Contos de Minas - Nos Porões do Casarão
O casarão tão antigo e tão bem construído. Feito de pedra bruta, tijolos e madeira de lei, perdura feito um desafio, como quem se diz eterno a todos que de alguma forma conhece ou fez parte da sua história.
O arrastar de correntes, gemidos, choros, cantos tristonhos, passos incessantes num infindável ir e vir, vindos dos porões ou dos salões, preenchem as noites dos que eventualmente pernoitam ali. Ao longo do tempo, quem o habitou se acostumou. A rotina elimina o medo.
Mal raiara o dia. Um estalo de chicote. Um gemido. Um choro. Um clamor silencioso e profundo. O estalo fez a urgência, a montaria ficou pronta em um piscar de olhos. Montou e saiu. Ao passar a porteira do curral, a primeira ave assentou. Assentou no mourão da cerca. Da senzala somente um silêncio incomum.
Tomou a estrada da fazendinha da Parada, situada do outro lado da grande montanha. O nome se deve ao fato de que por lá passavam tropeiros. Por interesses mútuos, os hospedava. Atravessou o baixadão, subiu o morro do outro lado do rio, seguiu atravessando o matão. Depois daquela, dezenas, centenas, milhares de aves chegaram.
Aves de muitas espécies. Só se ouvia o bater das asas, não se ouvia piados nem gorjeios nem cantar. Parece que cumpriam ordem. Parece que previam algo. Inimigas por natureza, assentadas lado a lado. Quase já não havia espaço, lutavam por um lugar. Nenhum gorjeio, nenhum piado, nenhum cantar. O silêncio era estranho.
Repicou o sino da capelinha. Meio dia. O momento mudou tudo, rompeu-se o silêncio, certamente cumpriam ordem, um barulho ensurdecedor se espalhou, parece que estava guardado para aquela hora. Surgiu do outro lado, na estrada, na saída do matão, o tordilho, negro que brilhava, misturado com brilho da prata da sela, refletindo os raios do sol.
Vinha em passos lentos, desceu o morro, atravessou o rio, cruzou o chapadão. O corpo inclinado, tombado para o lado, caprichosamente amarrado, não caiu. Cruzou a porteira e entrou no curral. Calou-se o barulho das aves. Ouviu-se o barulho das asas, voaram todas, abandonaram o lugar.
O canto da senzala que ali se iniciara, não era o canto de sempre, era um canto indefinido. Melódico. Melancólico. Coisa sofrida expressando alegria.
Vinte e oito fazendas. Dezesseis vindas de seu pai. Uma sua, quinze de seus irmãos, que à custa de trapaça e sangue, comprou-as ao preço que quis. Irmãos, cunhados, sobrinhos, assassinados em tocaias. Fez choros com lágrimas de sangue, tomou tudo de modo perverso. Outras doze, conseguidas a poder de invasões, expulsões, assassinatos, massacres, e cultivos regados com sangue escravo.
Escurece. O canto da senzala cessa. Bem de longe, não se sabe o quanto, um barulho funesto, ritmado, feito um tropel escondido no breu da noite, vem se aproximando no compasso marcado pelo pêndulo do grande relógio pendurado na parede cabeceira da mesa onde jazia o corpo.
Em meio à escuridão, a porteira do curral se escancara. Quatro burros negros puxando um carroção também negro, entraram curral a dentro, indo até próximo à porta de entrada. Figuras feito humanas, trajadas em vestes negras, fisionomias invisíveis, retiraram do carroção um grande caixão negro, levaram para dentro do grande salão, jogaram no chão ao lado da mesa do morto, todas as correntes que estavam dentro do caixão, colocaram o defunto no caixão, colocaram o caixão na grande carroça e sumiram na escuridão.
A porteira do curral então sozinha bateu. O Grande relógio parou exatamente naquele momento, meia noite.
À meia noite é que começam os estranhos acontecimentos no casarão. O grande relógio ainda está lá. Não funciona! Diz-se que ele voltará a funcionar outra vez exatamente a uma meia noite e quando isso acontecer, não existirão mais as assombrações.