Conto das terças-feiras – Noite de terror
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 14 de julho de 2020
O pai de Caio, seu Neném, era uma pessoa muito calma, honesta e bastante séria, não acreditava no sobrenatural, coisa de outro mundo. Em compensação, era aficionado em filmes, revistas e livros de ação, como os policiais, os faroestes, bangue-bangue. Nesses gêneros, seus personagens preferidos eram Hopalong Cassidy, Gene Autry, Rex Allen, Bill Elliot, Johnny Mac Brown, Rocky Lane, John Wayne, e outros. No gênero policial, tinha guardado muitas revistas do Detetive X-9, agente secreto de histórias em quadrinhos criado por Dashiell Hammett, e editadas pelo jornal O Globo, a partir de 1941. Ele as lia sempre com redobrada expectativa.
No gênero sobrenatural, gostava de ouvir um seriado da Tupi, transmitido todas as noites às terças-feiras, com episódios de terror e mistério vividos por cada ouvinte. Nada fazia seu Neném se afastar do rádio nesses dias e na hora exata. Em uma posição incômoda, em pé, com o ouvido encostado na saída de áudio de um rádio holandês, modelo Philips BX454A, valvulado, fabricado pela Philips & Co, só saía dessa posição quando o programa terminava. A audição era péssima, embora captasse as emissões de onda longa, média, curta e FM, obrigando o senhor a ficar na desconfortável posição, porque o dinossauro falante tinha sido colocado sobre uma pedra de mármore, afixada na parede, a uma altura que as crianças não o alcançassem. Ao lado, também fixado à parede, havia um aparelho telefônico, estrutura de baquelite, preto, modelo 500, fabricado pela Western Electric. Para falar com alguém era preciso selecionar o número pretendido, girando o disco frontal com o dedo.
O local escolhido para colocar o telefone foi a sala de jantar, que na planta da casa ficava depois da sala de visitas e dos quartos. Um grande corredor dava acesso a esse ambiente, onde seu Neném ficava mais de uma hora a ouvir seu programa preferido das terças-feiras. Ninguém poderia, na hora aprazada, permanecer ali, para não o incomodar ou fazer barulho. Ele se submetia a um verdadeiro ritual de resistência, e os familiares estavam sempre atentos para não o contrariar.
Naquela sexta-feira, já todo preparado para a audiência de mais uma novela, ligou o rádio na estação desejada, mas não conseguia ouvir nada, por causa de um forte ruído de estática provocado pela eletricidade atmosférica, que misturava tudo. Ele afastou um pouco o aparelho da parede, procurando outra posição de recepção, mas nada melhorava. Deu alguns safanões no dito cujo, mas foi debalde. De repente tudo voltou ao normal, sem explicação. A novela ainda não tivera início. Parecia que sabiam o que estava acontecendo com o rádio do senhor noveleiro. Seu Neném ouviu, então, aquela voz empostada sempre presente no início dos capítulos: “Você não acredita no sobrenatural?”
Atento, o homem procurava, mentalmente, visualizar as cortinas do grande palco se abrindo, mostrando onde se desenvolveria a história. Ele sempre contava que aquele momento era mágico, até chegava a se arrepiar, pensando no que viria logo depois. Assim, a história deu continuidade e um silêncio profundo tomou conta da sala. Para dar mais realidade e dramaticidade ao ambiente, as luzes da sala eram apagadas, só o dial do radiorreceptor iluminava a face daquele homem ávido por emoções.
Faltando pouco para o desfecho final da macabra história daquela já quase madrugada, o clímax das emoções assombrosas, o telefone tocou. O senhor, um pouco sonolento, dado o avançado da hora, surpreendido, sobressalta-se. Um gato preto, procurando comida, vasculhando a lata de lixo colocada na área de acesso ao quintal da casa, também se assustou. O noveleiro, de tão concentrado que estava perdeu a noção do que pretendia fazer, apavorado esbarrou no rádio, derrubando-o e fazendo um barulho muito maior, deixando o resto da família aterrorizada. Todos correram para verificar o que acontecera. Acenderam a luz do ambiente, encontrando-o sentado no chão, no escuro, tremendo e tentando juntar as peças de seu estimado rádio, espalhadas pela sala toda. Notava-se que não haveria jeito de consertá-lo, só outro.
Alguém abriu a porta da sala de jantar que dava para o quintal e constatou que tinha sido o gato preto que derrubara a lata de lixo. A única coisa que o homem aterrorizado disse, foi — Pensei que fosse assombração! Trouxeram um copo d’água para o “corajoso” homem, que continuava tremendo e branco de medo.