Defunto confuso

Era feriado do dia sete setembro. Carlinhos estava participando do desfile, quando o pai chegou e disse:

- Carlinhos. Assim que terminar o desfile, venha depressa para ir de companhia comigo ao velório do Sr. Antônio, um velho e conhecido meu. Não gosto de ir sozinho, pois os velórios me impressionam e sempre costumo sonhar com o falecido em noites futuras. Você vindo comigo, ficarei por pouco tempo assim que você pedir para ir embora.

Carlinhos não gostou. Ele estava desfilando e de olho na garota ao lado. Uma jovem da mesma idade dele. Ele tinha na época dez anos e a menina já ia completar onze anos. Fez caretas, pisou forte no chão e até tentou não ouvir o que o pai lhe dizia. Porém, estava dada a ordem e não demorou muito para o desfile terminar.

O sol forte do mês de setembro e as vendas de água, sorvetes e picolés eram grandes. Ele não hesitou em pedir para o pai comprar dois sorvetes: Um para ele e outro para a garota. O pai aceitou e ele foi buscar os sorvetes. No caminho, encontrou com a Professora Matilde. Contou-lhe que estava comprando dois sorvetes. Um para ele e o outro para a garota, de nome Maria. Disse, também, que gostaria que Maria o fizesse companhia no velório. Então, a professora lhe disse:

- Meu esperto aluno. Você é bem esperto. Está querendo namorar a Maria. O pai dela é muito bravo e já chegou a correr atrás do namorado da irmã dela, que hoje está com dezoito anos.

- Cuidado que ele correrá atrás de você.

- Não Professora. Eu não tenho medo dele. Ele é muito gentil comigo. Gosta que eu lhe conto estórias. Eu sempre conto as estórias que meu pai me conta. Contei sobre pescaria, sobre caçada, sobre caminhada pela mata. Um pouco de cada coisa eu lhe disse. Ele me falou que posso ser um excelente escritor.

Assim que terminaram o diálogo, a professora se retirou com uma garrafinha de água. Carlinhos foi logo pedindo os dois sorvetes. Mal os recebeu, levou um grande susto ao ver a Maria, acompanhada do pai, que lhe cumprimentou. Ele ficou muito assustado ao ver o pai da garota. Lembrou da conserva com a professora. Lembrou, também, de que ele era muito bravo. Imaginou-lhe correndo atrás de mim. Ele é alto, forte, muito musculoso. O tamanho da mão pode fazer um grande estrago.

Meio trêmulo, ele não disse nada. Pegou os sorvetes e nem mesmo olhou para o lado de Maria. Ficou triste e não teve coragem suficiente para pedir que ela o acompanhasse ao velório. Meio apavorado, saiu rápido e logo foi chamado pelo pai de Maria. Carlinhos estremeceu todo e imaginou que a menina houvesse contado ao pai que estava querendo namorá-lo. Aviou ainda mais os passos e não ouviu o que o futuro sogro lhe dizia:

- Garoto. Você esqueceu o troco. Venha buscar.

Quanto mais o homem dizia, Carlinhos dava mais passos longos e saiu da sorveteria muito rápido. Em um piscar de olhos, encontrou o pai e lhe entregou um sorvete. O pai logo recebeu e saíram juntos para o velório.

O caminho foi rápido. A passos largos, eles chegaram ao velório. Tiveram que parar debaixo de uma árvore, pois Carlinhos ainda se deliciava do sorvete.

Muitos veículos eram vistos, dando a impressão de que o falecido era pessoa muito importante.

Na entrada, eram vistas várias coroas de flores. Carlinhos, muito curioso e esperto, começou a contar cada coroa. Via e dizia para o pai quem a mandou. Falou sobre a família do falecido, sobre a enviada pelo prefeito, pelo deputado, pelo hospital onde trabalhou, pela escola onde foi professor. Enfim, várias coras e sempre ele lia as mensagens escritas uma a uma. Chegou a dizer para o pai que uma das frases estava ortograficamente incorreta. Ficou falando várias vezes até que o pai lhe disse:

- Não fique reparando isto. É feio. Nós sabemos escrever bem, porém existem outras pessoas que não têm a mesma facilidade do que nós. Entendeu?

- Sim, papai. Olhe só aquela mulher ali chorando. Deverá ser a viúva. Tem um homem de terno preto, calvo, de barba grande. Ele está aparecendo com o personagem do Silvio Santos, o José do Caixão...

Carlinhos dizia isto, pois o indivíduo que estava perto da suposta viúva era o irmão dela. Carlinhos fazia vontade de rir. Tudo para ele ali era estranho. Era a primeira vez que ia a um velório. Não tinha o hábito e sempre achava aquilo meio estranho. Via a quantidade coroas em homenagem ao finado. Presenciava a todo momento o entra e sai de várias pessoas. Eram pessoas importantes que chegavam em veículos de luxo, eram pessoas humildes e muitas vezes davam os sentimentos a todos, sem mesmo saberem quem ou quais eram os parentes, enfim, tudo que ali estava era novidade para ele. A emoção foi tanta que Carlinhos passou a gostar de estar ali. Seu pai estava cumprimentando os parentes e sempre um dedo de prosa com quem ali estivesse. Conversava com os professores, os colegas de trabalho do banco, o prefeito, alguns vereadores, fazendeiros, funcionários públicos, pessoas simples e outras pessoas.

Carlinhos lembrava das conversas com o avô, que sempre dizia que gente que morreu vem assombrar quem ri ou quem menospreza o defunto. Não era o caso de Carlinhos, pois ele nem mesmo tinha chegado ao caixão e não sabia como era o defunto. Pensava que era gente muito importante. Relembrando os contos do avô, se está morto, jamais vem importunar ou vem conversar com quem ali está.

Com muito custo, Carlinhos disse ao pai que ficaria sentado na poltrona lá do canto. Um lugar mais sossegado, não tinha tanta gente ali, poucas eram as pessoas que ali estavam. Sem gente para conversar consigo, ele poderia pensar e admirar a nova amada, a garotinha do pai bravo.

Assim que se sentou, esticou as pernas e deu uma respirada funda, Carlinhos assustou quando ao lado dele, colocando a mão no ombro, disse:

- Meu prezado amigo. Posso sentar a seu lado, mesmo por um pequeno momento. As pernas estão doendo, o calor está forte e mal consigo ficar de pé. Aqui está mais fresco e sentar-me ao lado de um garoto esperto tal como você, é um grande prazer.

O garoto arredou um pouco e logo já foi recebendo as ondas de choque daquele desconhecido. A poltrona vibrou, pois o sujeito era um pouco gordo. O menino subiu e desceu ao mesmo tempo. Os minutos foram passando até que o homem puxou a conversa com o menino:

- Suponho que você é um garoto muito esperto. Deve ser estudioso. Gosta de ler e fiquei impressionado quando disse a seu pai que a frase da coroa estava incorreta. Fui verificar e estava mesmo. Gosto de crianças assim.

O jovem concordou com aquela situação. Ele era um senhor muito talentoso. Falava muito bem, tinha um bom corpo e também se trajava com roupas finas e elegantes. Em um determinado momento, o homem assim falou:

- Você é muito jovem ainda. Aproveite bem a vida. Estude sempre. Leia, faça de melhor o se pode fazer.

- Eu sempre quis assim fazer, porém o destino não me deixou.

- Muito jovem ainda, fui estudar. O tempo, os negócios, a vida empresarial me forçaram a trabalhar muito. Não tive muitos amigos. O tempo para mim era considerado uma riqueza inconfundível. Viajei a negócios. Conheci parte do mundo. Estive várias vezes nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia e também na África. Fiz alguns amigos, mas no mundo dos negócios criei muitos inimigos. Aqueles que querem somente os lucros.

- Não aproveitei nada de minha vida.

- Não vi os filhos nascerem, nem mesmo eu me lembro quando os carreguei no colo. Casei três vezes e a terceira mulher eu não sei por onde anda. Ela era a mulher que eu realmente amava.

Neste momento, Carlinhos deixou que o homem falasse as mais belas palavras. O pensamento dele se voltou para a garota amada. Imaginou se ela estivesse ali, sentada ao lado, como uma senhora de classe alta, de mãos dadas e o pai dela estivesse feliz com o namoro dos dois. O tempo foi passando. O homem falando coisas e o menino sonhando com a amada. De repente o homem sai de perto dele. Foi ao banheiro e não mais voltou. O pensamento do garoto foi longe e foi interceptado quando seu pai chegou e lhe disse:

- Meu filho, vamos até ao caixão para despedirmos do finado. Ele está morto e os mortos não conversam e não brincam com ninguém.

- As estórias deles são muito bonitas. Às vezes precisamos parar um pouco e ouvir o que eles contaram. As viagens, os amores, os filhos, a vida laborativa. O que eles juntaram, enfim, é um respeito e uma obrigação de estarmos presentes na vida deles.

- Veja aquela senhora ali. Ele foi casado com ela por muitos anos. Separou e ela, ali, está presente e chorando o finado. Ela me disse que ele a amava muito, que os dois tinham a mesma alma gêmea. É triste ver e sentir isto, mas a vida terá que ser continuada.

Os dois se levantaram e foram até o caixão. Quando chegaram próximo, sendo Carlinhos à frente, quando o menino olhou para o defunto, ele começou a gritar, falando que a todo o momento, o defunto tinha sentado ao sofá e conversado muito tempo consigo. Inclusive, falou dos amores da vida, enfim de tudo.

Carlinhos lembrou das palavras do avô que defuntos voltavam e conversavam com as pessoas. Não pensou duas vezes e saiu correndo rumo à casa. Seu pai, não sabendo o que fazer, saiu correndo atrás dele e depois de muito tempo é que Carlinhos ficou sabendo que o defunto do velório tinha um irmão gêmeo, igualzinho a ele.

JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO
Enviado por JOSÉ CARLOS DE BOM SUCESSO em 01/01/2020
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