140 - Cento e Quarenta
Ele morava rodeado de muros tão altos que ninguém sabia o que acontecia lá dentro. A porta era estreita e da rua viam-se folhas largas de bananeira. Com sorte poderíamos ver também entrar o empregado ajoujado de sacas ou víveres. Quando o senhor Mendes aparecia era só um velhote comum em suas calças com suspensórios e a camisa de manga curta a mostrar os pelos ruços. Dizia-se que tinha mulher mas nunca ninguém a viu. As histórias de orgias perante a figura ficavam sem sustentação. Persistiu o mistério muito tempo porque ninguém foi convidado a entrar e todos guardavam da porta um respeitoso medo. Não se lhe conhecia arte nem trabalho pelo que a imaginação do povo fervia. Um dia o empregado veio buscar o médico e no dia a seguir o homem morreu. Foi sepultado sem serviço religioso, em caixão de indigente pago pelo Estado. E a porta ficou aberta e todos os ousados, curiosos e indiferentes foram ver o interior da fortaleza. Um quarto comum com cama desfeita, uma cozinha acanhada, um roupeiro. A mesa cambaia, o forno de lenha. No pátio uma casota sem cão e os restos de uma fogueira. Não havia mistério, havia medo.