199 - Quqrentena
Viu, ao chegar, um espaço acanhado, roupa andrajosa pendurada, a bata manchada de tinta. Entrou e sentou-se para o esperar. Ao lado do banco as peças do dominó com uma pedra posta como quem começa o jogo. Olhou para o relógio e viu o pêndulo imóvel, a parede que foi branca e registava agora pregos, buracos e sombras. Reparou depois nos numerosos riscos, desenhos, frases. Deus está morto, leu. Os outros são o rebanho, reparou depois e, correndo o indicador pela zona mais iluminada, percebeu Nietzsche na alma dos escritos. Inclinou para um ângulo favorável a janela e adivinhou-se no reflexo do vidro sujo. Teve sede. Procurou a torneira e bebeu da mão em concha. Limpou a boca às costas da mão e arrepiou-se com a chegada do pintor. – Desculpe-me o atraso, disse pousando a pasta dos trabalhos esboçados e uma garrafa de diluente. Senti que, se chegasse a horas, haveria de continuar o jogo mas vejo que se acanhou, ou não gosta de jogar este. Dispa-se e coloque a roupa por cima do biombo. Isso mesmo. Hoje só farei estudos e pode, portanto, ficar na posição que for mais suave dentro do que lhe peça. Volte-se para a luz, erga a cabeça, pouse, natural, a mão direita sobre a coxa. Como lhe pagarei o tempo desde que chegou, preciso aproveitar a luz. Depois da sessão, enrolou um cigarro, acendeu-o e tirou da bata as notas. Era escuro quando saiu.