UM ESTRANHO EM VENEZA*

Itália, 1598.

Ele parecia um mendigo esfarrapado e subnutrido e deambulava pelas ruas junto à Praça mas havia algo no seu porte e no brilho dos seus olhos côr de azul marinho que despertava a atenção e os sentidos.Como uma aparição vinda não se sabe de onde.Misteriosa.

O angariador acercara-se e abordara-o:

- Se quiserdes ceia e roupa limpa segui-me e eu levo-vos até ao meu amo, o conde, um dos mais ricos homens de Veneza.Só tendes que lhe agradar e ele dar-vos-á protecção e guarida.

Ele chegara ao fim da estrada e sentia-se nas últimas, esfomeado e derrotado e não hesitou.Seguiu-o.

O Conde era um homem maduro que vivia num palácio imponente sobre um canal sombrio.Deitou-lhe um olhar perscrutador e ordenou ao criado:

- Banhai o peregrino, vesti-o, alimentai-o devidamente e dai-lhe dormida nos aposentos dos serviçais.Daqui a uma semana, trazei-o de novo à minha presença.Perfumado.

E quando passada uma semana o trouxeram parecia um princípe ressuscitado, um milagre tinha-se operado na sua fisionomia.Mas o conde ficou atónito ao ouvi-lo responder com um italiano carregado de sotaque:

- Pareceis que vieste de longe.Dizei-me.Quem sois?

- Eu Senhor…não sou Ninguém.

- Sentai-vos.Comei e bebei comigo.Estou a ver que deverás esconder uma longa história para contar.E por isso faço-vos a pergunta de outro modo.Quem foste então?

- Podeis julgar-me louco, inconfidente ou mentiroso se vos disser.

- Estou disposto a tudo.Dizei-me, insisto.Quem foste vós?

- Eu fui…Sebastião, rei de Portugal e Algarves… antes da Espanha ter transformado o meu reino numa espécie de província espanhola.

O Conde conteve-se e incitou-o a continuar.

Sebastião ascendera ao trono com três anos, quatro meses e vinte e dois dias de idade.

Seu pai,o princípe D.João Manuel fora praticamente quase o único sobrevivente de dez filhos do rei D.João III e da Rainha D.Catarina de Austria e finara-se consumido pela tuberculose, semanas antes do seu nascimento com apenas dezasseis anos.Mas deixara a princesa, D.Joana de Austria sua mulher grávida.Questões de consanguinidade tinham traçado um rasto de morte entre os casamentos de primos direitos de Portugal e de Espanha.

Nas vésperas do parto, o povo afluira em massa à Igreja de São Domingos no coração da baixa Lisboeta para rezar pelo seu bom sucesso.Tal era o número de congregados que havia padres a pregar do lado de dentro e padres a pregar do lado de fora.

Quando D.Joana deu à luz, orações de agradecimento a Deus ergueram-se em uníssono.Por ora, os perigos do reino vir a cair sob o domínio espanhol tinham sido esconjurados.Já nesse tempo à boca pequena o povo comentava “De Espanha nem bom vento nem bom casamento”.

D.Joana acorreu ao chamamento de seu pai e deixou o filho recém nascido ao cuidado da madrinha da criança, sua sogra, a Rainha.

Mãe e filho nunca mais se viram.

D.Sebastião foi educado por jesuítas sob a supervisão da Avó regente já que o Rei D.João III morrera quando ele era ainda criança de tenra idade.

E numa sociedade marcada pela ascensão da Igreja ao Poder, com o Tribunal da Inquisição a perseguir e assassinar os cristãos novos e a dominar a nova Universidade inaugurada em Évora o jovem e princípe herdeiro fora imbuído de um maléfico e imprudente fervor religioso e militar.

Chegado ao trono, o jovem rei não se interessou pelo seu povo nem nunca reuniu côrtes nem visitou o país.A sua obsessão e desgraça era recrutar um exército, armá-lo e ir combater os mouros no Norte de África numa anacrónica e insana cruzada.

Pediu, em vão, auxílio a estados estrangeiros que mal o ajudaram e apenas simbolicamente, contraiu empréstimos e arruinou os cofres do estado tendo como único propósito ir a África combater.

E partiu com a nata da juventude nobre e promissora para a célebre e funesta batalha de Alcácer Quibir em 1578.

O Conde ouviu-o até ao fim sem nada dizer.Fitou-o longamente, olhos nos olhos e acabou por considerar.

- A vossa é uma história de espantar.Passaram-se vinte anos.E entretanto?

- Portugal caiu numa crise dinástica após a morte de meu tio avô o Cardeal D.Henrique e encontra-se sob o domínio filipino.E entretanto eu nem sei como consegui sobreviver.Apenas vos posso afiançar que comi o pão que o Diabo amassou.

- Algo forte me diz que não sois um impostor e me incita a ajudar-vos,se necessário fôr a recorrer ao Doge e a levar a vossa pretensão até ao Papa.

- Senhor mas não terei meio de vos agradecer.

O Papa Clemente VII por conselho dos cardeais em conclave acedeu receber o pretendente e após cuidadosas e aturadas investigações concluiu que o estranho que aportara a Veneza era o verdadeiro rei desaparecido em combate vinte anos antes.

Escreveu com solenidade a Filipe II de Espanha exigindo a devolução do dito reino de Portugal ao Rei D.Sebastião sob pena de excomunhão maior.

O rei Filipe instigou os seus embaixadores a prenderem e a castigarem severamente o suposto rei.

-Majestade mas é ele, parece-se muito com ele…ou então alguém muito próximo, da mesma idade que conviveu com ele enquanto jovem, junto na Côrte em Lisboa.- ter-lhe-iam prevenido.

- Impossível.O imprudente Sebastião está morto.Eu próprio vou tratar de trazer os seus “restos mortais”e sepultá-lo em Lisboa, nos Jerónimos.Talvez assim se consiga sossegar os meus novos súbditos que sonham com um regresso que nunca há-de acontecer para bem do meu império e da minha glória.

Tinha sido nomeado um comité de nobres que o examinou vinte e oito vezes e a que ele conseguiu ilibar-se de todas as acusações.

A parecença era impressionante.O pretendente desnudou-se e mostrou as marcas naturais do seu corpo de que muitos se lembraram serem de D.Sebastião.

Revelou segredos de conversas entre embaixadores de Veneza no palácio de Lisboa.

O que deixou sem fala os examinadores atónitos e facilitou a sua libertação sob a condição de ter que abandonar aqueles domínios no espaço de três dias.

Na sua fuga, o passado rei caiu na mão de espanhois que em Nápoles o maltrataram, humilharam em público e o embarcaram como escravo para então e definitivamente nunca mais ser visto.

Defendiam os espanhois com arrogância e desdém que aquele sofredor era na verdade um mágico - o que constituía um reconhecimento tácito da verdade do preterido.

Houve impostores antes e depois, houve as profecias de Bandarra, Garrett, José Régio e Fernando Pessoa que celebraram direta ou indiretamente a figura do infeliz Rei D.Sebastião.

E no coração desalentado de muitos portugueses num eco infindo por muitos séculos, a lenda e o mito de que nas suas horas mais negras e sem esperança, numa manhã de nevoeiro o jovem rei, o desejado, encoberto ou adormecido havia de chegar para os resgatar e salvar do seu cruel destino.

* ficção sob a forma de conto, Inspirada na tese da insigne historiadora Maria Luisa Martins da Cunha apresentada em 2011 no terceiro volume da obra “Grandes Enigmas da História de Portugal” e nos testemunhos recolhidos antes pelo notável historiador Faria e Sousa sobre os avistamentos do Rei D.Sebastião por outros nobres guerreiros durante a batalha de Alcácer Quibir.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 30/06/2020
Código do texto: T6992161
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