A biblioteca do padre Altamiro
Era um casal bem sucedido, tanto na vida profissional quanto na formação da família, de um patrimônio robusto e de uma reputação ilibada. Carlão, marido amoroso e pai zeloso fazia todas as vontades da mulher Celina, que conciliava uma carreira estelar no funcionalismo com a apurada criação dos
filhos e o amor incondicional ao "paizão".
O único ato público em que o casal, já na maturidade, estava separado era na imperdível cachacinha que Carlão fazia questão de tomar nas tardes de sábado. E Celina, mais ligada aos lazeres produtivos domésticos, deixava de lado um leve resquício de ciúmes para se concentrar em coisas mais femininas, que iam dos cuidados com a imagem, a leituras, geralmente orientadas pelo padre Altamiro à elite das senhoras da cidade, metrópole regional de significativa importância.
E a vida seguia naquela tranquilidade que dava segurança aos filhos e netos e recheava a esperança dos mais jovens. Carlão, que fora perdendo seu ímpeto para o futebol, o cinema e a televisão, e até mesmo as leituras, só não abria mão do derradeiro bastião essencialmente masculino de sua existência, a cachacinha dos sábados...
Mas até o que vai sempre bem, um dia também, e nem sempre tão bem, fim tem...E foi o caso do ocaso de Carlão. Inesperado para os seus ainda vigorosos sessenta e poucos anos. Para Celina o choque equivaleu à perda de mais que a metade. Adorava o marido, e além de todas as homenagens e luto infinito prestados à sua memória começou a descambar violentamente para a depressão...num quadro deplorável.
Mas não demorou muito. Depois de uma sessão de terapia em grupo, onde se botava tudo para fora, foi alertada por uma senhora, que mal conhecia, aliás, de que a nebulosa cachacinha usava saias... E Celina só se arrependeu de não ter investido mais na biblioteca do padre Altamiro.