O Lago
Quando mudaram para uma casa de campo, tinham a certeza de ter deixado para trás todo o estresse que os motivou a mudar. Conseguiram vender a casa na qual viveram por mais de dez anos e, da compra da casa nova, restou ainda algum dinheiro. É claro que a casa antiga era muito maior, e mais nova também, mas as constantes inundações de um pequeno rio os deixavam ilhados com grande frequência. A água jamais chegara a passar portão adentro, mas só o fato de precisar ter um bote em casa para poder sair até que o rio voltasse ao nível normal já era por si só um bom motivo para mudar. Além disso, tinham ali uma vizinhança bastante encrenqueira, sempre organizando festas e confusão. Mesmo sendo uma boa casa, paz não estava entre seus atributos .
O pequeno sítio ficava a apenas dez minutos de carro, partindo do centro da pequena cidade em que moravam. Eram o casal e dois filhos, de sete e nove anos, Vítor e Isabela, respectivamente, e um belo Dálmata, Dogão, já bastante idoso. Começava a ficar cego e surdo, e dormia o dia inteiro. A casa era um pouco menor, mas atendia a todas as necessidades. Tinha um bom acesso a partir da estrada. Um detalhe que logo os encantou foi o pequeno lago que ficava atrás da casa. De onde seria o quarto principal, seria possível ficar à janela admirando o lago e as árvores que o circundavam. Um pequeno quiosque sugeria bem receber amigos no final de semana. Espaço não faltaria para as crianças. Elas poderiam crescer da forma mais sadia, subindo em árvores, assim como caindo delas, capturando insetos, ou sendo picados por eles. Ele sempre ouvira de seu agora finado pai como era a vida no campo, e de como esse estilo de vida trazia boas lembranças. Já ele, sempre urbano, com lembranças bastante desagradáveis, principalmente pelas constantes mudanças que fizeram. Sabia que a esposa também não tinha boas experiências com a cidade, e ambos não queriam aquilo para os filhos.
O vizinho mais próximo do sítio ficava a distância de pelo menos mil metros. Mesmo que promovesse festas, não causaria perturbação a ninguém. E, no mais, até onde se sabia, era um velho aposentado que passava os dias dormindo e não gostava de falar com ninguém. Perfeito demais.
Vitória, a esposa, estava radiante no dia em que, finalmente, mudaram. Pediu-lhe que construísse bancos rústicos de madeira para deixar perto do quiosque, de frente para o lago. Era a paisagem bucólica que ela sempre sonhara. Mesmo a casa não sendo grande, havia um galpão perfeito para que ele instalasse a pequena marcenaria e retomasse os trabalhos pausados para a mudança, incluindo a nova encomenda: os bancos para o lago.
Mas havia um detalhe que precisava ser resolvido logo: ele teria que reformar, com urgência, toda a grande varanda que ladeava boa parte da casa. Era visível que parte da madeira estava muito deteriorada, principalmente as vigas verticais que sustentavam o telhado. Era iminente que toda aquela estrutura viesse abaixo. A casa, como num todo, estava muito bem conservada, usaram boas madeiras e foi um trabalho bem feito, porém ali a madeira havia apodrecido, destoando do resto da construção e causando risco de desabamento. Como o antigo proprietário deixou chegar a esse ponto ele não fazia ideia. Era preciso agir rápido e o dinheiro que sobrou já estava reservado para essa reforma.
Iniciou diagnosticando o problema: A caixa d’água apresentava um problema na bóia. Nem sempre ela funcionava corretamente e, consequentemente, saía água pelo ladrão, porém havia uma trinca no cano e a água se infiltrava pelo telhado, causando umidade nas madeiras e, assim, elas foram apodrecendo com o tempo.
A reforma seguia num ritmo tranquilo. Com a marcenaria já instalada, acelerou o passo para terminar logo a empreitada. Permanecia sozinho boa parte do tempo pois as crianças, de manhã, estavam na escola e passavam a tarde com a avó materna. Vitória trabalhava em um consultório médico e agora se tornara mais viável almoçar no centro da cidade.
Logo que iniciou a retirada do material deteriorado, começaram a acontecer coisas estranhas. Suas ferramentas sumiam dos lugares em que as tinha deixado. Sabia que não eram as crianças. Vitória também não estava por perto. Quando estava no galpão, a porta bateu, trancando-se por fora. Pensou que alguém com ele brincava, e teve que sair por uma das janelas. Começava a ficar perturbado. Na ocasião em que foi utilizar a serra circular, a chave não acionava e, quando examinando mais, digamos, de perto, a máquina ligou subitamente, causando-lhe um grande susto e um quase acidente. Teve a impressão de ouvir risos, de crianças, e saiu correndo do galpão para apanhá-las, mas nada havia lá fora. Dogão continuava dormindo, tranquilamente, como sempre, em sua cama na varanda. Isso já acontecia havia uma semana.
Não comentou nada disso com Vitória Ela percebera que o ritmo da obra estava lento e questionou se algo estaria dando errado. Ele tentou sair pela tangente inventando explicações técnicas que ela não entenderia. Ela podia tranquilamente perceber a sua irritação, que algo lhe incomodava. Ele precisava descobrir com quem estava lidando. À noite, redobrava a atenção, na expectativa de ouvir algo. Até então todas as coisas estranhas tinham acontecido durante o dia, enquanto sozinho estava.
Naquela noite ele simplesmente não conseguia dormir. A sucessão de eventos sem explicação o deixavam cismado, e temeroso pela esposa e filhos. Por que alguém estaria querendo assustá-lo? Talvez não fossem bem-vindos ali. Talvez o velho...não, ele dormia o dia inteiro, assim como o Dogão, e morava a mil metros de distância. Crianças por perto não havia visto, nenhuma sequer. Todo o movimento que via era o tráfego na estrada, que ficava a mais de quinhentos metros do portão. Levantou da cama e Vitória, com sono leve, perguntou-lhe o que houve. Falou que não conseguia dormir e aproveitaria para ir à oficina, desenhar um projeto . Teria que começar um armário e sequer o esboço fizera ainda, com tanta coisa atrapalhando.
Dogão dormia tranquilamente em sua cama na varanda. Somente olhou de canto e voltou a enfiar o fucinho entre as patas. Fazia frio e aproveitou para cobri-lo com um dos seus velhos cobertores. Já se dirigia ao galpão quando mudou de rumo e se dirigiu ao quiosque que ficava em frente ao lago. A estrada era de pouquíssimo movimento à noite e, com isso, o silêncio era quase absoluto, quebrado somente pelo festim causado pelos insetos noturnos. Também conseguia ouvir algum coachar e, às vezes, sons como algo sendo jogado na água. Concluiu serem peixes com hábitos noturnos, ou mesmo os sapos. Sentou na mureta que circundava o quiosque. No céu, algumas nuvens, vez ou outra, encobriam a bela lua cheia. Era perto de duas horas da manhã. Arrependeu-se de não ter pegado um cigarro. Era o momento perfeito para tragar enquanto esperava o sono voltar.
Acreditando inicialmente estar sendo enganado pela escuridão, percebeu uma sombra que lembrava a silhueta humana, de pequena estatura, na margem do lago, próximo às arvores. Tentando visualizar melhor o que seria tal sombra, percebeu uma segunda próxima a primeira. Aos poucos foi visualizando não uma ou duas dessas silhuetas, mas quem sabe uma dezena delas. Todas de estatura pequena, aparentando serem crianças. Os vultos agora estavam parados, lado a lado, em torno do pequeno lago. Davam-se as mãos e olhavam todas em direção da água. Podia-se ouvir, pela pouca distância, que murmuravam algo, sem parar.
É obvio que uma visão daquelas causaria um grande susto em qualquer um. Ele não conseguia nem imaginar de onde saíram aquelas crianças todas, e porque estariam ali, em volta do lago, com as mãos dadas. A imaginação testava a razão. Pensava que estaria vendo fantasmas. Todas as situações estranhas que haviam se passado nos últimos dias fariam sentido agora. Seriam elas que lhe aplicavam os trotes? Lembrou-se de ter ouvido risos infantis, assim como choros também.
Hesitante, levantou de onde estava sentado e andou, de costas, em direção à casa, sem tirar os olhos das crianças que, no entanto, pareciam ignorá-lo. Chegando à varanda na qual Dogão, indiferente a tudo, dormia, adentrou a casa e trancou a porta. Confuso, voltou para o quarto e percebeu que Vitória já dormia novamente. Ponderou que poderia ser alguma espécie de alucinação, talvez o estresse. Uma mente confusa pode nos pregar peças, e achou melhor não deixar Vitória e as crianças perceberem algo. Tentaria dormir. No dia seguinte, enquanto estivesse sozinho, faria uma ronda pela área e pensaria o que fazer. Adormeceu, finalmente, quando os primeiros raios se faziam notar atrás dos morros altos da região. Vitória sairia logo para o trabalho, levando consigo as crianças. No pouco tempo em que dormiu, teve sonhos nos quais via as fantasmagóricas crianças do lago, em círculo, mãos dadas, tendo ao centro a cama, enquanto eles dormiam. Entre as crianças que murmuravam algo sem parar, ele conseguiu reconhecer Vítor e Isabela.
Acordou com seu nome sendo, repetidamente, pronunciado. Era Vitória. Ela lhe dizia, desesperada, ter levantado e encontrado a porta dos fundos aberta. Vítor e Isabela não estavam em suas camas, já frias naquele momento. Ele corre constatar o que Vitória lhe dizia e sai na varanda. Dogão encontra-se totalmente coberto, da forma como tinha sido deixado ainda à noite. Nem retirou o fucinho dentre as patas para ver o casal que, confuso e desorientado, olhava em todas as direções enquanto gritava os nomes dos filhos.
As buscas prosseguiram por muito tempo. Vítor e Isabela simplesmente sumiram. A propriedade foi incessantemente explorada na busca às crianças. Isso inclui o lago, é claro, que chegou a ser esgotado para se ter certeza de que nada ali havia. Vitória decidiu, depois de bastante tempo, não mais morar no sítio. Mudou-se para a casa da mãe. Ele resolveu ficar. Continuaria procurando, continuaria revirando cada pedra que lá houvesse. E assim se davam suas noites: em frente ao lago, sentado nos bancos rústicos que finalmente fizera para a esposa, mesmo que ela não mais lá estivesse. A seu lado, o velho cão, cego e surdo. Entre seus dedos, um cigarro, nem sempre aceso. O olhar sempre atento ao lago, esperando elas surgirem. Voltava para dentro de casa somente quando os primeiros raios de sol surgiam no horizonte e levava para a varanda, nos braços, o velho cão que já não conseguia mais sozinho caminhar.