O personagem fantasma
Amanda não aguentava mais os galãs estereotipados dos livros atuais. Eram sempre altos, loiros, olhos azuis, musculosos com um sorriso perfeito e um charme de dar inveja no Mark Rufalo. Ridículo! Que homem era assim de verdade? Nenhum que ela conhecesse, pelo menos. Leitora voraz desde a adolescência, agora com seus vinte e muitos anos, estava desencantada dos livros. Decidiu criar suas próprias histórias.
Depois de milhares de tentativas, descobriu que não era tão fácil criar uma boa história. Dezenas de começos de romances enchiam suas pastas de arquivos. Centenas de ideias permeavam seus pensamentos. Mas apenas um protagonista se mostrava para todas as histórias. Perfeitamente imperfeito, como todos nós.
Incessantemente ele pedia para sair, pular de sua imaginação para a tela do notebook. Infelizmente Amanda sofria de uma severa falta de foco. Toda vez que começava a escrever, milhares de coisas chamavam sua atenção. As abas de seu navegador pareciam brilhar, emitindo um chamado irrecusável. Quando percebia já estava navegando em águas misteriosas e atraentes, que dispersavam ainda mais sua atenção e limitavam sua produtividade como escritora.
Certa noite, depois de mais uma tentativa frustrada de dar vida ao personagem fantasma, era assim que ela o chamava pela sua capacidade de estar tão vivo mesmo inexistindo, Amanda sonhou com ele, o próprio. Disse chamar-se Eduardo. Vestia calça jeans e camiseta preta, tênis surrado e desbotado, era magro, rosto comprido e queixo pontudo. Tinha os olhos mais tristes que ela já vira, castanho escuro, quase pretos, cabelos lisos, de um comprimento estranho, algo entre o curto e o longo, caindo pelas orelhas mas sem roçar no ombro.
Me deixe existir. - Ele pedia.
Acordou com um sentimento estranho. Simplesmente precisava escrever uma estória para Eduardo poder existir. Passou o dia todo pensando nele e nem conseguiu se concentrar no trabalho, não via a hora de chegar em casa e começar a escrever. Quando a noite chegou, tudo já estava preparado, de pijama, recostada confortavelmente em sua cama com o notebook sobre as pernas, desconectou a internet e abriu o word. Depois de meia hora olhando para a tela em branco ainda não havia escrito nada. As ideias se recusavam a aparecer e o personagem fantasma estava mudo.
Obrigou seus dedos a digitarem, começou descrevendo o personagem nos maiores detalhes, o sonho havia sido tão real que ainda se lembrava de tudo com perfeição. Depois passou a inventar um passado, porque todos precisam de um passado. Então Eduardo era mecânico, não… fazendeiro, não… jornalista, não, padeiro, também não… rapper, não?
Seria dono de uma livraria decadente, mas ainda charmosa. De noite ele tocava saxofone em um bar, mais como diversão do que como pretenção artística. Não tinha mais família, seus pais haviam morrido na meia idade com diferença de meses um do outro. Eles eram seu referencial de amor e casamento perfeito. Seu caráter melancólico e introspectivo não permitiram que ele fizesse muitos amigos e nunca havia se apaixonado de verdade.
As coisas começaram a fluir e Amanda passou quase a noite toda digitando sobre ele, que ia ganhando vida diante de seus olhos incrédulos. Depois de muitas noites pouco dormidas, vida social nula, reclusão e perda de apetite, a estória enfim terminou. Contava quinhentas e trinta e duas páginas do word. Tinha um assassinato, um encontro secreto, um grande amor, um mistério envolvendo livros, um antagonista decidido a acabar com tudo e um final feliz. Depois de ler tudo, Amanda não sabia o que fazer com a estória. Estivera tão envolvida com os personagens e com esse mundo ficcional que não se sentia bem no mundo real. Um vazio se instalou em sua vida que precisava ser preenchido. Tentou começar outras estórias, mas não fluía como na primeira, não tinha conexão com os personagens nem com o enredo, nada. Deletava tudo antes que a história começasse a se desenvolver.
Em uma noite insuspeita, Eduardo apareceu novamente em seus sonhos. Estava feliz, sorria com os olhos.
Não se preocupe, outros virão. Deixe-os viver!
Amanda ainda não sabia o que exatamente fazer com as estórias, mas tinha certeza que iria pensar em algo, em algum momento. Afinal, tinha um personagem extremamente vivo para ajudá-la.