presente dia. De tal forma vivem os homens, esperando o dia que vem e abandonando, mas nem sempre, seu passado. Tudo isso já aconteceu antes, caro amigo.”
Perplexo, o homem voltou para casa, não saberia dizer o que aquela mensagem deveria significar para si. Seria preciso, como disse aquela mulher, reavivar antigos fantasmas para despertar suas memórias?
(Quem sabe haja uma resposta para essas perguntas, em algum lugar do passado ou do futuro).