A noite que não consigo esquecer
Um conhecido que não me recordo muito bem quem era deu a notícia a papai de que a vovó estava à beira da morte. Meu velho recebeu a informação como uma punhalada, mas retesou o corpo, fechou a fonte de suas lágrimas para que nada se derramasse antes do momento que julgava ser o devido, ajustou a voz que queria embargar, agradeceu o amigo e o despediu.
Chamou mamãe e relatou–lhe a situação. Combinaram de sairmos no dia seguinte ao amanhecer para tentarmos fazer companhia a minha querida avó durante seus últimos momentos de vida.
Morávamos numa vilinha no interior do Maranhão. A vovó, o vovô e alguns filhos moravam numa outra vila que distava de nossa casa, cerca de dois dias de viagem a pé. Não havia nada naquele lugar no final da década de cinquenta.
Saímos bem cedo e caminhamos o dia inteiro. Estávamos exaustos. Foi no período do sol mais ardente que caminhamos por quatro horas atravessando o carrasco (região árida). Só lá para as três da tarde, foi que voltamos a andar envoltos pela floresta, que nos refrescava um pouco. Percebi que papai e mamãe tinha uma certa reserva de vigor, mas eu, em meus onze ou doze anos, já havia superado meus limites.
Durante todo aquele dia, tínhamos passado por apenas dois casebres à beira daquela estradinha carroçal, como a chamávamos por ser carroças os únicos veículos que passavam por ela, uma ou duas vezes por mês. Os poucos moradores da beira da estrada eram muito conhecidos dos viajantes, bem como dos habitantes das vilas das redondezas. O morador por quem primeiro passaríamos na sequência de nossa viagem seria o seu Valdivino, que estava há umas duas horas de caminhada.
Papai resolveu que dormiríamos ali. Alumiando com uma lamparina, entrou no mato se afastando um pouco da margem do caminho, para limpar um lugar onde pudéssemos atar nossas redes e dormir. Enquanto isso, mamãe e eu procurávamos alguns gravetos à beira da estrada e, por isso, fomos, sem perceber, nos distanciando de onde papai estava.
A lua estava bonita. A noite estava iluminada. Era por volta das nove da noite. Ouvimos um barulho no mato. Olhamos uma para a outra tentando comunicar alguma coisa, mas antes que decidíssemos o que fazer, aquele ser no meio da estrada, em nossa frente. Nosso terror foi tamanho, que paralisamos. Não conseguíamos correr, gritar, nem, sequer, fechar os olhos para não vermos o que imaginávamos que seria a nossa morte.
Aquele ser tinha a aparência de um cão gigante quando punha as quatro patas no chão. Mas, quando se pôs em pé e olhou fixamente para nós, pudemos ver, seu rosto de humano, porém, coberto de pelos; seus olhos avermelhados, a boca grande com dentes pontiagudos. Os pelos do seu corpo eram mais compridos do que os dos animais que conhecíamos.
Ele jogava as patas no chão e sacolejava-se violentamente para todos os lados. O ronco, alternando graves e agudos, que saía de sua garganta, parece ecoar em meus ouvidos sempre que me lembro dele.
Uma vez mais, pôs-se em pé, fixou os olhos em nós e partiu em nossa direção. Como já disse, estávamos paralisadas pelo terror, e a única coisa que pudemos fazer foi esperar pelo desfecho, nossa morte.
Avançou para cima de nós a uma velocidade absurda, fazendo todo aquele barulho que eu nunca tinha ouvido antes e jamais o ouvi depois. Chegando perto, o máximo possível, de mamãe e eu, desviou-se e sumiu no mato. Ficamos caídas, aterrorizadas. Não tínhamos forças para nos levantar.
Depois de um intervalo, com muito esforço, começamos a nos movimentar e fomos até onde papai havia entrado. Gritamos por ele, que veio a nosso encontro apressadamente. Contamos tudo a ele e minha mãe pediu, chorando, que continuássemos a viagem até a casa de seu Valdivino.
Custou-lhe acreditar no nosso relato e assentir ao pedido de mamãe, mas vendo o desespero dela, consentiu em seguir. Continuamos a caminhada até a casa do velho conhecido. Quando seu Valdivino viu papai, o cumprimentou e pediu que entrasse. Papai contou-lhe o ocorrido e o velho lhe disse que outras pessoas já tinham comentado sobre um suposto lobisomem nos arredores. Dormimos ali aquele resto de noite.
De manhã cedo, quando nos preparávamos para sair e seguir viagem, fui com mamãe ao banheirinho que ficava nos fundos da pequena propriedade. Lá, vimos, próximo a uns pés de tamarindo, um espojadouro cheio de pelos muito compridos, não podiam ser pelos de mulas ou outro animal da espécie. Voltamos assustadas e quando nos aproximamos da casa, vimos nos troncos das mangueiras, enormes rasgos que só podiam ter sido feitos por fortes garras afiadas. Com um certo desespero, chamamos papai e seguimos. Só contamos a segunda parte da história quando chegamos ao nosso destino.
Até hoje, quando conto esse fato aos meus filhos ou a algum amigo, percebo em seus rostos, um certo ar de descrença. Sinto uma certa tristeza quando isso acontece, mas, logo me alegro por saber que a verdade não depende da crença de quem quer que seja.