Chorosa

Imagine-se no Nordeste, numa praia deserta e paradisíaca. Você caminha sobre a areia quente da orla, uma via larga e dourada que resplandece até onde alcança a vista. À tua esquerda, ventos mornos sopram do continente, espalhando areia nos ares e deitando a vegetação rasteira, que é composta de um mato esverdeado, distribuído aqui e acolá em inúmeros tufos sobre os pequenos morros. À tua direita, o mar azul-turquesa rumoreja amigável em marolas tranquilas na maré baixa. O sol acima de ti reina brilhante no céu profundo e sem nuvens, ofuscando o olhar e abrasando tua pele.

Você respira fundo e… tosse sem parar.

O cheiro de óleo penetra os pulmões, violando as vias aéreas. Você tampa o nariz com o braço, e continua caminhando naquele paraíso imolado a fim de cumprir tua missão: descobrir se borras de petróleo se depositaram ali, e reportar ao teu comandante para que os esforços de limpeza possam ser envidados.

Bom, amigo leitor. Obrigado por teu esforço imaginativo. Agora, continuando com nossa história, na qual espero que você continue me acompanhando com tua presença ricamente imaginativa, foi essa a tétrica situação pela qual passou nosso protagonista. Ele era sargento de um quartel de infantaria, e fora mandado para aquele belo e inabitado trecho do litoral baiano acompanhado de um pescador, seu guia. Suado, mangas arregaçadas, coturno machucando os pés e munido dos EPIs necessários para a guerra contra a poluição, seguia em longa marcha desde a manhã daquele dia junto de seu parceiro civil, reportando para seus superiores tudo o que conseguisse detectar.

Quando finalmente chegaram a um pequeno bosque de coqueiros, ambos convencionaram que era o local ideal para uma ligeira parada, a fim de repor as energias. Jogando-se ruidosamente contra a areia fofa, o sargento ofereceu um pouco de água de seu cantil ao colega, que lhe meneou levemente a mão esquerda, em sinal de recusa.

- É bom tomar um pouco de água, Seu Tião. A caminhada tá dura. - Disse o sargento, antes de virar um bom trago do líquido precioso em sua boca ressequida.

- Sim, com certeza. Tô com uma garrafa aqui comigo também, agradeço sua gentileza. - Lhe respondeu o pescador, pele queimada, com mais rugas do que seus quarenta e poucos anos lhe permitiriam ter em ambiente mais ameno.

Acalmando a respiração, ambos contemplavam a paisagem estonteante que facilmente estamparia um catálogo de viagem. O vento constante refrescava a pele, mas seu suave cambiar de direção contra o continente intensificava o cheiro de óleo que empesteava o ar. Toneladas de petróleo, vazado acidental ou intencionalmente em alto mar, não paravam de chegar àquele pedacinho de paraíso, destruindo tanta coisa bela.

(Você deve ter visto as notícias, caro leitor! Foi uma tragédia ímpar.)

- Pois é, Seu Tião… Tenho nem o que falar. Missão de corno essa, né não? - Puxou assunto o militar, meio sem ter o que dizer.

- É isso mesmo, Seu Silva. Pior que nem sei como vou ficar por esses tempos. Não posso velejar, os peixes tão tudo morto ou fugido dessa desgraça toda. - Respondeu o pescador, resignado.

- Mas acho que eles vão ajudar vocês. Vai vir alguma graninha pra segurar as pontas. - Replicou-lhe o sargento, fazendo menção ao governo, em intenção de consolar seu companheiro.

- Sei não. Consigo me sustentar por um tempo, a Preta tem as vendas dela. Enquanto não pesco, tento dar uma ajud… - Senhor Sebastião interrompeu bruscamente o que dizia, e torceu as sobrancelhas, olhando ao redor. O sargento, de pronto, retesou a espinha e pôs-se em alerta também. Ambos sobressaltaram-se pelo mesmo motivo: um sutil, leve murmúrio, cortava o ar, partindo do mar. Conforme o vento completava seu giro, vindo do oceano, uma lamúria claramente feminina ecoava aos ouvidos das únicas testemunhas do estranho fenômeno.

- O senhor já ouviu isso antes? - Perguntou o sargento, esperançoso de ouvir uma resposta que explicasse aquilo.

- N… não. Nunquinha. - Respondeu-lhe, confuso, o pescador.

Os dois se levantaram e caminharam lentamente às cristas espumantes do mar que se batia contra a areia, e aguçaram suas vistas para ver de onde podia estar vindo a tal lamúria. Um choro sentido, magoado, àquela altura era claramente audível aos dois, e eles não tinham dúvidas de que se tratava de algo anormal. O sargento tirou seu chapéu e apertou-o contra o peito, perplexo, e o pescador fez um Sinal da Cruz lento e discreto, pondo-se a rezar baixinho.

- Olha lá, Seu Tião. Olha o tamanho daquilo!

- Ih, é mesmo! Tá vindo pra cá!

Apontando na direção de uma grande sombra escura no mar, que se encaminhava lentamente contra a costa, o sargento pasmou ao ver seu tamanho. Medindo quilômetros, uma mancha de petróleo logo tomou todo o horizonte azul, pintando-o de preto. O fedor tornou-se insuportável, e os dois companheiros retraíram para o bosque, testemunhando atônitos a montante trazendo à praia a visão mais insólita de suas vidas: uma infinidade de peixes, plantas e animais marinhos sem vida, todos manchados de preto, boiavam no meio da poluição. Tal cena, muito provavelmente, era o que motivava o choro incontido que ressoava mais alto do que nunca por todo aquele litoral isolado. Entreolhando-se boquiabertos, o militar e o civil se encaminharam novamente às raias do mar, e não conseguiam identificar quem - ou o quê - emitia aquele som agoniante. Parecia que uma gigante pranteava o luto de seu filho, ou de alguém mui querido.

Por fim, conscientes de que uma resposta era impossível de ser obtida naquele momento, concluíram que a situação ali era suficientemente grave para uma ação imediata. Por este motivo, o sargento Silva sacou o rádio e quebrou o silêncio do canal emergencial com seu chamado, acompanhado dos uivos de dor da gigante desconhecida. O receptor da chamada ficou confuso com o som de fundo que acompanhava o relato do militar, mas concluiu que devia ser alguma interferência na onda de rádio.

Após meia hora, dois helicópteros chegaram ao local: um, da Marinha, para averiguar a informação e evacuar a dupla de batedores; o outro, da imprensa, que capturou o aviso radiofônico e também foi lá ver a descomunal mancha. As imagens percorreram e chocaram o mundo, e o relato dos dois homens, a respeito do bizarro som de choro, abriu margem para especulações e curiosidade. Uma série de teorias foi formulada, e nenhuma conseguiu explicar o que eles disseram ter ouvido.

O trabalho de limpeza daquela extensa faixa litorânea levou meses e empregou centenas de militares, servidores e voluntários. O tamanho do prejuízo à economia e ao ecossistema regional foi gigantesco. E, pela história dos dois homens, o local foi rebatizado de Praia da Chorosa.

Ninguém, nunca mais, ouviu aquele choro se repetir.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 31/10/2019
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