Sete Portera
As sextas-feiras têm uma maneira de nos alegrar a alma de uma forma ininteligível. E não era diferente para Joaquim, quando começou, em uma conversa muito amistosa, relatar um ocorrido, ao amigo de longa data sr. João, que coloquialmente era chamado de seu Jão. O seu Juaquim, como era chamado pelos mais próximos, falava o nome de seu amigo de um só suspiro. Uma só sílaba conseguia expressar anos de uma amizade que nem a morte, e em certos casos ela reforça os laços, poderia converter em pó.
— Seu Jão — começou ele —, tenho uma história de "arripia" os cabelos de um careca!
Enquanto preparava o amigo para uma das mais escabrosas histórias vividas por ele.
— Ara, seu Juaquim! ande logo, me conte, que eu não sou lá dado a mistérios. Não faça suspense, homem!
Ao ouvir essas palavras, Joaquim sentia como que um furor na alma antes de chegar ao ponto derradeiro do seu causo. Como que em viver: o prazer estava no processo empreendido pelo que contava a história. Todos os mais chegados sabiam como Joaquim gostava de prender a atenção de seus interlocutores antes mesmo de começar seus relatos. E continuou ele:
— Passei a semana passada inteira esperando a sexta-feira, para poder ir pousar no Sete Portera. O senhor sabe o quanto eu gosto de posar na beira do rio, né?!
— Ôh, se sei, seu Juaquim! Aquele rio dá peixe que é uma beleza. Das duas vezes que fui lá, o senhor lembra? Acabou a minhoca! Tivemos que picar um peixe inteirinho para podermos continuar até o sol raiar.
João falava de uma forma mais entusiasmada do que a que seu amigo ouvia, pois sua história nada mais era do que algo corriqueiro no Sete Portera.
— Vai escutando — falou Joaquim para o amigo — eu passei por algo que, de longe, é parecido com isso.
E se enchia de um entusiasmo que poderia ser tateado pela atenção de seu amigo João.
— Estou esperando você continuar!
— Calma, vou chegar lá. Nem parece que esperou nove meses para nascer, seis meses!
— Eu estou calmo! Você é que gosta de deixar todo mundo aflito com suas histórias.
Enquanto João proferia essas palavras seus olhos se faziam vidrados nos do amigo, como que querendo extrair algo de extraordinário de dentro dele. Olhos que poderiam sugar a alma de qualquer espírito desavisado. Enquanto isso, Joaquim voltou à sua narrativa:
— Na quinta-feira à noite falei para a Rosa que eu ia pescar no dia seguinte. Ela me perguntou onde eu estava pensando em ir. Eu disse que seria no Sete Portera. Você tinha que ter visto o olhar que ela lançou em mim! Perguntou se eu iria só. Falei que até aquele momento, sim. Então ela deu um jeito de arrumar alguém para ir comigo.
— E quem foi?
— Foi o marido da minha filha. Conhece o Gilson?
— Sei quem é! O marido da Matilde.
— Pois, na sexta, ele chegou aqui no final da tarde. Veio só com a cara e a coragem. Ele não é muito de pescar, sabe! Mas tem vontade de servir aos seus.
— É um bom rapaz, das poucas vezes que conversamos deu para notar. E tem muita sorte por casar com a tua filha.
— Eu já acho que é o destino. É o destino dele ter ela para fazê-lo feliz. E pense num casal feliz...
— E vocês foram como?
— Fomos com o carro dele. Ainda bem que não tinha chovido por aqueles dias. Ele tem um cuidado danado com aquele carrinho. Minha filha chega a ter uma pontinha de ciúmes dele. Vê se pode!
— Os jovens de hoje são assim mesmo. Empregam muito tempo e atenção às suas coisas, às vezes sentimentos.
— Homem do céu, o carro foi cheio de coisas. Tinha até barraca.
— Para que barraca? Vocês foram para passar a noite pescando.
— O Gilson disse que seria muito bom ter algo para nos esconder de uma eventual chuva.
— Lá isso é verdade! Elas vêem do nada. Ultimamente a previsão do tempo tem se equivocado. São Pedro anda pregando peça em todo mundo.
— Bom, o diacho é que não choveu nada, mas a barraca foi usada mesmo assim. Partimos, como eu já te disse, com o carro cheio de coisas. A ida foi de uma tranquilidade que só. Mas quando nós fomos nos aproximando do Sete Portera, eu fui ficando agoniado. De início achei que fosse ansiedade e pressa de chegar lá e começar o festival de surpresa.
A coisa mais impressionante na pesca é não saber o que vai fisgar. Aquele sentimento de incerteza quando o peixe é fisgado, logo enche os pescadores de um contentamento sem igual. A dúvida dura apenas alguns segundos. Não se sofre por não saber, se contenta muito mais.
Assim que chegaram, prepararam tudo para dar início ao que seria mais uma noite corriqueira de pesca ao relento. Para seu Joaquim, era mais que um simples chegar ao lugar desejado e jogar o anzou na água. O cuidado que ele tinha com tudo, era como que de um artista que consegue ver a escultura em um broco de mármore antes de dar a primeira martelada no seu formão. Gilson, por conta própria, se encarregou de armar a barraca. Tinha planos para com ela no decorrer da noite.
Seu Joaquim sabia que o parceiro de pesca não duraria muito nessa jornada. Longa jornada noite a dentro. Estavam os dois muito próximos um do outro, pescando à vontade. Algumas horas percorridas e foram ficando pesadas as pálpebras de Gilson. Sentia o peso das horas acordado empurrando-as para baixo. De quando em quando fisgava algo que era muito grande, tranquilo e não tentava fugir ao se ver pegar por ele. Da perspectiva de Joaquim, o genro estava dando trotes com seu sono alado. Quando viu que a qualquer momento ele teria que tirar seu companheiro da água, falou para ele ir para a barraca descansar um pouco.
— Não precisa, não, seu Joaquim!
— Sei que não. Não é em você que estou pensando! Não quero ter que pular na água para te tirar quando você pegar um grandão.
— Se é assim... Só quero ajudar! Qualquer coisa dá um grito.
— Só espero pegar os que vc estava fisgando ali!
E irrompeu em um riso que aos poucos foi se transformando em gargalhada.
Agora, seu Joaquim estava só. E e visitava mais longínquas lembranças. Viajava tão longe, chegava ao ponto de quase se perder em pensamentos. Era este o seu esporte preferido, e a pesca era o meio como sair dele. Se pensasse tanto, sem ter um maneira como voltar, e essa maneira era o simples ajudar de uma bóia na água, poderia se perder para sempre, pensava.
Fazia um bom tempo que seu companheiro de pesca estava na barraca, e Joaquim a algum tempo não voltava a si. Quando se viu trazido de súbito para terra firme, mas a bóia estava tão inerte quanto seu genro na barraca.
O que foi que tirou Joaquim de seu passeio pelo labirinto preferido? O maior dos mistérios da natureza humana! A morte, mas de uma forma indireta.
— Gilson, acorde!!! — dizia ele enquanto abria a barraca para se certificar, se seus chamados haviam sido atendidos.
Gilson passeava como um rei em seu castelo dos sonhos. Mas em um instante viu seu castelo ruir. Do império dos sonos o seu foi deposto. — Seu Joaquim, o que houve??? O senhor viu uma cobra foi?
— Antes fosse! Vamos arrumar as coisas para ir pra casa!
— Mas olhe o relógio, ainda são três da madrugada! O senhor sempre fica até o sol raiar. O que aconteceu?
— Vamos embora!! Vamos, me ajude a arrumar as coisas.
— Me conte, homem! Me conte! Estou ficando agoniado com isso!
— Apenas me ajude! Não quero falar sobre isso.
Arrumaram tudo com uma rapidez voraz. Em um instante estavam saindo. Gilson se consumia de curiosidade. O que poderia ter feito seu sogro ficar daquele jeito? fez inúmeras indagações a ele e a si, mas não conseguiu chegar a lugar algum. Ao mesmo tempo que sua mente se via perdida e sem esperança de chegar a um veredicto, seu corpo aí pelo caminho já traçado na vinda.
— Olha, não sei o que houve, mas para o senhor deixar os peixes e a vara para trás, não pode ser coisa boa.
— Eu só quero chegar em casa. Lá você vai saber de tudo.
— Como o senhor quiser!
A pressa de chegarem logo em casa os fez perceberem uma estrada interminável. Sentiam anos se passando em cada quilômetro percorrido. Quando chegaram em casa tinham mais de cem anos cada. Chegou, não falou nada e foi direto para cama. O companheiro teve que se encarregar das explicações que não explicavam nada. Sabiam que o sono pode curar as almas mais perturbadas.
Ao acordar, Joaquim percebeu que toda a família estava na sala esperando para saber do acontecido.
— O que aconteceu?
Em uníssono todos irromperam:
— Nos diga você!!
E Gilson completou:
— O senhor me deixou muito aflito lá no rio. Agora chegou a hora de contar o que houve.
— Pois, eu conto! Eu estava com o anzou na água, e observava a bóia com muita atenção. Quando dei por mim, passava na minha frente um caixão, se tinha ou não algo dentro, não sei, mas boiava como uma jangada ou uma balsa. Quando vi aquilo, pensei que fosse alucinação. A primeira coisa que fiz foi coçar os olhos, com muita força, na esperança de que desaparecesse. Não foi alucinação! Eu estava bem acordado.
Para seu Joaquim foi como se a morte o tivesse visitado. Ficou com a impressão de ser um aviso ou algo do tipo. Se tem uma coisa que ninguém espera encontrar é a morte, e, certamente, um caixão é onde ela nos deita para dormir o sono eterno. O conforto é o de menos. O que realmente importa, e ninguém nunca pensa nisso, é que os vivos se encarregam de tudo.