Dona Maria Cristina: santa ou assombração?
Gumercindo estacionou o caminhão em frente sua casa ao voltar da longa viagem. Estranhou ao perceber a rua deserta. Era a rua principal da vila onde morava. Bateu na porta, chamou a esposa, não havia ninguém.
Desceu um pouco pela rua, ouviu ruídos vindos de mais adiante. Continuou andando e avistou por entre as brechas de uma das cercas de sarrafos, uma aglomeração embaixo das mangueiras no quintal de um dos vizinhos.
Dirigiu-se para o local. Todos da rua estavam lá, inclusive sua esposa e seus dois filhos. No meio da multidão, havia uma figura para a qual todo mundo olhava admirado. Alguns tinham expressões de reverência como se estivessem diante de um ser sagrado, outros se mostravam mais espantados que reverentes, havia ainda, aqueles com ar de deboche.
Foi se enfiando por entre as pessoas a fim de ver que figura era aquela que causava todo aquele rebuliço na vila. Quando chegou à frente, teve uma enorme surpresa. Era uma senhora pela qual havia passado umas três horas antes. Ela vinha caminhando na beira da estrada, ele parou o caminhão e ofereceu-lhe uma carona, ao que ela recusara. Ficou intrigado com aquilo. Não tinha parado em lugar algum, como a mulher havia chegado antes dele?!
Perguntou à sua mulher, sobre desde quando ela estava ali. Ela respondeu que chegara à vila pelas oito da manhã. Já eram umas cinco da tarde. Gumercindo ficou muito assustado. Perguntou ainda:
--- Por que todos estão em redor dessa mulher?
--- Porque ela curou o seu Alberto do açougue, da cegueira; a dona Delfina da banca de alface, da perna aleijada e mais uns três meninos que as mães trouxeram da outra rua. Por isso tá todo mundo aqui ao redor dela.
O confusão de Gumercindo ia se transformando em assombro. Ficou ali olhando, a mulher. Que mistério era aquele?! Como poderia estar ali desde a manhã se lhe oferecera carona poucas horas na estrada?! Seria uma pessoa normal, uma santa, ou seria um espectro do mal?
A senhora aparentava quase setenta anos, estava com as mesmas roupas longas e amareladas que a tinha visto no caminho. Tinha a mesma bengala em que se apoiava, os cabelos compridos, grisalhos e sem trato; a pequena trouxa de roupas também estava ali. Temia estar delirando, mas o que seria normal àquelas alturas? Contou a experiência que tivera com a velha na estrada. Sua mulher que já estava muito assustada, ficou assombrada.
Gumercindo anestesiado olhava para a senhora, desejoso de entender alguma coisa, quando o olhar da mulher fixou-se no dele por uma curta fração de tempo. Antes de retirar o olhar fez um aceno com um meneio de cabeça para o moço, indicando que já o conhecia. Isso só piorou a situação do homem, que ficou mais atemorizado.
Havia na multidão, uma espécie de burburinho, que cessou imediatamente, quando a velha começou a dizer, com uma voz alta e gemida, num tom de pedido de misericórdia:
--- Não! Num faz isso cum ela, não! A veinha num faz mal a ninguém. Purque quere fazê essa marvadeza cum a veinha?!
--- Quem quer fazer malvadeza com a senhora? --- perguntou seu Mariano, o dono da casa em cujo quintal ela estava.
--- Aqui tem um grupin de rapaz que cumbinô de tacar fogo no cabelo da veinha. Num faz isso, não! A veinha num faz mal a ninguém. --- respondeu a velha.
Seu Mariano mandou que verificassem no meio da multidão e logo acharam um moleque com um frasco de querosene e uma caixa de fósforo. Perguntado sobre suas intenções, confirmou, chorando, o que dona Maria Cristina tinha falado.
As pessoas ficavam cada vez mais impressionada com o que a velha fazia. Uma mulher da multidão perguntou:
--- Dona Maria, o que a senhora veio fazer em nossa vila?
--- Minha fia, eu só tô de passage pur aqui. Eu tô indo pru rii Jordão. Mais hoje eu vô drumi nesse lugá.
A mulher que fizera a pergunta olhou para o marido, sussurrou alguma coisa e ele assentiu com a cabeça. Então, ela fez outra pergunta:
--- A senhora quer dormir essa noite na minha casa?
--- Muito obrigado, minha fia, mais eu num posso. Tu veve cum um ome, mais tu nun é casada.
Naquele mesmo momento, dona Maria Cristina olhou para seu Mariano e perguntou se ele a deixava dormir ali mesmo, em seu quintal, embaixo daquela mangueira. O homem tentou convencê-la a dormir em um quarto de hóspede que tinha em sua casa, mas ela, com veemência, recusou e insistis que fosse embaixo da árvore. Sem ter mais o que fazer, seu Mariano consentiu.
Quando anoiteceu, seu Mariano pediu que todos fossem para suas casas. Dona Maria Cristina comeu alguma coisa que a esposa de seu Mariano lhe dera e, sem demora, estendeu no chão uma mantinha que tirara da trouxinha que carregava, e se deitou.
Lá pelas tantas da madrugada, seu Mariano se levantou e foi dar uma olhada pelas frestas para a velha no quintal. Pôs um dos olhos numa das brechas e viu embaixo do pé de manga, dona Maria Cristina olhando para ele, deitada em rede muito branca e cercada de muitas velas acesas.
Seu Mariano, todo arrepiado e trêmulo, voltou para o quarto. Não entendia o que estava acontecendo. Mas tinha a certeza de que a velha tinha visto o seu olho na fresta. Isso fazia com que sua agonia aumentasse muito. De uma vez por todas, reconheceu que tudo aquilo se tratava de algo que excedia tudo o pudesse imaginar.
Pela manhã, bem cedo, o dono da casa se levantou, abriu a porta da cozinha e olhou a velha não estava lá. Havia ido embora, ou simplesmente, desaparecera sem que ninguém a visse. Seu Mariano, também, nunca teve coragem de revelar a ninguém o que tinha visto naquela madrugada. Registrou em um caderninho e deixou no meio de uns livros que tinha na estante. Só agora, depois de sua partida, é que pude inserir esse acontecido na história.
Gumercindo estacionou o caminhão em frente sua casa ao voltar da longa viagem. Estranhou ao perceber a rua deserta. Era a rua principal da vila onde morava. Bateu na porta, chamou a esposa, não havia ninguém.
Desceu um pouco pela rua, ouviu ruídos vindos de mais adiante. Continuou andando e avistou por entre as brechas de uma das cercas de sarrafos, uma aglomeração embaixo das mangueiras no quintal de um dos vizinhos.
Dirigiu-se para o local. Todos da rua estavam lá, inclusive sua esposa e seus dois filhos. No meio da multidão, havia uma figura para a qual todo mundo olhava admirado. Alguns tinham expressões de reverência como se estivessem diante de um ser sagrado, outros se mostravam mais espantados que reverentes, havia ainda, aqueles com ar de deboche.
Foi se enfiando por entre as pessoas a fim de ver que figura era aquela que causava todo aquele rebuliço na vila. Quando chegou à frente, teve uma enorme surpresa. Era uma senhora pela qual havia passado umas três horas antes. Ela vinha caminhando na beira da estrada, ele parou o caminhão e ofereceu-lhe uma carona, ao que ela recusara. Ficou intrigado com aquilo. Não tinha parado em lugar algum, como a mulher havia chegado antes dele?!
Perguntou à sua mulher, sobre desde quando ela estava ali. Ela respondeu que chegara à vila pelas oito da manhã. Já eram umas cinco da tarde. Gumercindo ficou muito assustado. Perguntou ainda:
--- Por que todos estão em redor dessa mulher?
--- Porque ela curou o seu Alberto do açougue, da cegueira; a dona Delfina da banca de alface, da perna aleijada e mais uns três meninos que as mães trouxeram da outra rua. Por isso tá todo mundo aqui ao redor dela.
O confusão de Gumercindo ia se transformando em assombro. Ficou ali olhando, a mulher. Que mistério era aquele?! Como poderia estar ali desde a manhã se lhe oferecera carona poucas horas na estrada?! Seria uma pessoa normal, uma santa, ou seria um espectro do mal?
A senhora aparentava quase setenta anos, estava com as mesmas roupas longas e amareladas que a tinha visto no caminho. Tinha a mesma bengala em que se apoiava, os cabelos compridos, grisalhos e sem trato; a pequena trouxa de roupas também estava ali. Temia estar delirando, mas o que seria normal àquelas alturas? Contou a experiência que tivera com a velha na estrada. Sua mulher que já estava muito assustada, ficou assombrada.
Gumercindo anestesiado olhava para a senhora, desejoso de entender alguma coisa, quando o olhar da mulher fixou-se no dele por uma curta fração de tempo. Antes de retirar o olhar fez um aceno com um meneio de cabeça para o moço, indicando que já o conhecia. Isso só piorou a situação do homem, que ficou mais atemorizado.
Havia na multidão, uma espécie de burburinho, que cessou imediatamente, quando a velha começou a dizer, com uma voz alta e gemida, num tom de pedido de misericórdia:
--- Não! Num faz isso cum ela, não! A veinha num faz mal a ninguém. Purque quere fazê essa marvadeza cum a veinha?!
--- Quem quer fazer malvadeza com a senhora? --- perguntou seu Mariano, o dono da casa em cujo quintal ela estava.
--- Aqui tem um grupin de rapaz que cumbinô de tacar fogo no cabelo da veinha. Num faz isso, não! A veinha num faz mal a ninguém. --- respondeu a velha.
Seu Mariano mandou que verificassem no meio da multidão e logo acharam um moleque com um frasco de querosene e uma caixa de fósforo. Perguntado sobre suas intenções, confirmou, chorando, o que dona Maria Cristina tinha falado.
As pessoas ficavam cada vez mais impressionada com o que a velha fazia. Uma mulher da multidão perguntou:
--- Dona Maria, o que a senhora veio fazer em nossa vila?
--- Minha fia, eu só tô de passage pur aqui. Eu tô indo pru rii Jordão. Mais hoje eu vô drumi nesse lugá.
A mulher que fizera a pergunta olhou para o marido, sussurrou alguma coisa e ele assentiu com a cabeça. Então, ela fez outra pergunta:
--- A senhora quer dormir essa noite na minha casa?
--- Muito obrigado, minha fia, mais eu num posso. Tu veve cum um ome, mais tu nun é casada.
Naquele mesmo momento, dona Maria Cristina olhou para seu Mariano e perguntou se ele a deixava dormir ali mesmo, em seu quintal, embaixo daquela mangueira. O homem tentou convencê-la a dormir em um quarto de hóspede que tinha em sua casa, mas ela, com veemência, recusou e insistis que fosse embaixo da árvore. Sem ter mais o que fazer, seu Mariano consentiu.
Quando anoiteceu, seu Mariano pediu que todos fossem para suas casas. Dona Maria Cristina comeu alguma coisa que a esposa de seu Mariano lhe dera e, sem demora, estendeu no chão uma mantinha que tirara da trouxinha que carregava, e se deitou.
Lá pelas tantas da madrugada, seu Mariano se levantou e foi dar uma olhada pelas frestas para a velha no quintal. Pôs um dos olhos numa das brechas e viu embaixo do pé de manga, dona Maria Cristina olhando para ele, deitada em rede muito branca e cercada de muitas velas acesas.
Seu Mariano, todo arrepiado e trêmulo, voltou para o quarto. Não entendia o que estava acontecendo. Mas tinha a certeza de que a velha tinha visto o seu olho na fresta. Isso fazia com que sua agonia aumentasse muito. De uma vez por todas, reconheceu que tudo aquilo se tratava de algo que excedia tudo o pudesse imaginar.
Pela manhã, bem cedo, o dono da casa se levantou, abriu a porta da cozinha e olhou a velha não estava lá. Havia ido embora, ou simplesmente, desaparecera sem que ninguém a visse. Seu Mariano, também, nunca teve coragem de revelar a ninguém o que tinha visto naquela madrugada. Registrou em um caderninho e deixou no meio de uns livros que tinha na estante. Só agora, depois de sua partida, é que pude inserir esse acontecido na história.