A verdadeira história de Juliana
A verdadeira história de Juliana
Alexandre Santos*
Maria Juliana Castro, conhecida em casa como 'Majuzinha' e, no trabalho, [conhecida] como 'Juju, corpinho de ouro', era a quenga mais solicitada de 'O sorriso da Santa', o puteiro mais sortido, respeitado e famoso de Floresta dos Navios, município do sertão do Pajeú, no interior de Pernambuco. Aliás, disposta a não ser passada para trás pela concorrência e sabedora da importância de mercadorias novas e suculentas para o negócio que abraçara por necessidade e vocação, Jaidete - cafetina experiente que, segundo diziam era testa-de-ferro de um contraparente afastado do delegado - dera carta branca à boneca Jonas - o invertido que aliciava meninas para a dura vida na prostituição rasteira prevalecente na região. Naturalmente, para não ficar por baixo, as outras boates (ou bares, conforme dissesse o luminoso pregado em cima da porta de cada um dos puteiros) faziam o mesmo e, sempre de plantel renovado, costumavam anunciar novos produtos à clientela sedenta de sexo e companhia.
Mesmo assim, como se, já com 17 anos, não disputasse fregueses exigentes com garotas mais jovens e 'menos usadas', quase virgens, mesmo - atributos muito apreciados pelos homens dali -, Juju era a mais requerida e 'não dava' para quem a queria, ficando desacompanhada apenas quando decidia, por conta própria, permanecer de pernas fechadas. Na realidade, ela era a campeã não só em 'O sorriso da Santa', mas, também, em todo o baixo meretrício. Todos os garanhões, independentemente da idade e condição econômica e social, a queriam e, em contraponto, todas as mulheres sonhavam em descobrir o truque que a fazia tão cobiçada. Havia uma razão para a curiosidade, pois permanecer como a 'preferida da casa' durante muito tempo em estabelecimentos como aquele era uma proeza de poucas.
E, sabendo-se cobiçada e invejada, Juju cumpria o seu affair com afinco e denodo.
Conforme a necessidade, Juju liberava o vulcão interior para corresponder ao fogo dos mais viris e impetuosos, extenuando-os de alegria e prostração na hora certa, ou, inversamente, com paciência e ternura, acolhia os inexperientes ou cansados pela idade ou pela vida, cobrindo-os de carinhos especiais até levantar aquilo que, depois de enchê-los de orgulhos nem sempre merecidos, fazia baixar amolecidos na falsa glória dos garanhões. Assim, dando aquilo que os clientes queriam, fazendo-os acreditar nas próprias fantasias, Juju se firmava como a maior cortesã que já passara pela zona de Floresta dos Navios, quiçá do Pajeú e, quem sabe, do sertão do Estado, em todos os tempos. Aliás, em reconhecimento a forma gentil e competente como tratava aqueles que a procuravam, Juju ostentava vasto rol dos clientes regulares, incluindo, mesmo, várias gerações de muitas famílias, atendendo, com igual carinho, pais, filhos e netos. Muitas vezes, Juju recebera de pais extremosos a tarefa de iniciar filhos imberbes, mal saídos da infância, na vida mundana. E, com cuidado para não assustar ou deixar traumas nos meninos, Juju fazia a sua parte, fazendo-os acreditarem-se machos. Com o tempo, em muitos círculos, instalou-se a máxima de que, para ingressar na vida adulta, os rapazes precisavam conhecer Juju. E, de freguês em freguês, crescia a fama e a clientela de Juju.
Como a maioria dos lupanares da cidade, disputando clientes renhidamente, sem respeitar sequer o horário das missas, 'O sorriso da Santa' ficava n'o caminho do céu, no oitão da Catedral do Bom Jesus, bem no centro da cidade. O nome da rua era outro, bem diferente, mas, pouco importando o político, militar, santo ou data homenageada na denominação oficial da prefeitura, todos a chamavam [a rua] de 'O caminho do céu' - uns porque atinavam ser ela o caminho para a igreja, em atalho seguro à casa de Deus, outros porque sabiam ser ela o caminho dos puteiros e, obviamente, dos prazeres da carne neles oferecidos. Por razões semelhantes, ao abreviar o nome do 'puteiro de Juju', como a casa passou a ser conhecida nos círculos ligados ao prefeito, alguns (os que pagavam pela santa que lhes fizesse sorrir) chamavam-no de 'O sorriso' e outros (os que pagavam pelos sorrisos que as santas lhes proporcionavam) chamavam-no de 'A Santa'. De todo modo, era em busca de sorrisos e de santas que os clientes gastavam dinheiro no estabelecimento.
Sem alternativa (e, segundo dizia a si mesma, somente por isso), a puta Juju continuava na vida consciente da efemeridade da profissão a que fora empurrada - um negócio no qual as fêmeas se desgastavam precocemente e eram consideradas velhas antes mesmo de completar os 25 anos de idade. Com outros planos para o além da aposentadoria forçada que a aguardava dali a uns poucos anos, ela não se via [ganhando a vida] como cafetina, como Jaidete (a qual, diga-se de passagem, quando jovem também fora quenga de prestígio). Aliás, disposta a fazer um pé de meia, Juju se esmerava no affair, passando muito tempo no trabalho, oferecendo serviços de qualidade insuperável a muitos clientes.
Juju trabalhava muito. Vale dizer que, sempre abstraída com preocupações presentes e futuras, ela desenvolvera um método de fazer o corpo atuar automaticamente, dispensando-a de qualquer tipo de concentração para o exercício da função. O condicionamento era tal que, nos momentos a sós com os clientes, mesmo que gritasse, fungasse e ofegasse como uma louca, parecendo completamente entregue para atiçar mais e mais os sonhos de poder e posse daqueles que a tinham, Juju preservava o coração, a mente e o espírito incólumes, como se estivesse numa feira ou na missa. Ela sabia que, ao contrário do corpo (que, todos sabem, "lavou tá novo"), se conspurcasse o coração, a mente ou o espírito com as putarias que fazia por dinheiro, estaria perdida para sempre. E, assim, imune ao envolvimento capaz de comprometer as coisas que realmente lhe interessavam, Juju mergulhava no trabalho, deixando ser mergulhada por todos que podiam pagar pelos seus serviços.
Na realidade, Juju trabalhava muito porque precisava de mais dinheiro do que as colegas. Não por ser perdulária ou gananciosa, mas porque, além das despesas regulares com o sustento, cuidados com a cútis e roupas, como também ocorria com as demais, e da poupança [que fazia] em precaução do futuro incerto, era da puta Juju que vinha o dinheiro usado por Majuzinha, banda santa de Maria Juliana Castro, para o amparo à família e caridade aos necessitados. De fato, a cada mês, sempre contrariando a vontade de Jaidete - que nunca deixava de ter algum cliente abastado ansioso por ela -, Juju gozava folga e viajava à Carnaubeira da Penha, um remoto distrito de Floresta dos Navios, sua terra natal, quase na fronteira com Belém de São Francisco, onde, liberando a Majuzinha que carregava dentro de si, era recebida como benemérita generosa e virtuosa. Ali, em comportamento bem diferente daquele do dia-a-dia na sede, depois de fazer a festa dos parentes e dos vizinhos, emprestando pequenos valores, pagando contas alheias na farmácia e na venda, visitava orfanatos e asilos com presentes e conforto para os abandonados e carentes de toda ordem, distribuindo parte dos ganhos advindos da função no rendez vous.
Uma mulher na flor da idade que transpirava feminilidade e bondade por todos os poros. Essa era a Maria Juliana que, independentemente da estiagem que começava a castigar a região, visitava Carnaubeira da Penha mensalmente. Não era, portanto, sem razão a admiração despertada por Majuzinha em todos os homens do distrito. Aliás, entre uma benemerência e outra, Majuzinha costumava receber (e rejeitar) a corte de muitos interessados, inclusive do solteirão Josué, dono de uma pequena movelaria e, talvez pelo negócio, talvez pela segurança e maturidade proporcionada pelo avançar da idade, considerado o melhor partido da vila. Mas, Maria Juliana sabia, mesmo se Majuzinha quisesse, Juju não podia se dar ao luxo ter namorado como qualquer outra moça da sua idade. Namoro e casamento não faziam parte dos planos imediatos de Maria Juliana e, se acontecessem, só o seriam depois, muito depois, do completo desaparecimento de Juju, a mulher mais conhecida e falada da zona de Floresta dos Navios.
Maria Juliana tinha razão. Como sempre ocorria, com o fim da folga, ao tomar o estreito e tortuoso caminho de volta à sede, pouco a pouco, à medida que se afastava de Carnaubeira da Penha (ou, se preferir, se aproximava de O caminho do céu), a banda Majuzinha se recolhia até quase desaparecer, dando lugar ao lado Juju de Maria Juliana, a mulher que, sem recato, em troca de dinheiro, distribuía felicidade a todos que a quisessem e por ela pudessem pagar. A viagem era longa e desconfortável, mas nada parecia abalar a menina, que, consciente do momento vivido, recalcava o que restava das ansiedades humanitárias de Majuzinha e, já disposta a voltar a abrir as pernas, se preparava para retomar a faina. Assim, com um "voltei" gritado da porta, Juju enchia 'O sorriso da santa' de alegria e a festa recomeçava. Como atestavam a bolsa cada vez mais pesada e estufada guardada em local secreto, o quarto só seu sempre de porta fechada e o sacolejo da cama sentido pela casa inteira, Juju continuava a mesma e, quem sabe, até melhor, mantendo a clientela e conquistando outros fãs.
Por aqueles dias, levando a saudade de prazeres indescritíveis e, em contrapartida, deixando uma bela maçaroca de cédulas, muitos tinham passado pelos braços (e pelas pernas) de Juju. Tão logo souberam do retorno de Juju às funções, muitos se apressaram em desfrutá-la. Na longa fila - silenciosamente testemunhada pelo Santo Antônio que, ladeado por vidros de perfume, não saía do tampo da velha penteadeira -, estavam figurões, como o coronel Fausto Serafim, o doutor Souza Ferraz, o fazendeiro Hermes Barbosa, o delegado Alfredo Barros, o juiz João Gomes e, mesmo (que ninguém soubesse, Cruz, credo!), o padre Augusto da Silva e o bispo Álvaro Ferreira.
Com Juju, todo dia era dia de festa. Mas, surpreendendo a todos, um dia, a festa acabou.
A santa desapareceu, o sorriso esmaeceu, o vai-e-vem parou.
Com efeito, aplicando um rude golpe na alegria d'O sorriso da santa, menos de uma semana após voltar da sua terra, de repente, Juju passou mal e, depois de uma inédita ânsia de vômito, não fosse o ombro amigo de Jonas, teria se esborrachado no chão. Foi um corre-corre. Preocupada com a joia que fazia a prosperidade do seu negócio, Jaidete logo providenciou um carro-de-aluguel e, às pressas, Juju foi levada ao hospital. Excesso de trabalho ("ela está trepando demais", disse o invertido), falta de alimentação ("ela está comendo muito pouco", comentou a cafetina), praga de mulher casada ("parece que a patroa do coronel Hermes descobriu o chamego deles", informou Salomé, a quenga que, resignadamente, pegava os sabujos de Juju). Todos opinaram e todos erraram.
Depois de meia hora recolhido ao consultório, examinando Juju de cima à baixo, futucando, apalpando (e apalpando mais um pouquinho sempre que podia), ouvindo, olhando por fora e por dentro, quase virando-a pelo avesso, o doutor Souza Ferraz chamou Jaidete à parte:
- A notícia não é boa, Jaidete - o doutor falou todo cerimonioso, com aquela cara fechada que só os médicos sabem fazer - Juju está grávida. Grávida de sete semanas.
A cafetina não estava pronta para a notícia e, sem saber o que dizer, o olhou boquiaberta
- Nem olhe para mim. Faz tempo que eu não como Juju - disse o médico, esquecendo que desfrutava a moça com regularidade britânica - O pai pode ser qualquer um. Soube que, nestes últimos dias, até D. Álvaro Ferreira conheceu o paraíso na cama de Juju.
Nesse ponto, o doutor Souza Ferraz tinha razão. Pela movimentação no quarto de Juju era impossível identificar o pai. Afinal de contas, a lista dos que tinham provado os carinhos de Juju era enorme. Alheia às suspeições e muito debilitada, Juju permaneceu internada por algum tempo, dando espaço ao disse-me-disse. Quase que imediatamente, por entre a macharia desolada em constante sobrevoo pelo caminho do céu e fazendo frequentes pousos no vuc-vuc da cidade, correu o boato de que, consciente da inevitável debacle de Juju, Jaidete já orientara Jonas a buscar uma mulher capaz de substituí-la e passar a ostentar o título de 'imperatriz da zona', despertando a fúria de Salomé, para quem, agora, era a sua vez de reinar. Segundo dizia a boca miúda do baixo meretrício, nada disso iria acontecer, pois, decidida a manter o cetro, Juju iria abortar e continuar na vida. Eram muitas as versões e boatos.
Aqueles foram dias de expectativa n'O sorriso da santa e por todo caminho do céu. O fato é que, para tristeza da clientela masculina e decepção da cafetina Jaidete, nunca mais Juju botou os pés no lupanar. No início, por recomendação médica, depois, por opção própria.
De fato, passado o momento mais delicado do resguardo, poucos dias depois da alta do hospital, ainda insegura e enfraquecida, passando bem distante da Catedral do Bom Jesus (cujo pároco, o padre Augusto da Silva, secretamente, estava entre seus fregueses mais salientes e assíduos), Juju foi à Igreja de Nossa Senhora do Rosário rogar por coragem e força para as coisas do dia-a-dia. Sem esconder a barriguinha, que crescia a olhos vistos, Juju se ajoelhou diante do Senhor Bom Jesus dos Aflitos e, compenetrada, no curso de mistérios rezados com fervor, pediu socorro. Dessa vez, ela queria orientação especial, pois os acontecimentos dos últimos dias a tinham deixado completamente desnorteada. No fundo, Juju estava muito assustada.
Não era para menos.
Fora a própria Juju ninguém mais sabia, mas aquela gravidez era impossível. Com efeito, além de estéril (o diagnóstico de útero atrofiado e invertido fora confirmado por exames reincidentes), na semana em que teria sido engravidada, Juju estivera adoentada e, como registrado no arremedo de diário cultivado desde o ingresso n'O sorriso da Santa, ela não atendera a qualquer cliente. Não havia qualquer dúvida de que aquela gravidez era impossível. Mesmo assim, ela estava grávida.
Só podia ser milagre.
Sem resposta para o mistério, Juju sentia ser o filho que desenvolvia no ventre um sinal. Um sinal de que precisava mudar. Para Juju, não havia dúvida de que algo muito superior a tudo conhecido queria sua saída da vida desregrada do rendez-vous. Era isso o que faria. Mas, como? Um dia, mais, cedo ou mais tarde, a poupança que vinha amealhando acabaria e, sem qualquer habilidade, dificilmente conseguiria um emprego decente, especialmente em Floresta, onde, mal afamada como era, nenhuma mulher casada deixaria o marido empregá-la e, por outro lado, nenhum patrão a trataria com o respeito que gostaria de receber. E, intercalando as orações com ideias e pensamentos, Juju esperava a orientação do Senhor Bom Jesus dos Aflitos. Inicialmente, pensou mudar-se para bem longe, onde ninguém a conhecesse - talvez Betânia ou, mesmo, Belém - para recomeçar a vida de forma discreta. Depois, já em franco desespero, pensou em entregar a criança ao convento de Nossa Senhora das Dores, onde poderia, em seguida, se oferecer como voluntária para servir ao bispado e, junto com a chance de servir a Deus, ter o filho sob seus olhos.
Foi quando aconteceu o segundo milagre.
De repente, ao lado de Juju, apareceu o senhor Josué, o dono da movelaria de Carnaubeira da Penha - o qual, segundo reconheceu alguns anos mais tarde, do nada, fora atraído à igreja como se alguma coisa o chamasse. A surpresa foi demais para Juju. Pressionada pela nova realidade e imersa num denso clima de insegurança pessoal, a visão de alguém conhecido de Majuzinha fez Maria Juliana desabar e, dando grande susto em Josué, explodir em crise convulsiva de choro. De nada valeram as tentativas feitas por Josué para acalmá-la. Ainda demorou bastante até Maria Juliana se acalmar e ter condições de falar. Aí, no entanto, talvez impulsionada pela emoção ou pela necessidade de desabafar e livrar-se de segredos guardados por muito tempo, com a voz embargada e sussurrada como convinha ao ambiente santo em que estavam, ela falou tudo o que, durante a ainda curta vida adulta, escondera sob sete mantos dos parentes e conterrâneos. Contou tudo. Tudinho, mesmo. Cuidando, apenas, de adiantar certas explicações e justificativas, Juju contou como ganhava a vida e sobre a miraculosa gravidez que a fez se afastar do trotoir.
Ao contrário do esperado, ao invés do sarcasmo mundano ou reprimenda moral que fariam desaparecer o piso que ainda a sustentava, Maria Juliana ouviu palavras de compreensão e de conforto. De fato, revelando ser homem muito diferente daquele que [ela] suspeitava quando rechaçava a sua corte lá em Carnaubeira, o solteirão não apenas ofereceu apoio, mas, também, confessou-lhe antigo amor e, surpreendendo-a ainda mais, se dispôs a desposá-la, desconsiderando a sua vida pregressa em Floresta e assumindo o filho que ela ganhara do mundo como sendo seu.
Um mundo novo se abriu para Maria Juliana. Em Josué - um homem bem diferente daqueles que a queriam apenas para o deleite carnal, prova do caráter bom do homem que Deus colocara na face da TTerá - estava a chance que precisava para Maria Juliana recomeçar a vida.
Dali em diante, as coisas caminharam céleres.
Embora ninguém esperasse que Majuzinha casasse tão rápido e logo com o solteirão Josué, a família se encheu de alegria e tratou de planejar uma grande festa (com o cuidado de não acontecer como no casamento da prima Izabel, nos arredores de Betânia, quando chegou a faltar cidra para os convidados). Mas, contrariando o desejo de todos, por decisão dos noivos, as bodas ocorreram sem alarido. Apenas o sim perante o juiz, a troca de alianças e, pronto, Maria Juliana e Josué estavam casados, devendo, segundo o discurso oficial, serem felizes para sempre. E foi o que aconteceu. Maria Juliana e Josué viveram, então, os melhores momentos das suas vidas. Cuidando da barriga, que não parava de crescer, radiante de alegria com a vida regrada que o casamento trouxera, Maria Julieta fazia a felicidade de Josué, cozinhando, limpando, lavando, passando e, ainda, cuidando dele como nunca fizera com nenhum outro homem. De sua parte, agradecendo a Deus pela mulher que tinha ao lado, Josué trabalhava os móveis para garantir o sustento do casal, torcendo para voltar para casa e encontrar a sua Maria.
Como em todos os casamentos apressados e sem festa, o matrimônio de Maria Juliana e Josué deu o que falar. E, antes, mesmo, de começarem comentários sobre a diferença de idade entre eles, o pronto anúncio de que o casal esperava um herdeiro despertou a língua ferina das fofoqueiras e, sem qualquer indício mais consistente, o falatório nas esquinas do distrito passou a dizer que, desde muito tempo, eles namoravam escondidos, prevaricando a torto e a direito, e o casamento só viera porque Maria Juliana "pegara um bucho". Embora fruto da maledicência alheia, a ilação era parcialmente verdadeira e, obviamente, seria confirmada com o nascimento 'prematuro' do bebê.
Os fuxicos e comentários só provocaram tribulação ao casal no sexto mês após o casamento, quando chegarem aos ouvidos de Josué. Na ocasião, no entanto, ao lembrar da volumosa barriga de Maria Juliana, que, de fato, começara a estufar a mais de oito meses -, Josué temeu pela honorabilidade da jovem esposa. E, para preservá-la, decidiu enfrentar a seca que tostava a caatinga e sair de Carnaubeira por uns tempos.
Não houve dificuldade para convencer a mulher - que, conhecendo Josué como conhecia, não tinha razões para questionar os motivos do marido. Na realidade, cada vez mais fragilizada pela gravidez avançada, ao "vamos passar uns tempos longe daqui", sem esboçar qualquer protesto, Maria Juliana preparou um bornal com algumas roupas e mantimentos para a viagem de destino e duração incertas. E, em poucas horas, estavam na estrada que levava à Betânia.
Houve, no entanto, uma mudança de rumo. De fato, por alguma razão desconhecida, talvez influenciado pela grande estrela que, dia ainda claro, começara a brilhar no horizonte, Josué mudou de ideia e redirecionou a jornada em direção a Belém. E, desafiando o cenário árido deixado pela longa estiagem, a minúscula caravana tomou a trilha que margeava o leito seco por onde, um dia, escoara o estreito fio de água do riacho do Capim Grosso, seguindo viagem para longe dos mexericos ofensivos a Maria Juliana.
A viagem prosseguiu sem altercação por alguns dias até, subitamente, contrariando as expectativas do casal, que contava com mais tempo até o advento, Maria Juliana começou a sentir as contrações do parto. Era hora de Deus agir e, ao Seu modo, Ele o fez, escrevendo entrelinhas de um texto que lhes cabia decifrar. Foi o que Josué fez.
No meio da catinga, longe de qualquer hospital ou suporte especializado, Josué procurou abrigo numa fazenda, mas, premido pela chegada da hora, sem tempo sequer para avisar da presença não autorizada ou pedir ajuda aos proprietários, reprisando notório episódio ocorrido há muitos séculos, adentrou a estrebaria, aonde, por entre bois, jumentos, bodes, carneiros e cavalos, acomodou a mulher. Era ali que, cercada de animais, longe das pessoas e de qualquer assistência médica, num ambiente inapropriado para o parto - talvez em punição pela forma especialíssima como engravidara, talvez por excesso de zelo do marido, talvez em provação ao destino reservado à família, quiçá hipocrisia ou, mesmo, vergonha - Maria Juliana daria a luz.
Tudo isto, no entanto, era irrelevante diante do milagre da vida.
Deus quisera assim e, assim, aconteceria.
E, naquele arremedo de lapinha, sob o testemunho de Josué, o marido que a adorava e tudo faria para agradá-la e protegê-la, e de animais, que, assustados com a movimentação, orquestraram um alarido coletivo, parecendo adorar o menino que chegava ao mundo, Maria Juliana pariu.
A agitação despertou proprietários e trabalhadores, que, prontos a escorraçar os invasores, armas em punho, correram à estrebaria. Aquela não seria a primeira vez que precisariam usar da força para rechaçar intrusos. A visão do milagre da vida, que, sob forma de menino, iluminava aquele ambiente tão rústico, no entanto, abrandou-lhes o coração, convertendo aquilo que seria um confronto odiento em visita de paz e alegria. Ensarilhadas as armas, cada qual a seu modo e segundo suas possibilidades, aqueles homens rudes confraternizaram o menino luminoso que nascia, cobrindo-o de presentes: fumo para espantar insetos, um trancelim de ouro para custear os primeiros dias na Terra e um pote de mel para alimentar a família.
Só, então, Josué pode contemplar a mulher e seu rebento.
- Como é lindo o seu filho, Maria - disse Josué - Que nome daremos a ele?
- Vamos chamá-lo José Carlos.
E o milagre se fez!
(*) Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural