A noviça
A noviça
Alexandre Santos*
Otávia. Noviça Otávia. Este foi o nome religioso dado pela superiora Domícia à Dorothéa, a filha mais nova (e mais sapeca) do Doutor Gervásio, juiz de Direito da pequena Porto Real do Colégio, cidade com pouco mais de 20 mil habitantes, escondida no mapa de Alagoas pela sombra da viçosa Arapiraca, bem na fronteira com Sergipe.
A decisão de mandar Dorothéa para o convento da congregação das Irmãs Ursulinas, na Ilha de Santa Rita, em Marechal Deodoro, fora tomada pela mãe, Dona Valéria – mulher austera, mas que, diga-se de passagem, nos seus tempos também passara uma temporada sob os cuidados das filhas de Deus para se livrar de um certo embaraço e da fama que, seguramente, adquiriria se as beatas da Matriz de Nossa Senhora da Conceição descobrissem o caso dela [de Dona Valéria ] com o delegado Esdras, homem mais velho e, ainda por cima, casado e pai de duas filhas. Com uma ponta de saudades (da vida irresponsável daqueles anos dourados), Dona Valéria lembrava que, depois de vários dias de castigo, graças aos conselhos do Padre João Inácio, os pais a tinham mandado para a Ilha de Santa Rita, onde ficaria com as Irmãs Ursulinas até passarem as razões do infortúnio da família. Quando, nove meses mais tarde, um pouco mais gorda (não tanto como estivera até a pouco e, gradualmente, recobrando as formas que a faziam irresistível), retornou de Marechal Deodoro, a jovem Valéria não mais encontrou Esdras, que, vítima do prestígio do velho coronel, avô da moça, fora transferido para ninguém-sabe-onde com a jura de perder o emprego (e, talvez, a vida) se ousasse voltar ou, ao menos, dar notícia sobre o seu novo paradeiro. No começo, ressabiada, sem uma distração para aplacar o calor vindo das entranhas insaciadas, fora difícil, lembrava Dona Valéria, mas, depois, com a imagem de boa moça preservada, não tardou a conhecer o juizinho chegado há pouco na cidade, que, apaixonado, a aceitara furada como já era e, sem nunca mais falar no assunto, a desposara pensando em ter o furacão só para si, dando a ela três belas filhas.
Puxadas ao Dr. Gervásio, as duas meninas mais velhas eram poços de virtude e recato, enchendo os pais de orgulho com boas notas no colégio e comportamento exemplar na igreja. Com a caçula Dorothéa, no entanto, a coisa era diferente. Herdeira do sangue irrequieto e voluptuoso da mãe, desde sempre, a menina mostrara o que era e viria a ser, colocando pitadas de sal no açucareiro e [pitadas] de açúcar no saleiro, filando nas sabatinas da escola, inventando pecadinhos para compensar aqueles que cometia de verdade, coisas assim.
Pois é. Quando chegou a hora, deu no que deu.
Enquanto as irmãs mais velhas, sob o olhar severo de Dona Valéria, se resguardavam ao máximo, suspirando pelos cantos, esperando serem escolhidas por algum rapaz da sociedade, Dorothéa partia para a luta. Em seu imaginário de mulher dos novos tempos, as moças não eram para ser escolhidas, como se fossem frutas numa feira. Com direitos iguais, elas, também, deveriam escolher os homens com os quais queriam passar a vida. E, mais ainda, se [elas] deveriam escolher, precisariam também prová-los antes de fazer a escolha. E, assim, tão logo foi possível, Dorothéa começou a fazer a escolha do seu homem, provando tantos quanto achou necessário.
No início, ainda recatada, começou com um a mão-naquilo, passando rapidamente para um aquilo-na-mão e logo um aquilo-nas-coxas. Depois, num gradiente efervescente de ousadias, passou para o aquilo-na-boca, a boca-naquilo, aquilo-naquilo, pela frente e por detrás e tudo o mais que a cabeça inventasse e a consciência (que era pouca) deixasse.
Dorothéa era sinônimo de festa.
Mesmo, assim, desconfiada (só desconfiada, vejam só que doidivanas) que sua atitude libertária não fosse do agrado da tradicional família de Porto Real do Colégio, Dorothéa fazia tudo, de tudo, mesmo, mas só fazia por baixo dos panos, às escondidas, pensando que, além dos seus escolhidos, ninguém mais soubesse das estripulias.
Coitada! Àquela altura, fora a própria família, gato e cachorro e Deus e o mundo sabiam do furor como Dorothéa abatia os machos que lhe passavam pela frente. Até, mesmo, o velho pároco João Inácio - a quem ela sonegava a maior parte dos pecados, burlando a confissão semanal com a invenção de deslizes cuja remissão não merecia, sequer, um único Pai Nosso ou uma Ave! Maria – sabia das coisas e a tinha no rol dos casos especiais da paróquia..
A dura faina da menina em busca do homem a quem pudesse chamar de 'senhor, meu marido' continuou sem freios até o 07 de julho, dia da festança comemorativa do aniversário da cidade, na Praça da Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Naquele dia de triste memória para os faziam e recebiam a alegria de Dorothéa, sem saber que a peixada do almoço fizera efeito e abreviaria o retorno dos pais, a moça resolveu experimentar o jovem médico da cidade, sucessor do recém-aposentado Dr. Marco Valério.
Foi um desastre.
Dr. Gervásio, que se dissolvia no banheiro, não viu, mas, lembrando seus próprios tempos de traquinagens, Dona Valéria flagrou a filha cavalgando o bruto como se nada mais houvesse no mundo, num mandrilhar ritmado que engolia e devolvia pedaços de safadeza em meio a sussurros entrecortados de prazer. O berro de Dona Valéria interrompeu a súcia, fazendo o médico correr nu pelas ruas de Porto Real do Colégio, com o traseiro branco à mostra e as coisas a balançar, em episódio que ficou inscrito para sempre nos anais mundanos da cidade.
Uma semana depois, Dorothéa não estava mais pulando de alcova em alcova em Porto Real do Colégio e, sim, recolhida a uma cela individual no convento das Ursulinas, em Marechal Deodoro. Um mês depois, ao contrário das roupas provocantes que usava para estimular a libido dos varões da cidade, [Dorothéa] usava o hábito das noviças, que escondia as curvas, as reentrâncias e as protuberâncias tão cobiçadas pelos mancebos. Ali, na clausura, não seria mais Dorothéa, a jovem devassa que se dava até fazer amolecer o mais rijo dos mais rijos e, sim, Otávia, a noviça piedosa que, como as outras filhas, encheria a família do Doutor Juiz Gervásio de orgulho.
Sem alternativa, Dorothéa decidiu mortificar os desejos da carne e, pouco a pouco, assumindo aquilo que imaginava ser o comportamento apropriado para alguém com o nome de Otávia, se engajou voluntariamente nos serviços internos da Congregação, conforme queria a superiora Domícia. Assim, ainda sem autorização para deixar o convento, a noviça Otávia assumiu a lavanderia, passando o dia a lavar, enxaguar, passar, dobrar e guardar as roupas de todas as religiosas. Cercada por hábitos, véus, estolas, entregue à monotonia da nova vida (se é que aquilo podia se chamar de vida), Dorothéa conseguiu acalmar a carne por alguns dias. O vulcão acordou dias mais tarde, quando sentiu o cheiro na roupa de uma tal Irmã Cláudia - freira que jamais vira, mas sabia ser uma favorita da madre superiora e, talvez por isso mesmo, encarregada do apoio espiritual às comunidades da Praia do Francês. Ali, naquela roupa, ela fungou mais uma vez para confirmar a suspeita, tinha cheiro de homem. Não havia qualquer dúvida - e, de homem, ninguém podia duvidar, a Dorothéa que morava no interior da noviça Otávia entendia e entendia muito.
Aquela descoberta mudava muita coisa. Dorothéa alegrou-se. O cheiro deixava claro que havia vida, mesmo para quem estava ali.
E, decidida a deixar Dorothéa aparecer de vez em quando (afinal de contas, uma safadezazinha nunca fez mal a ninguém), a noviça Otávia procurou a madre Domícia para pedir algum refrigério. Era a primeira vez que ela entrava no escritório maior do convento e, impactada pela pompa da sala, ficou surpresa quando, na pequena galeria, em grandes quadros, viu uma fotografia colhida numa das visitas que a sua família fizera ao monsenhor João Inácio (na foto, o padre estava entre seus pais, Valéria e Gervásio, com ela [Dorothéa] no colo e as irmãs ao lado – Dorothéa lembrou que, na casa dos seus pais, em Porto Real do Colégio, havia uma fotografia igual). A noviça estava esperançosa, especialmente por conta do carinho como a superiora costumava tratá-la.
A conversa, no entanto, não teve o desfecho que Dorothéa esperava.
Ao ouvir que, por estar sarada dos impulsos que a fizeram pecar no passado, a noviça Otávia queria autorização para acompanhar a Irmã Cláudia nas visitas à Praia do Francês, a madre superiora perdeu a compostura e, antes de desfalecer, após o grito "Não", deixou escapar um "vocês não podem sequer se conhecer, imagine andar juntas".
A reação da madre Domícia colocou uma pulga na orelha da noviça Otávia, que, naquele momento, decidiu investigar o mistério. Assim, ao invés de buscar socorro para a velha madre superiora, a noviça aproveitou a situação para fuçar o escritório. Ela meteu o bedelho em tudo. Muitas fotografias do padre e da sua família, muitos hábitos esmaecidos pelo tempo, até, mesmo, uma calçola rendada, mas, fora isso, nada fora do contexto. Já pensava desistir da busca quando, na biblioteca, bem atrás de outros livros, como se tivesse sido propositalmente escondida, a pequena coleção de cadernos manuscritos. Era o diário pessoal da madre Domícia, que, a julgar pela grossura dos tomos e pelo cuidado como foram guardados, tinha muito a revelar. A noviça não teve dúvidas. Acomodou a velha superiora semi-desfalecida na única poltrona do escritório e, cobrindo-os com hábitos, levou os cadernos para a sua cela. Estava disposta a esmiuçar a vida da madre e, com isso, quem sabe, descobrir algum segredo que animasse a mesmice que vinha vivendo.
Se pensava dormir, Dorothea não devia ter começado a leitura. A longa narrativa era cicuta pura. Nem sempre a madre Domícia fora religiosa, dizia o texto. Na realidade, de religiosa, Domícia não tinha nada e, a julgar pelos registros mais antigos, diante de um macho asseado, não conseguia segurar o rabo ou manter as pernas fechadas por mais de dez minutos. Aliás, esta fora a razão do seu ingresso na Ordem das Ursulinas. Ao contrário de Dorothea, que fora colocada no convento como forma de afastá-la dos homens, com Domícia fora o inverso - por conta própria, ela entrara para a vida religiosa com o objetivo de ficar próxima de um diácono chamado João Inácio, a quem seduziu com seus encantos de mulher ainda nos primeiros dias na clausura. Segundo o diário, aqueles foram os anos mais felizes de Domícia, que passou a ser visitada e usada regularmente pelo jovem padre por anos a fio.
Sem conseguir pregar os olhos, excitada com a forma chula como a madre contava as intimidades com aquele a quem, por toda a vida, ouvira suas confissões ("ainda bem que nunca contei meus verdadeiros pecados ao Padre João Inácio", pensou a noviça), Dorothéa quase desmaiou quando leu que, tempos mais tarde, durante uma espécie de exílio do convento convenientemente arranjado para 'tratamento médico', Domícia dera luz a uma menina fruto daquele amor proibido, a qual, para salvar as aparências, fora dada em adoção a uma família abastada e sem filhos lá de Porto Real do Colégio com a única exigência de que lhe fosse dado o nome de Valéria.
A noviça sentiu o chão desaparecer.
Estava ali. Escrito com todas as letras. Contrariando a versão oficial registrada nos cartórios, sua mãe era filha da madre Domícia com o padre João Inácio. Chocada, Dorothéa pensou em parar a leitura, mas não conseguiu. O diário continuava tórrido. A safadeza ainda prosseguiu por certo tempo, mas, meses depois, denunciados pela Madre superiora de então - uma mulher amarga e recalcada porque, segundo o diário, nunca sentira o jorro quente do amor nas mãos pegajosas, na boca lambuzada ou dentro de si -, Domícia e João Inácio foram punidos pela diocese. Aliás, ao contrário do rigor esperado pela superiora, o Bispo - que, muitos sabiam, não era santo e também tinha segredos inconfessáveis -, decidiu apenas separar o casal. Domícia foi condenada a viver por seis meses na clausura do Palácio Episcopal, onde ficaria à disposição do Bispo e, de sua parte, ao invés de perder a batina pela prática regular da luxúria e violação do celibato, o padre João Inácio foi designado para a paróquia de Porto Real do Colégio. E, assim, mesmo longe da mãe biológica (cuja ausência, segundo o diário, era compensada por orações e penitências indescritíveis nas mãos do Bispo), Valeria pode crescer sob o olhar onipresente do pai que nunca conhecera, mas que, tanto das missas e novenas, como das visitas à família e, principalmente, das coisas ouvidas no confessionário, monitorava a ela e a tudo o que lhe dissesse respeito.
Dorothéa não conseguia parar de ler.
Os tomos seguintes contaram sobre o amor, o cuidado e, mais adiante, a preocupação do padre João Inácio ao perceber na filha Valéria o mesmo fogo que atiçava Domícia. O tom pesaroso do relato cresceu até a previsível noticia de que, sem conseguir controlar a libido, já envolvida com o delegado Esdras, sempre que podia, Valeria também se dava ao médico Marco Valério. Graças ao segredo da confissão, o padre João Inácio foi o primeiro a saber do atraso das regras de Valéria. E, como pai compreensivo, ele cuidou de tudo para evitar o escândalo. Como acontecia na época com solteiras prenhas - sem sequer desconfiar que, lá atrás, num passado esquecido, ela própria fora o epicentro de caso semelhante, só que percorrido de dentro para fora do convento -, trazida pelos pais e pelo padre João Inácio, Valéria chegou às Ursulinas de Marechal Deodoro, sendo entregue aos cuidados da freira Domícia. Tratada como se fosse (e, de fato, era) uma filha preciosa, Valeria ficou no convento até o nascimento de uma bela menina, que, dada à Ordem, recebeu o nome de Cláudia por sugestão da freira Domícia. Dorothéa engoliu em seco. Então, explicando o chilique da superiora, a Irmã Cláudia - que, a julgar pelo diário, como todas as mulheres da família, também não resistia a um macho - era, de fato, sua irmã carnal.
Dorothéa parou de ler. Ali estava, nua e crua, a história da sua família.
Daquele dia em diante, sempre que estavam a sós, a Irmã Otávia chamava a madre Domícia de avó e, sempre que podia, acompanhava a Irmã Cláudia à Praia do Francês, de onde nunca voltavam sem, pelo menos, ter um pecado a mais para esconder do padre confessor.
(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores (UBE) e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural