Vírus no Velho
Seu Josimar há pelo menos vinte e seis anos morava naquela vila. A casa 12, com a frente toda em tijolos, quase em acabamentos, fora o terror de muitas crianças na infância. Todo bairro tem sua lenda, seu personagem assustador que gera teorias. Ali, na Vila São Bento, Seu Josimar era o monstro que entraria pela janela. E para não se aborrecer, após a morte da esposa, e o sumiço do único filho, resolveu não mais sair de casa todos os dias.
Mas alguma coisa mudou no mundo. E de repente, nos telejornais. O homem que só saía de casa durante a noite, ouviu que um vírus invadia o planeta, e se espalhava pelo mundo. Alguns chamavam de FEBRE, outros, diziam que era uma gripe apocalíptica, que em questão de tempos, reduziria a população mundial pela metade, tamanho o grau e velocidade de contágio. Ele suspirou. Para Seu Josimar era apenas mais uma notícia para gerar o caos e histeria, e assim, os remédios eram mais vendidos. Mas algo lhe chamou a atenção. Uma repórter esmirrada, com feições orientais, disse em algum momento da matéria que o vírus no velho era mais impiedoso. Que nos idosos, a morte era quase que instantânea.
Neste dia, Seu Josimar largou a xícara de café ainda quente sobre uma pilha de livros velhos e aumentou sua tv. Colou seu ouvido esquerdo – o menos surdo – e pode sentir os pelos se eriçarem ao chegarem perto da tela da tv de tudo, 29 polegadas que comprara na Copa do Mundo de 1998. Enquanto fazia força para escutar melhor, com seus olhos cansados ele olhava para as fotografias sobre a cômoda, e para os retratos na sua parede descascada pelo tempo. A FEBRE estava ganhando força, e os idosos, mais cedo ou mais tarde, iriam sucumbir. Seu Josimar então, sorriu.
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Na manhã seguinte, com seus pés trêmulos, o senhor de setenta e três anos calçou seu chinelo gasto, pegou um pacote de biscoitos velho, que estava jogado sob um banco de madeira na cozinha, e ainda com a voz dos jornalistas na cabeça, parou diante da porta de sua casa. Segundo ouviu durante toda a madrugada colado à tv, o vírus chegara do oriente, e até então, no Brasil, mais ou menos duzentas mil pessoas já tinham contraído, em sua maioria, idosos. Para Seu Josimar, era o descanso merecido. Era a paz em sua vida. Após a morte de sua esposa, sua vida se tornou vazia. Seu filho não lhe ajudava em casa, quando muito, apenas lhe levava água durante suas crises de tosse asmática, contraída por anos de fumo.Um dia, seu filho sumiu. E a casa ficou mais vazia, ainda que mais tranquila. Desde então, só, o senhor apenas saía quando necessário, tendo que escutar provocações das crianças na rua, dos bêbados mais antigos nos bares, e olhares reprovadores pelas esquinas.
Agora era a hora. Um vírus, um organismo que vive para se reproduzir e perpetuar sua espécie, poderia salva-lo da dor que era viver. Sem coragem para se matar, sem forças para tentar algo mais rápido, só lhe sobrara entregar-se à febre. E seria naquele domingo.
Abriu a porta de sua casa e fechou os olhos aos primeiros raios da claridade do dia. O som da porta rangendo era aconchegante, era como se fosse a voz de sua casa dizendo-lhe “Vai com Deus, e cuidado!”. Ele sorriu levemente enquanto apalpava os bolsos. A vila estava vazia, não havia crianças, velhos ou pessoas transitando. As latas de lixos estavam reviradas pelos cães que passavam por debaixo do portão de ferro. Ele caminhou devagar. Sentia o ar pesado. Ao longe, assustou-se com o som de uma sirene que, minutos depois, passou acelerada na porta da vila.
Ao sair, deu de cara com uma rua vazia. Resolveu caminhar. Andou pelas calçadas, entrou no mercado agora sem qualquer vestígio de ser humano. Prateleiras reviradas, garrafas quebradas e amassadas no chão. Aquele caos o deixava feliz. Era um caos ao ar livre, sem janelas, sem portas, e claro, sem gritos. Ele não devia estar ali. Iguais a ele deviam ter vários velhos, mas morrendo de medo da FEBRE.
A sair do mercado, sentou-se na praça qual crescera jogando damas ou futebol. Observou ao redor, e pode ver um filme de sua vida. O primeiro encontro com a esposa, e o último, quando ela respirou pela última vez. Lembrou-se dos carnavais sob os sons das marchinhas, e das meninas que o achavam o cara mais bonito da rua. Sorriu e ajeitou a roupa, como se ali, naquele instante, ele quisesse estar bem para a morte que poderia chegar a qualquer momento.
Saiu da praça, entrou na igreja, entrou nas lojas e reclamou dos preços das coisas. Quebrou algumas televisões, socou alguns bichos de pelúcias, e numa loja de móveis, deitou-se na cama enquanto cantarolava algo de Luiz Gonzaga. Foi sentindo o dia terminar, via um ou outro andando pelas ruas, geralmente moradores dela, buscando o que comer. Voltou até a igreja, e retirou seu velho radinho de pilhas do bolso. Com o som abafado, o radialista anunciava que mais pessoas estavam morrendo pela FEBRE, e que o número de idosos duplicara em quarenta e oito horas no mundo todo.
Seu Josimar deixou seu corpo escorregar encostado em uma parede. Sentou-se no chão, e observou o ponto de ônibus vazio. Novamente respirou fundo e sentiu o pulmão doer. Seus olhos ardiam de tal forma que pareciam que lhe tinham jogado sal marinho neles. O peito pareceu pesar. A boca secou. E então, com a visão embaçada, viu uma silhueta conhecida surgir à sua frente e estender-lhe a mão. Na mão, uma aliança familiar, que ficou ainda mais familiar quando as mãos se juntaram. Sentiu sono. Sentiu cheiro de flores. Sentiu um toque na sua bochecha enrugada, como um afago tranquilizante.
Tudo ficou escuro.
Fim
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