Caminhos de luz
Cena das mais impressionantes era a procissão com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, realizada pela Irmandade do Sagrado Coração de Maria: grupo de piedosos fiéis que se dedicavam a divulgar o culto à Mãe de Cristo, através da reza do terço.
Quando a Imagem ia para a comunidade de Matos de Cima, percorria todas as residências. De católicos, é claro. Enorme alvoroço. Todos ficavam na maior expectativa. Os pequenos, eram os mais entusiasmados. Tudo os fascinava: a decoração do altar, as meninas vestidas de anjo, o sem-fim de velas acesas. Oportunidade de ouro para alguma traquinagem, como pingar vela quente em algum desafeto, ou na própria mão, até quando fosse possível aguentar.
Sempre os donos da casa, mais frequentemente a dona, tinham o privilégio de conduzir a Imagem, à frente da procissão que se formava. Após rápida oração e um canto de despedida, o grupo se espichava pelos trilhos escuros que ligavam as moradias.
Como bando de vaga-lumes brincando de desfile militar, o grupo serpenteava pasto afora, entoando cantos tradicionais: “A treze de maio na cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria. Avééé, Avééé, Avé Maria...”.
As senhoras e as moças puxavam os cantos com entusiasmo. Os homens, mais retraídos, ar grave, chapéu na mão, acompanhavam a certa distância. Era surpreendente ver aqueles senhores, tão simples no dia a dia, transformados em autênticos cavalheiros: roupa bem passada, chapéu novo, sapato engraxado. Afinal, Nossa Senhora merecia. A meninada fazia a festa. Por pouco, não colocava fogo em tudo. As velinhas bruxuleantes em suas mãos ameaçavam os pastos, as roupas dos colegas e mesmo o cabelo das meninas. As mães iam à loucura com aquelas estripulias.
Chegando à casa que receberia a Imagem, a família aguardava no portão de entrada para a entrega solene. Entravam todos para a sala e começava-se a reza do terço, intercalando os cantos já tradicionais. No final cantava-se: “Com minha Mãe estarei, na Santa Glória, um dia, junto à Virgem Maria...”
Depois da reza, quase sempre, havia um agrado para todos. Cafezinho com biscoito, copo de refresco com bolachas ou coisa parecida.
Ficavam todos por ali, conversando, já pensando na próxima reza. A casa que hospedava a santa, durante os dois ou três dias de intervalo, virava ponto de peregrinação dos que vinham fazer promessas ou agradecer graça recebida.
Caso marcante aconteceu, certa feita, numa dessas procissões pelos tortuosos caminhos dos pastos das fazendas.
Era uma quarta-feira de maio. A turma estava reunida na cada de Dona Divina Baixinha, uma devota exemplar de Nossa Senhora Aparecida, já passando dos oitenta anos. A Santa tinha ido para a sua casa, na sexta-feira anterior e, no altar, improvisado num canto da sala, recebera, regularmente, várias visitas, principalmente dos vizinhos mais próximos, a cada noite, para a reza do terço.
O destino da procissão daquele dia era a casa de Dona Augusta, a quase um quilômetro de distância, atravessando pela vasta pastaria de capim meloso, por entre os enormes e abundantes pequizeiros, araticuns e pau-terra.
Dona Augusta, vivia numa peleja das grandes. Havia mais de dez anos ficara entrevada, passando o tempo todo, numa cama, sempre gemendo em intensas dores. O marido, sempre muito devoto, de tudo tentara para livrar a esposa daquela situação. Os poucos recursos da medicina não se fizeram eficientes, e ele apelava para o céu com promessas e mais promessas. Chegou a ir a Aparecida do Norte, em busca da tão sonhada cura da esposa. Mas, até então, nada. Como sempre lhe dizia o padre: “No momento certo, Deus haveria de agir em favor de sua santa mulher.” Mas esse dia estava demorando muito, e o homem já começava a duvidar da benevolência de Deus, que impingira à sua esposa tão pesado jugo.
Quando chegou do batente - cultivava uma extensa horta nas abas de um ribeirão – viu a filha mais velha, de pouco mais de quinze anos, preparando os quitutes e as bebidas, café, chá e suco, que seriam servidos aos visitantes. A esposa, do quarto, orientava a filha nos afazeres. Um altar já preparado, com uma imaculada toalha, reservada para essas especiais ocasiões e duas velas prontas para serem acesas.
Amolado como estava nos últimos dias, diante da própria condição da mulher e devido a tantas dificuldades financeiras, ficou visivelmente alterado com tudo e determinou que a filha interrompesse os preparos, pois não iria permitir a visita da Santa. Não tinham a menor condição!
A mulher protestou, lá da cama, a filha aguardava o desfecho daquela discussão que mais se avultava. O marido, quase fora de si, afirmava que era até desrespeito receber aquelas pessoas todas e louvar a Virgem Maria, que, a seu ver, tanto o tinha esquecido, ao longo desses seus anos de muito sofrimento com a doença da mulher.
Afirmava ser muita hipocrisia, ficarem agradecendo por alguma graça, se o que tinham recebido era o mais autêntico e cruel castigo.
A filha abriu num pranto de choro e foi se abraçar à mãe doente, também em prantos com a atitude do marido. Esse, por sua vez pegou um chapéu e foi ao encontro do grupo que, àquela hora, estaria iniciando o cortejo com a santa. Seria curto e grosso e dispensaria todo aquela rezaria sem nenhum sentido para a sua condição tão precária.
Seguiam todos, como de costume, na reza do terço e entoando canções de louvor a Nossa Senhora. Ao passar pela Cava de Baixo, junto ao grandioso pequizeiro assombrado à beira do caminho, de súbito, encontraram o marido de Dona Augusta, Jó Joaquim.
Após rápidos cumprimentos e alguns instantes de surpresa pelo inusitado encontro, o homem falou claramente, procurando não ofender os integrantes da procissão, todos muito amigos e, alguns, até compadres. Afirmou que não queria a visita de Nossa Senhora naquele momento. Não se sentia confortável com tudo aquilo. E todos sabiam muito bem qual era o seu maior drama, no dia a dia.
Foi um silêncio geral e todos visivelmente impressionados com aquela decisão de Jó Joaquim. Aquela franqueza que chegava a ser dolorida.
Foi então que começou uma inesperada ventania e as velas foram se apagando, uma a uma, gerando pânico entre os fiéis. Logo um trovão soou, assustadoramente, sobre todos e uma nuvem enorme, muito escura, veio aproximando do grupo, praticamente roçando já, na copa do pequizeiro. Todos, a essa altura, estarrecidos e mudos de tanto medo.
Foi quando a senhora octogenária, que conduzia a Imagem, ajoelhou e começou a entoar com muita força um canto de louvor, sendo prontamente seguida por todos os presentes, tanto na genuflexão quanto no canto.
E, então, ocorreu o mais extraordinário episódio, que todos até hoje trazem na lembrança e repassam de geração em geração.
A ventaria foi serenando e, a terrível sombra que se formara sobre a cabeça de todos foi se dissipando, as velas foram espontaneamente retomando suas chamas e o céu, ainda coberto da grossa nuvem, foi-se abrindo, e, logo, todos viram uma brilhantíssima estrela, até aquele momento, não observada naquele céu de maio. Os cantos mais fortes se fizeram.
Não demorou muito, a filha de Jó Joaquim apareceu no caminho, vindo em correria e aos gritos em direção ao grupo. Estava muito transtornada, ria e chorava ao mesmo tempo. Parecia ter enlouquecido. Também não era para menos, desde os cinco anos, vivia naquela dificuldade com a mãe acamada. Tivera, muito cedo, que assumir toda a responsabilidade da casa.
O pai correu para ela já imaginando o pior. A menina abraçou e implorou que fosse depressa para ver o que estava acontecendo lá na casa deles.
E o grupo retomou a procissão em direção à casa de Dona Augusta, que já havia tantos anos, padecia sobre seu leito de dor.
Ao se aproximarem do portão, todos pararam assombrados e esbarraram o canto. Lá estava de pé, altaneira e sorridente, Dona Augusta, esperando firme e aprumada pela chegada da Santa, toda arrumada e usando o seu melhor vestido, há tanto tempo esquecido no guarda-roupa.
Recebeu a Nossa Senhora Aparecida das mãos da vizinha e entrou em passos decididos em direção do altar montado num canto da sala.
Jó Joaquim, em convulsivo choro, ajoelhara-se diante do altar e pedia, aos brados, o perdão pela sua falta de fé.
Não houve quem não se emocionasse com aquela cena tão inusitada. Muitos choravam junto e, às vezes, com mais intensidade que o pobre homem arrependido. Ninguém que ousasse perguntar o que tinha acontecido. Todos sabiam que fora aquele mais um inquestionável milagre da Virgem Maria.
Foi uma noite de intenso júbilo para todos, e os cantos e orações se estenderam até alta madrugada.
Cena das mais impressionantes era a procissão com a imagem de Nossa Senhora Aparecida, realizada pela Irmandade do Sagrado Coração de Maria: grupo de piedosos fiéis que se dedicavam a divulgar o culto à Mãe de Cristo, através da reza do terço.
Quando a Imagem ia para a comunidade de Matos de Cima, percorria todas as residências. De católicos, é claro. Enorme alvoroço. Todos ficavam na maior expectativa. Os pequenos, eram os mais entusiasmados. Tudo os fascinava: a decoração do altar, as meninas vestidas de anjo, o sem-fim de velas acesas. Oportunidade de ouro para alguma traquinagem, como pingar vela quente em algum desafeto, ou na própria mão, até quando fosse possível aguentar.
Sempre os donos da casa, mais frequentemente a dona, tinham o privilégio de conduzir a Imagem, à frente da procissão que se formava. Após rápida oração e um canto de despedida, o grupo se espichava pelos trilhos escuros que ligavam as moradias.
Como bando de vaga-lumes brincando de desfile militar, o grupo serpenteava pasto afora, entoando cantos tradicionais: “A treze de maio na cova da Iria, no céu aparece a Virgem Maria. Avééé, Avééé, Avé Maria...”.
As senhoras e as moças puxavam os cantos com entusiasmo. Os homens, mais retraídos, ar grave, chapéu na mão, acompanhavam a certa distância. Era surpreendente ver aqueles senhores, tão simples no dia a dia, transformados em autênticos cavalheiros: roupa bem passada, chapéu novo, sapato engraxado. Afinal, Nossa Senhora merecia. A meninada fazia a festa. Por pouco, não colocava fogo em tudo. As velinhas bruxuleantes em suas mãos ameaçavam os pastos, as roupas dos colegas e mesmo o cabelo das meninas. As mães iam à loucura com aquelas estripulias.
Chegando à casa que receberia a Imagem, a família aguardava no portão de entrada para a entrega solene. Entravam todos para a sala e começava-se a reza do terço, intercalando os cantos já tradicionais. No final cantava-se: “Com minha Mãe estarei, na Santa Glória, um dia, junto à Virgem Maria...”
Depois da reza, quase sempre, havia um agrado para todos. Cafezinho com biscoito, copo de refresco com bolachas ou coisa parecida.
Ficavam todos por ali, conversando, já pensando na próxima reza. A casa que hospedava a santa, durante os dois ou três dias de intervalo, virava ponto de peregrinação dos que vinham fazer promessas ou agradecer graça recebida.
Caso marcante aconteceu, certa feita, numa dessas procissões pelos tortuosos caminhos dos pastos das fazendas.
Era uma quarta-feira de maio. A turma estava reunida na cada de Dona Divina Baixinha, uma devota exemplar de Nossa Senhora Aparecida, já passando dos oitenta anos. A Santa tinha ido para a sua casa, na sexta-feira anterior e, no altar, improvisado num canto da sala, recebera, regularmente, várias visitas, principalmente dos vizinhos mais próximos, a cada noite, para a reza do terço.
O destino da procissão daquele dia era a casa de Dona Augusta, a quase um quilômetro de distância, atravessando pela vasta pastaria de capim meloso, por entre os enormes e abundantes pequizeiros, araticuns e pau-terra.
Dona Augusta, vivia numa peleja das grandes. Havia mais de dez anos ficara entrevada, passando o tempo todo, numa cama, sempre gemendo em intensas dores. O marido, sempre muito devoto, de tudo tentara para livrar a esposa daquela situação. Os poucos recursos da medicina não se fizeram eficientes, e ele apelava para o céu com promessas e mais promessas. Chegou a ir a Aparecida do Norte, em busca da tão sonhada cura da esposa. Mas, até então, nada. Como sempre lhe dizia o padre: “No momento certo, Deus haveria de agir em favor de sua santa mulher.” Mas esse dia estava demorando muito, e o homem já começava a duvidar da benevolência de Deus, que impingira à sua esposa tão pesado jugo.
Quando chegou do batente - cultivava uma extensa horta nas abas de um ribeirão – viu a filha mais velha, de pouco mais de quinze anos, preparando os quitutes e as bebidas, café, chá e suco, que seriam servidos aos visitantes. A esposa, do quarto, orientava a filha nos afazeres. Um altar já preparado, com uma imaculada toalha, reservada para essas especiais ocasiões e duas velas prontas para serem acesas.
Amolado como estava nos últimos dias, diante da própria condição da mulher e devido a tantas dificuldades financeiras, ficou visivelmente alterado com tudo e determinou que a filha interrompesse os preparos, pois não iria permitir a visita da Santa. Não tinham a menor condição!
A mulher protestou, lá da cama, a filha aguardava o desfecho daquela discussão que mais se avultava. O marido, quase fora de si, afirmava que era até desrespeito receber aquelas pessoas todas e louvar a Virgem Maria, que, a seu ver, tanto o tinha esquecido, ao longo desses seus anos de muito sofrimento com a doença da mulher.
Afirmava ser muita hipocrisia, ficarem agradecendo por alguma graça, se o que tinham recebido era o mais autêntico e cruel castigo.
A filha abriu num pranto de choro e foi se abraçar à mãe doente, também em prantos com a atitude do marido. Esse, por sua vez pegou um chapéu e foi ao encontro do grupo que, àquela hora, estaria iniciando o cortejo com a santa. Seria curto e grosso e dispensaria todo aquela rezaria sem nenhum sentido para a sua condição tão precária.
Seguiam todos, como de costume, na reza do terço e entoando canções de louvor a Nossa Senhora. Ao passar pela Cava de Baixo, junto ao grandioso pequizeiro assombrado à beira do caminho, de súbito, encontraram o marido de Dona Augusta, Jó Joaquim.
Após rápidos cumprimentos e alguns instantes de surpresa pelo inusitado encontro, o homem falou claramente, procurando não ofender os integrantes da procissão, todos muito amigos e, alguns, até compadres. Afirmou que não queria a visita de Nossa Senhora naquele momento. Não se sentia confortável com tudo aquilo. E todos sabiam muito bem qual era o seu maior drama, no dia a dia.
Foi um silêncio geral e todos visivelmente impressionados com aquela decisão de Jó Joaquim. Aquela franqueza que chegava a ser dolorida.
Foi então que começou uma inesperada ventania e as velas foram se apagando, uma a uma, gerando pânico entre os fiéis. Logo um trovão soou, assustadoramente, sobre todos e uma nuvem enorme, muito escura, veio aproximando do grupo, praticamente roçando já, na copa do pequizeiro. Todos, a essa altura, estarrecidos e mudos de tanto medo.
Foi quando a senhora octogenária, que conduzia a Imagem, ajoelhou e começou a entoar com muita força um canto de louvor, sendo prontamente seguida por todos os presentes, tanto na genuflexão quanto no canto.
E, então, ocorreu o mais extraordinário episódio, que todos até hoje trazem na lembrança e repassam de geração em geração.
A ventaria foi serenando e, a terrível sombra que se formara sobre a cabeça de todos foi se dissipando, as velas foram espontaneamente retomando suas chamas e o céu, ainda coberto da grossa nuvem, foi-se abrindo, e, logo, todos viram uma brilhantíssima estrela, até aquele momento, não observada naquele céu de maio. Os cantos mais fortes se fizeram.
Não demorou muito, a filha de Jó Joaquim apareceu no caminho, vindo em correria e aos gritos em direção ao grupo. Estava muito transtornada, ria e chorava ao mesmo tempo. Parecia ter enlouquecido. Também não era para menos, desde os cinco anos, vivia naquela dificuldade com a mãe acamada. Tivera, muito cedo, que assumir toda a responsabilidade da casa.
O pai correu para ela já imaginando o pior. A menina abraçou e implorou que fosse depressa para ver o que estava acontecendo lá na casa deles.
E o grupo retomou a procissão em direção à casa de Dona Augusta, que já havia tantos anos, padecia sobre seu leito de dor.
Ao se aproximarem do portão, todos pararam assombrados e esbarraram o canto. Lá estava de pé, altaneira e sorridente, Dona Augusta, esperando firme e aprumada pela chegada da Santa, toda arrumada e usando o seu melhor vestido, há tanto tempo esquecido no guarda-roupa.
Recebeu a Nossa Senhora Aparecida das mãos da vizinha e entrou em passos decididos em direção do altar montado num canto da sala.
Jó Joaquim, em convulsivo choro, ajoelhara-se diante do altar e pedia, aos brados, o perdão pela sua falta de fé.
Não houve quem não se emocionasse com aquela cena tão inusitada. Muitos choravam junto e, às vezes, com mais intensidade que o pobre homem arrependido. Ninguém que ousasse perguntar o que tinha acontecido. Todos sabiam que fora aquele mais um inquestionável milagre da Virgem Maria.
Foi uma noite de intenso júbilo para todos, e os cantos e orações se estenderam até alta madrugada.