FILHOS DE MARIA

Ele era o quarto filho do senhor Galileu, gentilmente apelidado de Seu Leleu. As demais filhas tinham a sua importância e, apesar das constantes afirmações no sentido de que eram amadas de forma igual, notava-se certa predileção por aquele menino que realmente parecia ter algo de muito especial. O fato de ser o primeiro filho homem rendeu-lhe a graça de ser chamado pelo mesmo nome do genitor. Não que isso lhe trouxesse muito orgulho, mas está aí uma coisa na qual não se pode exercer qualquer domínio. O nome é uma das coisas mais pessoais que o ser humano possui e, via de regra, é escolhido por terceiros. No entanto, seu nome, não era a principal razão para que fosse tratado daquela forma tão especial. Desde o princípio da gestação de Maria ocorreram fatos muito incomuns e acontecimentos que marcariam para sempre a chegada daquele menino. Os primeiros sinais de gravidez, por exemplo, já davam uma mostra do que estaria por vir. Nove meses de dores, náuseas e desmaios. Nunca se ouvira falar em um processo de gravidez com tanta dor e tanta dificuldade. Naquela noite chuvosa e fria, Maria havia sido internada numa maternidade municipal com fortes dores abdominais e sangramento e, em certo momento, chegou-se, inclusive, a se cogitar a possibilidade de uma interrupção da gravidez. Maria, porém, jamais permitiria tal possibilidade. Sua persistência em dar prosseguimento ao processo quase lhe custara a própria vida por seguidas vezes. Passava das três da manhã quando ela entrou definitivamente em trabalho de parto. Vencida pelas dores, desmaiou, sem saber que a sua vida e a de filho que resistia em seu ventre se encontravam agora entregues à própria sorte. Seu Leleu detestava hospitais e decidiu não acompanhá-la. Aguardava em casa as notícias sobre a cirurgia, orando a Deus. Como era de se esperar de um homem de fé, buscava de joelhos respostas para tamanha questão. Foi quando recebeu a notícia mais dura que podia ouvir: “Galileu está morto”. A voz da funcionária da maternidade entrou em seus ouvidos como uma punhalada traiçoeira. Como admitir que Deus pudesse ceifar uma vida de forma tão precoce? Com as mãos trêmulas, o coração em pedaços, os olhos marejados e um nó na garganta que quase lhe sufocava, caminhou até a maternidade. Cerca de cinco quilômetros. Cercado por toda sorte de angústias. Aquela fora, sem dúvidas, a caminhada mais longa de sua vida. No fundo, parecia avançar como quem não quisesse chegar. Diante de tantas situações adversas, não lhe vinha à mente a percepção de que saíra de casa trajando chinelos e pijama. Roupas simples e impróprias, surradas, encharcadas e coladas à pele. Não era uma cena muito fácil de se compreender e aquilo causava estranheza aos transeuntes por onde passava. Um homem na noite, trajando pijama, sob a chuva fina, caminhando e chorando, caminhando e sofrendo, caminhando e morrendo. Foi justamente assim que percorreu a sua via crucis, como se não houvesse mais ninguém no mundo ou alguma coisa que lhe importasse. Naquele momento só tinha aquela dor por companhia. A cada passo que dava morria um pouco mais de si. Quando chegou à recepção da maternidade e se identificou como sendo o genitor da criança morta percebeu-se um grande alvoroço entre os funcionários e também uma infeliz coincidência. A senhorinha mais antiga da recepção ficou encarregada de desfazer todo o mal-entendido. Fez saber que naquela enfermaria onde Maria se encontrava internada havia outra mulher que também se chamava Maria. Uma mulher que também dera entrada naquela noite para dar à luz um filho. Explicou que as duas, coincidentemente, teriam entrado em trabalho de parto quase que simultaneamente e por conta disso teriam exigido redobrada atenção de toda a equipe médica. Impressionava saber que duas mães, com o mesmo nome, dentro do mesmo quarto tiveram sortes tão diferentes. Naquela noite sombria uma criança morria e, outra, surpreendentemente, resistia. Morria uma Maria enquanto, outra, milagrosamente, prevalecia. O filho de Seu Leleu sobrevivera então. Ele, ao contrário do que se podia pensar, não ficara bravo e tampouco guardara rancor contra a equipe médica. Apenas agradeceu a Deus por ter sido poupado daquela tragédia. Do mesmo jeito que havia chegado ali, caminhando, sozinho, decidiu retornar para casa. Dessa vez, entretanto, não estava triste ou desolado, mas embriagado por uma felicidade indescritível. Sob a chuva fina que caía, Seu Leleu caminhava e gritava: Galileu vive! Meu filho Galileu está vivo! A equipe médica, porém, refletia sobre tudo o que havia ocorrido naquela noite e se a decisão tomada em comum acordo havia sido a mais acertada. Não se tratava mais de uma questão de ética, de lei ou de moral, porque um novo destino acabara de ser traçado: naquela noite nenhuma mãe choraria; criança órfã também não haveria.

Vander Cruz
Enviado por Vander Cruz em 15/04/2020
Reeditado em 18/04/2020
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