A visita (trilogia)
A visita (trilogia)
Alexandre Santos*
1º conto - A visita
– Eu sou o pai dele! – respondeu o homem grisalho à médica enfurecida, apontando Fábio, que, desacordado, ocupava o leito frontal a porta da UTI. Sem mais, nem menos, a mulher esbugalhou os olhos e, suportando a vontade de desmaiar, soltou um gritinho, deu meia-volta e saiu em disparada.
A frase, dita de sopetão, era uma pequena mentira pregada por Anastácio – vizinho do paciente, que, bafejado por uma confluência de raros acasos, passara pela recepção, cruzara o hospital, entrara na UTI e chegara ao leito sem ver ou ser visto por qualquer pessoa. Anastácio lembrava ter chegado ao hospital há menos de dez minutos. Era tarde, quase meia-noite. Estranhamente, no momento que chegara, não havia qualquer pessoa na portaria – nem porteiro, nem segurança, nem recepcionista, nem nada. Pouco se lixando para a desorganização, seguiu em frente. A claustrofobia falou alto e, como sempre, evitou os elevadores, preferindo a escadaria, que, depois de quatro ou cinco lances, o entregou sem qualquer barreira ao hall da Unidade de Tratamento Intensivo. Alguma coisa devia estar acontecendo, pois, mais uma vez, não encontrou viva alma. Sem travo, autorização ou orientação, perambulou pela UTI, observando os doentes que jaziam inertes até achar aquele que queria. Em atitude respeitosa, fez uma genuflexão e se plantou diante do leito, chegando a rezar um Pai Nosso pela recuperação de Fábio. De tão compenetrado com a oração – mesmo diante do visor que devassava o corredor –, Anastácio não viu a abrupta chegada da Dra. Gerusa. Revoltada com a visita fora do horário, sem consentimento, sem a assepsia exigida, em trajes de rua (provavelmente infecta), a médica o repreendera com vigor, quase aos berros. Assustado com a reprimenda, Anastácio imaginou que, se fosse parente próximo do doente, sua presença seria tolerada. Foi quando, num impulso, ainda imóvel como se fosse uma estátua, sentindo o sangue fugir-lhe, se disse “pai dele”. Como num passe de mágica, a frase mudou a situação. E mudou drasticamente. Depois de tê-lo esculachado impiedosamente, ao ouvir a única frase proferida por Anastácio, em meio ao início de chilique, a Dra. Gerusa virou-se e correu pela por que entrara.
“Eu vou é sai daqui”, decidiu Anastácio, que, depois do susto, não entendera a reviravolta na disposição da médica. E, sem esperar para descobrir o porquê da mudança, deixou rapidamente a UTI, percorrendo o caminho inverso ao que trilhara na entrada. Igualmente sem ser visto, saiu do hospital, ganhando a rua. Em casa, já esquecido da confusão, deitou e, em poucos instantes, alheio à confusão que perturbava o hospital, Anastácio roncou sono profundo.
– Eu juro que vi o homem – Gerusa repetia incontáveis vezes. Interrompida a reunião de emergência com o pessoal do atendimento, o cirurgião-chefe fora o primeiro a correr à UTI e, tendo inspecionado pessoalmente todos os recantos, inclusive os armários, sem achar nada ou ninguém estranho. Intrigado, o médico determinou a revista completa no hospital. Esforço vão, pois a minuciosa busca revelou-se inócua. Segundo a segurança, os doentes e o pessoal do plantão eram os únicos que estavam no hospital. A cada “nada do homem”, Gerusa se sentia pior. Uma onda de desconfiança atanazou o pessoal, pois, embora grave, a presença de um intruso no hospital não justificava o descontrole da experiente médica. A madrugada ainda era tenra quando, pressionada pelo cirurgião-chefe e pelos calafrios que não paravam de arrepiar-lhe dos pés à cabeça, em lágrimas, a médica contou aos colegas a razão do seu medo.
– O homem – um vulto, na realidade – disse que era o pai de Fábio, mas acontece que o pai de Fábio morreu há mais de dez anos – e, arrancando sucessivos arrepios no pequeno grupo, a médica contou aos colegas que, das inúmeras conversas com a mãe do paciente, soubera parte da história da família, inclusive do acidente que matara o velho Fábio. O relato da médica chocou a todos. A atenção era total. Nem um pio ou piscar de olhos.
– O pai veio visitar o filho... – um calafrio convulsionou Gerusa, que, sem qualquer controle, deixou explodir a crise de choro contida até então. A médica não precisava dizer mais nada. O medo tomou conta de todos. O “eu não entro mais lá” anunciado pela enfermeira-plantonista contaminou a todos, abrindo caminho para o caos que deixou os pacientes da UTI sem assistência por horas.
Em poucos segundos a história do fantasma na UTI espalhou-se pelo hospital, provocando uma correria dos diabos. Até os seguranças, homens que se diziam fortes e corajosos como ninguém, se recusaram a passar o pente-fino nos locais ermos. Para enfrentar a coisa do além que paralisava o hospital, impedindo a assistência aos doentes, especialmente os recolhidos à UTI, a direção recorreu ao dedo de Deus. A sala onde o pessoal da UTI estava reunido no começo da barafunda foi convertida em capela e, sem distinção de religião, sexo, profissão ou idade, todos rezaram, oraram, louvaram e invocaram ajuda de todos os santos e de todos os deuses. Chamado às pressas, o capelão rezou uma missa curta e se foi dizendo estar tudo em paz. O pastor de sempre, louvou cânticos especiais de purificação e, talvez com medo de cutucar a onça com vara curta, também se disse satisfeito. Um auxiliar de enfermagem confessou-se da Jurema e convocou um pai-de-santo que, entre um passe e outro, constatou estar o ambiente carregado e repleto de maus espíritos. A madrugada avançava e ninguém demonstrara coragem para enfrentar os fantasmas que, agora todos sabiam, visitavam a UTI.
Só pela manhã, quando a função do hospital se normalizou e o medo dos fantasmas esmoreceu, o desastre foi constatado: três pacientes dos quatro internados na UTI estavam mortos. Vivo, apenas Fábio. As perdas pesaram a consciência do médico-chefe, que, cansado da noite insone, ainda cogitou pedir uma comissão de sindicância para apurar se fora a falta de assistência que matara os pacientes. Mas, pensando melhor, considerou o estado terminal dos pacientes e resolveu esquecer o assunto. Às sete, quando, sem saber das mortes na UTI, Anastácio recebia a notícia da crise nervosa que abatera a mãe de Fábio – que chorava a iminente morte do filho, “pois o pai viera buscá-lo” –, no hospital, corria a versão de que, escorraçado pela médica, a morte poupara Fábio, mas, para não perder a viagem”, levara outros três”.
2º conto - A visita
Agastado com a notícia do grave acidente sofrido por Fabinho, primogênito da vizinha Antônia, viúva do velho amigo Fábio, Anastácio decidiu visitá-lo ainda naquela noite. Era o mínimo que podia fazer pela memória do amigo morto a menos de seis meses.
Sem saber do horário e rotinas das visitas à UTI, passava das onze e meia quando Anastácio chegou ao hospital. Para sua surpresa, a recepção estava deserta, sem uma viva alma. Aquilo era muito estranho, mas, apressado para ver Fabinho ainda com vida, Anastácio sequer cogitou o problema que fizera atendentes e vigilantes abandonarem seus postos de trabalho. Na realidade, o hospital era bem sinalizado e, para chegar ao destino pretendido, bastava seguir a indicação, pois o letreiro dizia, exatamente, o andar e a ala em que ficava a UTI. E foi assim. Mesmo subindo as escadas, como sempre fazia para não fustigar a claustrofobia, em menos de cinco minutos estava diante de uma larga porta de vai-e-vem encimada pela placa 'Unidade de Tratamento Intensivo'. Mais uma vez, para surpresa de Anastácio, fora os pacientes acamados, não havia viv'alma no recinto. Alguma coisa devia estar acontecendo, mas, independentemente do que fosse, não seria aquilo que impediria ele fazer aquilo que o trouxera ao hospital.
Anastácio não teve dúvidas e, sem travo, autorização ou orientação, entrou na UTI. Sem saber o leito no qual jazia Fabinho, em atitude respeitosa, procurou de cama em cama, observando todos os doentes até achá-lo. Ali, diante do jovem moribundo, sentiu toda a tristeza que deveria estar consumindo a viúva do seu amigo naquele momento. Assim, tomado por repentino fervor, fez uma genuflexão, se plantou diante do leito e começou a rezar um Pai Nosso pela recuperação de Fabinho.
De tão compenetrado, Anastácio não viu a abrupta chegada da médica, que, provavelmente revoltada com o horário da visita, sem poupar rispidez, o interpelou baixinho, num tom de voz que parecia gritar.
– O que o senhor está fazendo aqui? O senhor não pode entrar aqui assim. Está fora do horário das visitas. Está vestido de forma irregular. O senhor quer matar os pacientes? Quem deixou o senhor entrar? – a médica abriu a matraca.
Lá pelas tantas, cansada de ralhar, a doutora perguntou:
– Quem é o senhor?
Assustado com a situação, Anastácio imaginou que, se fosse parente próximo do doente, sua presença seria tolerada e, num impulso, imóvel como uma estátua, sussurrou:
- Eu sou o pai dele - apontou o corpo inerte de Fabinho.
Como num passe de mágica, a frase mudou a situação. E mudou mesmo, da água para o vinho. Depois de tê-lo esculachado impiedosamente, ao ouvir a única frase dita por Anastácio, em meio ao início de chilique, a médica virou-se e saiu correndo.
“Eu vou é sai daqui”, decidiu Anastácio, que, depois do susto, não entendera a reviravolta na disposição da médica. Dito e feito. Sem esperar para descobrir o que acontecera, deixou rapidamente a UTI e, percorrendo o caminho inverso àquele trilhado na entrada, saiu do hospital, ganhando a rua, igualmente sem ser visto.
Em casa, esquecido da confusão, Anastácio deitou e, em poucos instantes, alheio à confusão reinante no hospital, roncou sono profundo.
Às sete, quando levantou, Anastácio soube da crise nervosa que abatera Dona Antônia, que não parava de chorar a iminente morte do filho, “pois o pai fora buscá-lo na UTI". Pouco depois chegava a notícia de que, escorraçado pela médica, o pai Fábio poupara o filho, mas, para não perder a viagem, levara os outros internos na UTI.
3º conto - A visita do pai de Fábio
Era quase meia-noite.
Pelo visor da UTI, através da fresta aberta no grupo reunido às pressas pelo médico-chefe para traçar o plano de atendimento da madrugada – período que insinuava tranquilidade, pois, dos quatro pacientes internados, apenas um aparentava gravidade –, a Dra. Gerusa viu quando, depois de se deter rapidamente nos outros leitos, o homem parou, fez uma genuflexão e imobilizou-se diante de Fábio. Muito estranho. Horário irregular, nada dos cuidados protocolares, a rápida visita a cada paciente, a genuflexão, a vigília. Tudo muito estranho e, sobretudo, grave. Coisa que não poderia passar impune. A médica abandonou a reunião e correu à UTI. Consciente de suas responsabilidades, a médica cultivava carinho especial pelo jovem Fábio – vítima de grave acidente automobilístico –, cuja mãe, uma senhora amável, em poucos dias de conhecimento, cativara a simpatia de todos.
Disposta a ser dura, a médica não poupou palavras.
– O que o senhor está fazendo aqui? O senhor não pode entrar aqui assim. Está fora do horário das visitas. Está vestido de forma irregular. O senhor quer matar os pacientes? Quem deixou o senhor entrar? – a médica abriu a matraca.
Lá pelas tantas, já cansada de ralhar, a Dra. Gerusa resolveu parar para respirar e perguntou:
– Quem é o senhor?
– Eu sou o pai dele! – respondeu o homem em tom grave, apontando o rapaz sem, sequer, desviar o olhar do leito.
Gerusa estava preparada para tudo, menos para aquilo. Extremamente religiosa, dessas que se dizem ‘católica, apostólica, romana e praticante’, a médica não dava crédito às estórias sobrenaturais, mas aquilo fora demais. Num milionésimo de segundo, ela lembrou do plantão anterior, quando a mãe de Fábio contara como o marido morrera há quase cinco anos em acidente parecido com aquele que, agora, vitimara o filho.
Não havia muito o quê pensar.
Estava claro.
O homem surgido do nada, que, impassível, ouvia seu baile, era o pai de Fábio. Um calafrio a eletrizou.
Antes de dar meia-volta e sair em disparada, Gerusa ainda arriscou um soslaio ao homem. Não mais viu um ser humano, apenas um vulto espectral. Suportando a vontade de desmaiar, correu como nunca correra na vida.
Esbaforida, Gerusa chegou a sala dos médicos e, aos gritos, anunciou a presença do desconhecido na UTI. Instalou-se um pandemônio. Como que treinados em situações semelhantes, automaticamente a reunião foi interrompida e, todos correram à UTI para escorraçar o intruso. Mais experiente, o cirurgião-chefe ligou para segurança e comandou uma vistoria no andar.
– Aqui não tem ninguém, doutor – anunciou o vigilante, depois de inspecionar, pessoalmente, todos os recantos, inclusive os armários da UTI – Vamos procurar no restante do hospital.
A busca revelou-se inócua.
Segundo a segurança, só os doentes e o pessoal do plantão estavam no prédio. A cada “nada do homem”, um calafrio abalava Gerusa e nova razão justificava a desconfiança dos colegas com o descontrole da médica. O relógio ainda não atingira a primeira hora da madrugada, quando as buscas foram encerradas.
– Ninguém foi achado, Gerusa. Você deve ter imaginado a visita ou, quem sabe, visto um fantasma – brincou o cirurgião-chefe, que, embora também qualificasse como grave a presença de um intruso no hospital, achara exagerada a reação da médica, sugerindo que ela descansasse um pouco – Você está estressada – diagnosticou.
Pressionada, em meio a calafrios que a arrepiavam dos pés à cabeça e lágrimas que sulcavam o horror na fina camada de pó espalhado na pele pálida, a médica confessou a razão de seu medo. O relato foi estarrecedor.
– O pai, meu Deus, veio visitar o filho... – um calafrio convulsionou Gerusa, que, sem controle, deixou explodir a crise de choro reprimida até então.
E a reunião perdeu o prumo.
Um rosário de “Cruz, credo’s” e “Virgem Maria’s” correu o grupo, deixando bocas escancaradas e mãos trêmulas num círculo de medos e pavores incontidos. Sem que ninguém pedisse, fragmentos de histórias, suspeitas e sensações emergiram, compondo um mosaico escabroso. Não havia mais dúvidas: sendo o local onde a maioria dos óbitos ocorria, a UTI era mal-assombrada – uma espécie de portal por onde passavam almas que vinham e iam para o além. Assustada até a medula, a enfermeira-chefe anunciou que não entraria mais na UTI, incitando uma rebelião nos mais medrosos. Mesmo apavorada, a Dra. Gerusa assustou-se com a possibilidade dos pacientes ficaram sem companhia e assistência durante toda a madrugada e, sem condições de repreender o justificável motim, resolveu dar o bom exemplo. No curso de uma preleção rápida, conseguiu duas voluntárias e rumou à casa dos espíritos. Como se obedecessem a algum comando único, em silenciosa procissão, mãos nos bolsos, as três seguiram em confronto às coisas que perturbavam a paz da UTI. Quem visse a segurança como a coluna desafiava a incerteza jamais saberia do terço cofiado incessantemente pelas mãos gélidas guardadas no interior das batas. A expedição da coragem não resistiu ao primeiro ruído. Bastou o despertar de uma geladeira para que a segurança dada pelos terços desmoronasse e, em debandada, as voluntárias destemidas desembestassem de volta ao refúgio da sala de reuniões.
O espectro do fantasma espalhou-se, amedrontando a todos, independentemente de religião, sexo, profissão ou idade. Unidos no medo, talvez como último recurso, ateus se converteram e beatos exaltaram crenças, transformando o hospital num centro de fé. Em cada canto e recanto houve reza, louvores e cânticos invocando a ajuda de santos e deuses de todas as religiões. Mas o fervor não surtiu efeito. Convocado às pressas, um experimentado pai-de-santo desmoralizou o padre e o pastor já mobilizados e alertou que, resistente às rezas e orações, o ambiente continuava carregado, repleto de maus espíritos.
A madrugada avançou sem novidades. Na UTI, entregues à própria sorte e aos eventuais fantasmas, os pacientes continuavam ligados aos aparelhos. No outro lado do corredor, entrincheirados numa corrente de orações, médicos, enfermeiros e auxiliares não ousaram enfrentar as almas vivas e mortas que pudessem estar por lá.
Na manhã seguinte, uma nova equipe assumiu o plantão e a UTI voltou ao normal.
Soube-se, então, do desastre.
Dos quatro pacientes internados na UTI, três estavam mortos. Vivo apenas Fábio, que, para surpresa de todos, melhorara durante a madrugada.
Ao saber da notícia na capela, onde assistia a primeira missa do dia, a Dra. Gerusa convenceu-se de que, ao contrário do que pensara, o pai não viera buscar e, sim proteger Fábio da morte – mas, para não perder a viagem, levara os outros três.
Nova onda de calafrios eletrizou a médica, que fechou os olhos com fervor para rezar a oração dos mortos.
(*) Alexandre Santos é presidente do Clube de Engenharia de Pernambuco, ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural