O Bosque
Residir em uma grande propriedade tem seus prós e contras. Enquanto criança, muito espaço para explorar. Aventuras e fantasia. Quando mais velho, espaço demais poderia até piorar uma eventual solidão. Vivi esses dois momentos na grande casa em que moro desde que nasci. Era uma mansão, na verdade, com dois pavimentos, muitos quartos e escadarias. Lembrava bastante os casarões do período colonial, das grandes fazendas de café. Acredito que meu pai realmente se inspirou nisso, talvez assistindo aos filmes de época que tanto gostava.
Ainda criança, explorei exaustivamente todo o pequeno bosque que ficava atrás da mansão. Normalmente com meus irmãos e outras crianças da vizinhança. Costumávamos procurar cogumelos. Minha mãe sabia quais eram os se podia comer, assim como sabia muito bem prepará-los. Depois das chuvas era o momento de explorar em busca deles. E o bosque parecia muito maior naqueles tempos. Parece que quando somos crianças, tudo ao nosso redor adquire dimensões maiores. O tempo passou, eu cresci, e todos foram, aos poucos, seguindo seus caminhos. Perdi contato com aqueles que tinha por amigos e passei a me acostumar, e até gostar, de ficar sozinho. Meus outros dois irmãos, mais velhos, morreram em um trágico acidente de carro, ainda crianças. Minha mãe já tinha morrido havia muito tempo... perdera a luta para um câncer, ainda bem jovem, e meus tios sequer em seu passamento vieram. Havia uma intriga antiga na família. Posso dizer que nossa história tinha uma relação muito estreita com a tragédia. Meu pai, por fim, morreu afogado no grande lago que ficava atrás do bosque. Ele, que sempre se mostrara um ótimo nadador... ironias do destino... Eu tinha 25 anos.
Ele não nascera um homem rico, mas conseguiu erguer um patrimônio bastante considerável apostando no vinho. Aprendera o ofício com os pais, imigrantes italianos. Eu, único filho ainda vivo, acabei herdando a grande propriedade, assim como a fábrica e demais bens da família. Eu havia sido deixado em uma situação financeira muito confortável e podia administrar a empresa, uma renomada vinícola, mesmo sem sair de casa, pois contava com gente de extrema confiança para me auxiliar. Com isso me tornei um casmurro, como na obra de Machado. Via poucas pessoas, além da própria empregada, Laura, e até evitava mesmo de fazê-lo.
Era um terreno imenso que continha, além da grande residência e do bosque, um pier que proporcionava momentos de diversão. Nadar e pescar eram meus passatempos preferidos, junto ao meu pai. Hoje moro sozinho. Minha única companhia é Laura, já com certa idade. Ela cumpre o expediente apenas de dia, jamais fica para a noite, nem para os finais de semana. Mesmo após a morte de meu pai, ela decidiu continuar na casa, talvez porque onde mais conseguiria um emprego? É de confiança, fala pouco, e acho que conhece a casa melhor que eu mesmo. Assim, eu posso saborear de toda a privacidade a que tenho direito. Mas, às vezes, essa liberdade toda tem um gosto amargo... é muito bom estar só quando se quer estar só. Quando isso não é uma opção, toma lugar um perigoso vazio.
Nesse momento da minha vida, hoje com mais de 40 anos, aprecio caminhar pelo bosque. Não costumo visitar o pier, pelo que se sucedeu com meu pai. Como ninguém me visita, eu diria ser o pier o lugar mais deserto do mundo. O pequeno bosque tem seus atrativos, pelo menos durante o dia. Mas não posso dizer o mesmo quando anoitece. Tenho visto coisas entre as árvores. Sei que vultos e sombras podem ser fruto da imaginação, principalmente quando se está sozinho, mas o que dizer de também ouvir vozes? Cheguei a pensar, é claro, em ladrões, afinal eu era um homem rico, dono de uma sólida empresa, e todos sabiam que sequer seguranças eu tinha em casa. Nem cães eu mantinha, pois nunca gostei desses animais, desde que fui mordido por um deles. Na verdade, era até um milagre nunca ter sido assaltado. De qualquer forma, o que quer que lá existisse, limitava-se ao bosque. Na grande mansão jamais testemunhei nada estranho, mesmo ela sendo um cenário perfeito para uma história de terror.
Os vultos podiam ser vistos, no bosque, sempre à noite. Eu não era capaz de entender o que as vozes diziam. Em uma dessas noites, cheguei a atirar para o alto mas, nos dias que se sucederam, as aparições continuaram. Passei a vigiar, sentado em minha poltrona, à janela que dava melhor visibilidade ao bosque, sempre com o velho rifle de meu pai sobre o colo. Às vezes era possível ver, por dentre as árvores, algum reflexo da lua na água do grande lago, e parte do pier. Muitas vezes investiguei o bosque, durante o dia, após tais eventos. Jamais encontrei pegadas ou algum outro tipo de marca. Não contei a ninguém sobre isso, mesmo porque praticamente com ninguém conversava, e pouco, somente com a velha empregada. Não queria assustá-la. Se ela também se fosse, eu ficaria definitivamente sozinho.
E assim se findam meus dias... sozinho na enorme mansão, trôpego em suas grandes escadarias, vazio em seus infindáveis corredores, boa parte do tempo com o rifle nas mãos, observando velhos quadros em suas molduras cheirando a mofo. A velha empregada nunca mais apareceu. Eu continuava a ver as sombras que dançavam entre as árvores. Por vezes também dancei, patética e desajeitadamente, na varanda da grande e vazia casa. Continuava a ouvir as vozes que, às vezes, pareciam sussurros de alguém a apenas dois passos de mim. Ainda mantinha vigília, à noite, mas já me acostumara com os habitantes do bosque. Tornara-se uma apaziguante rotina passar as noites, mesmo as mais frias, sentado confortavelmente na velha poltrona, à janela, e tragar do bom fumo, e beber do bom vinho que trazia, em seu rótulo, o nome do meu pai.