194 - Quarentena
O oficiante, de máscara, aspergiu a água benta sobre a urna, recolheu o hissope à caldeirinha, saudou com um aceno mudo a filha e a viúva e saiu. – Que leve este finado! Pensaram os coveiros suados do sol mordente e da abertura do coval. Calaram-se e, ajeitada a terra, cuspiram nas mãos e retomaram a tarefa. Acabara tudo ali, a vida inteira de amores e brigas, as tardes de sono após o vinho, a birra de sair quando todos ficavam em casa. Ia para onde se não sabia, rodava o vazio da cidade e voltava tarde com vontade de matar todos. Ficava-se por isso mesmo por ter moles todos os precisos e dormia onde as forças da mulher o permitissem. Quando quis ir para o Hospital já nada pode ser feito. Morreu antes de terem tempo para decidir se valia ou não ser entubado. Contra a vontade expressa da esposa, revoltada com a hipótese, o corpo foi cremado. Havia normas sanitárias nesse sentido. O resto foi difícil mas a filha arranjou tudo e em segredo. Benzeu o padre meia dúzia de tijolos, convenceram-se os coveiros que o homem morrera seco e assim foi garantida a sepultura no cemitério da aldeia onde, todos os dias, vai D. Amália para falar com quem não está.