A VELHA DO GUARDA-SONHOS

Velho que é velho tem sempre o que guardar em suas gavetas, em seus cantinhos, em seus baús, muitas das recordações de coisas que outrora vivia.

Dona Guiomar não era diferente. E mais. Ela tinha um guarda-sonho. Um guarda-chuva rosa, rosa, rosinha claro, com coração desenhado, com fitinhas penduradas e brilho em toda parte que havia.

Dona Guiomar era conhecida como a velha do guarda-sonho.

Quando alguém dormia a noite e sonhava com coisas que não sabia entender, corria de manhãzinha à casa da velha e lhe contava com detalhes o sonho sonhado à noite.

A velha Guiomar abria o seu guarda-sonho e recolhia como que um sopro para dentro os sonhos que a ela diziam.

Meu pai foi um desses que ia à casa da velha que guardava sonhos dos outros.

Ele sonhara com uma casa de varanda que entrou no guarda-sonho e a casa nunca existiu.

Minha mãe também confiou seu lindo sonho àquela velha bruxa. Ela sonhara em um dia poder dar a luz a uma filha mulher que a velha guardou no guarda-sonhos e muitos meninos homens minha mãe teve de ter.

Preocupava-me tudo isso, porque depois de contar seus sonhos à velha, as pessoas ficavam outras. Mudadas. Tristes. Transformadas.

Meu pai batia na gente sem a gente saber por quê...

Minha mãe chorava dia e noite sem ter mais na vida o prazer de viver...

E todas as outras pessoas que pela casa da velha passavam e ali seus sonhos deixavam, suas vidas deixavam também.

Até que uma noite, eu tive um sonho grandioso e precisava contar para alguém.

A velha Guiomar do guarda-sonho foi a primeira que veio na minha lembrança de menino.

Mal o dia amanhecera. Eu corria pra casa da velha que no abrir rangendo da janela me deu um bom dia de assustar o galo e ele cantou.

A velha me abriu a porta que rangia mais alto que a janela.

De vestido longo azul da cor da manhã sentou num banquinho e perguntou pra mim o que eu queria ali.

Entrando na casa da velha, contei-lhe que um sonho eu tive na noite passada era o motivo da minha visita.

A velha riu-se com gosto que fez até o galo cantar de novo e me disse que sonho de menino não é sonho, é mentira e ninguém acredita.

Olhei bem dentro dos olhos da velha.

Uma lágrima rolou dos meus olhos e foi parar na tábua rachada do chão da casa.

A velha baixou a cabeça e abrindo o seu guarda-sonho pediu que eu lhe contasse o meu.

Contei a ela o meu sonho bem devagarzinho.

De modo que a velha ouvisse parte por parte.

Foi quando o guarda-sonho explodiu. De rosa ficou cinza desmanchado na mão da velha que não sei como pedra virou. Estátua de cemitério parecia.

E os sonhos saíram todos para a rua.

Corri para casa assustado com medo do que havia feito.

Meu pai me bateria até a morte e minha mãe morreria seca de tanto chorar de desgosto.

Mas quando cheguei em casa, a mesma minha casa já não era.

Era uma casa de varanda. Igual ao que meu pai sonhava.

Todos riam fazendo festa.

E minha mãe alisava a barriga grande dizendo esperar um bebê. Uma menina, afinal.

As pessoas felizes viviam agora.

Não precisavam mais da velha e do seu guarda-sonho porque o que eu havia sonhado e contado àquela bruxa era o desejo de ver os sonhos de todos realizados.

Florianópolis, 23 de outubro de 2006.

JOEL VIGANO