A PRAIA DESERTA (o caso das caixas misteriosas)
- Que calor insuportável! Não aguento mais essa pasmaceira...
Ed Ronaldo estava cansado da quarentena. Desde o espetacular desvendamento do caso das bonecas decapitadas, nada havia acontecido. Era demais para seu intelecto! Em momento de fraqueza foi visto circulando sem máscara pelo centro histórico de Pedra do Monte (MG). Obviamente foi multado em trezentos reais.
- Ed juro que é a última vez! - Diana Helena gritou alto, indignada, ao pagar o delito. - Ou você arranja uma ocupação ou juro que....
O celular Samsung A7 2017 emprestado por Diana tilintou, tocando o tema de Missão Impossível (na verdade havia perdido seu iPhone 11 para os extraterrestres no Morro do Querosene e tinha que se contentar com este aparelho intermediário).
- "Ed, é seu primo Uatson; mudei aqui pra Ipojuca, em Pernambuco. Tô aqui trabaiano de salva-vida. Lembra de mim, véi?"
- Lógico! Você não me pagou aqueles duzentos mangos da aposta no UFC, véi!
Diana Helena ouviu e lembrou-se de cobrar Ed também aquele empréstimo de 2017. A coitada não sabia mais o que fazer, já que não podia mais renovar o consignado da Caixa. Não fosse sua paixão... Afinal, quem ama não mata!
- "Ehhh ... bem... Óia aqui Ed, tô precisano de sua ajuda! Soube que ocê é um grande detetive e por aqui umas coisa bem estranha anda aconteceno. Num posso falá. Meus crédito cabô. Ocê tem que vim pra cá!"
Ed Ronaldo sabia que essa hora chegaria. Tinha se preparado a vida inteira para isso. O interior de Minas já não comportava mais a fama e o talento de que era possuidor. Sem pestanejar dirigiu-se à sua namorada:
- você ainda tem os pontos do cartão de crédito?
Aterrissou no Recife, munido de suas máscaras Lupo, seu iPad Mini 4 e seu relógio espião russo (logo haveria de obter recursos para repor seu arsenal tecnológico de espionagem, pensou...). Não se furtou a usar o álcool Asseptgel 70%.
- Posso lidar com tudo, menos com o invisível!
Seu amigo Uatson já o esperava:
- "Ed ocê num mudô nada cara! Continua feio e magrelo."
O trajeto de 1 hora e meia até a Praia de Muro Alto foi atribulado: o Fiat 147 C Spazio a álcool 1985 de Uatson engasgava mais que o nadador César Cielo ao ganhar uma medalha.
- Onde eu vim amarrar minha ...
Subitamente o carro parou. Uatson desceu e logo estava ao longe, na orla da praia. De um salto Ed já estava ao seu lado, a contemplar uma estranha visão. O mineirinho radicado em Pernambuco desandou a tagarelar:
- "Óia Ed, já encontramo umas 18 caixa dessa nas areia das praia de Ipojuca; No Nordeste todo já acharam umas 200! Põe o dedo procê vê; parece meio mole; muito véia; todo muno tá com medo; pesa uns 100 kilo; tamo achano que pode sê contrabano; a polícia leva, mas logo vem mais, na maré; eles intão largaram pra lá! Tamo preocupado; todo muno que mora perto da praia tá desconfiano; as orla tá vazia por causa da quarentena; será que é lixo tóchico?"
Foi então que sua invejável capacidade de observação se fez notar. Divisou num piscar de olhos "Product of French Indochina", abaixo dos mariscos brancos agarrados ao fardo. As 8 aulas via web "Investigadores do Inglês" falaram mais alto.
- Uatson, você vê, mas não observa, meu caro!
Motivo mor de ter se tornado autodidata, Ed conservava vários interesses, que iam do game Fortnite: Save the World até compêndios de história do mundo.
- Macacos me mordam, se já não vi essas caixas antes!
Sua prodigiosa memória passou a processar os recônditos de sua mente. Por cerca de 18 horas nada comeu. O jejum estimulava suas células cinzentas... Indochina... Entre a Índia e a China?... Lugar mal... Malásia?... Caixas emborrachadas? À deriva no mar? Madame Volpini... Professora de história do ginásio... Manaus... Amazonas... Ciclo da borracha... Biopirataria...
- "Ôooo Ed, sossega rapaiz! Tá pareceno um zumbi, andano pra lá e pra cá... Meu barraco é pequeno... Assim nóis num dorme!"
- Eureka! - exclamou bem alto Ed - Uatson quase caiu da cama...
Todo aspirante a detetive de sucesso se caracteriza por uma habilidade em especial. A memória fotográfica de nosso protagonista ainda iria ajudá-lo e muito em sua jornada. A imagem oriunda das aulas de Madame Volpini emergiu definitiva:
- os fardos de borracha da Amazônia, roubados por piratas ingleses, lá pelos idos de 1900!
- Uatson, algum navio europeu naufragou por aqui, nos últimos 120 anos?
O pacote de internet já era ruim em Minas; imaginem em roaming! Ed logo desistiu e foi atrás dos pescadores... E confirmou sua teoria: um navio alemão havia afundado ali perto, em 1944, na grande guerra!
- Alemão? Mas...
Logo se ligou, afinal sua capacidade associativa era incomensurável.
- Mas é claro! A borracha amazônica foi levada pelos ingleses para a Malásia e depois surrupiada pelos alemães, aliados dos japoneses na segunda guerra!
- Eis a verdade Uatson: ladrão que rouba ladrão...
As comunidades pescadoras das praias da região de Ipojuca estavam em situação difícil devido à pandemia e ausência de turistas. Ao serem informados da natureza emborrachada das caixas repletas de látex, se organizaram e as repassaram para beneficiamento por cooperativas da região: pneus, sandálias e até preservativos surgiram. A devolução dos pacotes vinda do fundo do mar até que veio em boa hora. A caça às caixas misteriosas ajudou a despoluir as praias e trouxe algum recurso financeiro aos moradores, em momentos especialmente difíceis. Nosso investigador até ganhou dos pescadores uma sandália de borracha vulcanizada, que ainda lhe seria muito útil.
Enquanto voava de volta para Minas, Ed Ronaldo se imaginava um barão dos seringais da Amazônia.
- Se eu estivesse lá a história seria outra. Estaríamos exportando pneus até hoje. Que Dunlop nem Goodyear que nada! Esses ingleses...
O Cãozinho Bilau latiu esfuziante ao receber seu vizinho amigo, logo que o viu subindo a colina da ruela inclinada em que moravam. Mas achou estranho aquele cheiro de borracha salgada...
Obs 1: história fictícia, com personagens fictícios, baseada na notícia "Caixas misteriosas voltam a aparecer em praias de Ipojuca, no litoral de Pernambuco" - publicada no G1 PE, em 29/06/20, às 15h40min.
Obs 2: o ciclo da borracha Amazônica (1879-1912) alavancou o crescimento de Manaus e Belém e trouxe grande prosperidade aos barões da borracha da época. Mas foi bruscamente encerrado pela concorrência do sudeste asiático, num dos maiores casos de biopirataria da história: em 1876, o inglês Henry Vickham conseguiu fugir do país carregando 70 mil sementes roubadas de Hevea brasiliensis (seringueiras nativas da Amazônia) escondidas em 50 cestos, levando-as para a Inglaterra Vitoriana. As sementes foram levadas às colônias inglesas na Ásia e a produção de látex por lá iniciou-se em 1912, de forma mais organizada, pondo fim à riqueza brasileira. No meu texto lancei mão da licença poética, transformando o produto do roubo em fardos de látex, a fim de se encaixar no contexto das caixas encontradas em Pernambuco.
Obs 3: inspirado em histórias clássicas de detetives, onde aqui rendo homenagem a Conan Doyle, Agatha Christie, Jessie Cole e Luis Fernando Verissimo.
- Que calor insuportável! Não aguento mais essa pasmaceira...
Ed Ronaldo estava cansado da quarentena. Desde o espetacular desvendamento do caso das bonecas decapitadas, nada havia acontecido. Era demais para seu intelecto! Em momento de fraqueza foi visto circulando sem máscara pelo centro histórico de Pedra do Monte (MG). Obviamente foi multado em trezentos reais.
- Ed juro que é a última vez! - Diana Helena gritou alto, indignada, ao pagar o delito. - Ou você arranja uma ocupação ou juro que....
O celular Samsung A7 2017 emprestado por Diana tilintou, tocando o tema de Missão Impossível (na verdade havia perdido seu iPhone 11 para os extraterrestres no Morro do Querosene e tinha que se contentar com este aparelho intermediário).
- "Ed, é seu primo Uatson; mudei aqui pra Ipojuca, em Pernambuco. Tô aqui trabaiano de salva-vida. Lembra de mim, véi?"
- Lógico! Você não me pagou aqueles duzentos mangos da aposta no UFC, véi!
Diana Helena ouviu e lembrou-se de cobrar Ed também aquele empréstimo de 2017. A coitada não sabia mais o que fazer, já que não podia mais renovar o consignado da Caixa. Não fosse sua paixão... Afinal, quem ama não mata!
- "Ehhh ... bem... Óia aqui Ed, tô precisano de sua ajuda! Soube que ocê é um grande detetive e por aqui umas coisa bem estranha anda aconteceno. Num posso falá. Meus crédito cabô. Ocê tem que vim pra cá!"
Ed Ronaldo sabia que essa hora chegaria. Tinha se preparado a vida inteira para isso. O interior de Minas já não comportava mais a fama e o talento de que era possuidor. Sem pestanejar dirigiu-se à sua namorada:
- você ainda tem os pontos do cartão de crédito?
Aterrissou no Recife, munido de suas máscaras Lupo, seu iPad Mini 4 e seu relógio espião russo (logo haveria de obter recursos para repor seu arsenal tecnológico de espionagem, pensou...). Não se furtou a usar o álcool Asseptgel 70%.
- Posso lidar com tudo, menos com o invisível!
Seu amigo Uatson já o esperava:
- "Ed ocê num mudô nada cara! Continua feio e magrelo."
O trajeto de 1 hora e meia até a Praia de Muro Alto foi atribulado: o Fiat 147 C Spazio a álcool 1985 de Uatson engasgava mais que o nadador César Cielo ao ganhar uma medalha.
- Onde eu vim amarrar minha ...
Subitamente o carro parou. Uatson desceu e logo estava ao longe, na orla da praia. De um salto Ed já estava ao seu lado, a contemplar uma estranha visão. O mineirinho radicado em Pernambuco desandou a tagarelar:
- "Óia Ed, já encontramo umas 18 caixa dessa nas areia das praia de Ipojuca; No Nordeste todo já acharam umas 200! Põe o dedo procê vê; parece meio mole; muito véia; todo muno tá com medo; pesa uns 100 kilo; tamo achano que pode sê contrabano; a polícia leva, mas logo vem mais, na maré; eles intão largaram pra lá! Tamo preocupado; todo muno que mora perto da praia tá desconfiano; as orla tá vazia por causa da quarentena; será que é lixo tóchico?"
Foi então que sua invejável capacidade de observação se fez notar. Divisou num piscar de olhos "Product of French Indochina", abaixo dos mariscos brancos agarrados ao fardo. As 8 aulas via web "Investigadores do Inglês" falaram mais alto.
- Uatson, você vê, mas não observa, meu caro!
Motivo mor de ter se tornado autodidata, Ed conservava vários interesses, que iam do game Fortnite: Save the World até compêndios de história do mundo.
- Macacos me mordam, se já não vi essas caixas antes!
Sua prodigiosa memória passou a processar os recônditos de sua mente. Por cerca de 18 horas nada comeu. O jejum estimulava suas células cinzentas... Indochina... Entre a Índia e a China?... Lugar mal... Malásia?... Caixas emborrachadas? À deriva no mar? Madame Volpini... Professora de história do ginásio... Manaus... Amazonas... Ciclo da borracha... Biopirataria...
- "Ôooo Ed, sossega rapaiz! Tá pareceno um zumbi, andano pra lá e pra cá... Meu barraco é pequeno... Assim nóis num dorme!"
- Eureka! - exclamou bem alto Ed - Uatson quase caiu da cama...
Todo aspirante a detetive de sucesso se caracteriza por uma habilidade em especial. A memória fotográfica de nosso protagonista ainda iria ajudá-lo e muito em sua jornada. A imagem oriunda das aulas de Madame Volpini emergiu definitiva:
- os fardos de borracha da Amazônia, roubados por piratas ingleses, lá pelos idos de 1900!
- Uatson, algum navio europeu naufragou por aqui, nos últimos 120 anos?
O pacote de internet já era ruim em Minas; imaginem em roaming! Ed logo desistiu e foi atrás dos pescadores... E confirmou sua teoria: um navio alemão havia afundado ali perto, em 1944, na grande guerra!
- Alemão? Mas...
Logo se ligou, afinal sua capacidade associativa era incomensurável.
- Mas é claro! A borracha amazônica foi levada pelos ingleses para a Malásia e depois surrupiada pelos alemães, aliados dos japoneses na segunda guerra!
- Eis a verdade Uatson: ladrão que rouba ladrão...
As comunidades pescadoras das praias da região de Ipojuca estavam em situação difícil devido à pandemia e ausência de turistas. Ao serem informados da natureza emborrachada das caixas repletas de látex, se organizaram e as repassaram para beneficiamento por cooperativas da região: pneus, sandálias e até preservativos surgiram. A devolução dos pacotes vinda do fundo do mar até que veio em boa hora. A caça às caixas misteriosas ajudou a despoluir as praias e trouxe algum recurso financeiro aos moradores, em momentos especialmente difíceis. Nosso investigador até ganhou dos pescadores uma sandália de borracha vulcanizada, que ainda lhe seria muito útil.
Enquanto voava de volta para Minas, Ed Ronaldo se imaginava um barão dos seringais da Amazônia.
- Se eu estivesse lá a história seria outra. Estaríamos exportando pneus até hoje. Que Dunlop nem Goodyear que nada! Esses ingleses...
O Cãozinho Bilau latiu esfuziante ao receber seu vizinho amigo, logo que o viu subindo a colina da ruela inclinada em que moravam. Mas achou estranho aquele cheiro de borracha salgada...
Obs 1: história fictícia, com personagens fictícios, baseada na notícia "Caixas misteriosas voltam a aparecer em praias de Ipojuca, no litoral de Pernambuco" - publicada no G1 PE, em 29/06/20, às 15h40min.
Obs 2: o ciclo da borracha Amazônica (1879-1912) alavancou o crescimento de Manaus e Belém e trouxe grande prosperidade aos barões da borracha da época. Mas foi bruscamente encerrado pela concorrência do sudeste asiático, num dos maiores casos de biopirataria da história: em 1876, o inglês Henry Vickham conseguiu fugir do país carregando 70 mil sementes roubadas de Hevea brasiliensis (seringueiras nativas da Amazônia) escondidas em 50 cestos, levando-as para a Inglaterra Vitoriana. As sementes foram levadas às colônias inglesas na Ásia e a produção de látex por lá iniciou-se em 1912, de forma mais organizada, pondo fim à riqueza brasileira. No meu texto lancei mão da licença poética, transformando o produto do roubo em fardos de látex, a fim de se encaixar no contexto das caixas encontradas em Pernambuco.
Obs 3: inspirado em histórias clássicas de detetives, onde aqui rendo homenagem a Conan Doyle, Agatha Christie, Jessie Cole e Luis Fernando Verissimo.