A esfinge de cimento e alumínio

Contra o céu nublado de outono e a silhueta azulada da cordilheira Allegheny, o radiotelescópio de Green Bank erguia sua imponente estrutura, a antena parabólica voltada para o alto como que para captar os sussurros de estrelas invisíveis.

- Em pleno Halloween, talvez esta seja uma visão por demais materialista - comentou o bioquímico Melvin Calvin, indicando a estrutura metálica para o seu colega Barney Oliver, após desembarcarem do automóvel que os levara até o observatório nas montanhas.

- Alguns diriam que o que viemos discutir aqui, tampouco possui substância - replicou Oliver bem-humorado. - "Homenzinhos verdes", não é o que a imprensa diria, caso soubesse?

- Este não é um encontro secreto, cavalheiros! - Alertou-os sorridente o organizador da conferência, J. Peter Pearman, ao recebê-los à entrada do observatório. - Apenas preferimos abrir mão da publicidade gratuita.

- Sábia decisão - reconheceu Calvin. - Quem já chegou?

- Praticamente todo mundo... só falta o John Lilly - informou Pearman, enquanto os conduzia para a sala de reuniões.

- A nossa atração principal - comentou Oliver em tom dúbio.

- Ele ficou de apresentar novidades - replicou Pearman sem se voltar, abrindo a porta da sala. Sentados em frente à uma lousa coberta de equações, um grupo de seis outros cientistas ergueu-se para cumprimentar os recém-chegados.

- Todos já se conhecem? - Indagou Pearman.

Um jovem nos seus vinte e poucos anos, cabelos negros e lisos, camisa branca de gola rolê, ergueu a mão.

- Permitam que me apresentem... sou Carl Sagan, astrofísico.

* * *

A sala de reuniões permaneceu em silêncio, enquanto a fita era rebobinada no gravador de rolo. Carl Sagan foi o primeiro a falar, e estava decididamente impressionado com o que acabara de ouvir.

- Isso foi deveras... surpreendente - declarou, lançando um olhar de admiração para o físico e filósofo John Lilly, que acolheu o comentário com um sorriso modesto.

- Como podem perceber, os meus estudos sobre a comunicação entre humanos e golfinhos, indicam um possível caminho a ser seguido pelos que pretendem fazer contato com inteligências extraterrenas - arguiu Lilly, olhando entusiasmado ao redor para os presentes. - A busca de civilizações alienígenas através de sinais de rádio, iniciada neste observatório por Frank Drake, poderá obter subsídios da minha pesquisa sobre os mamíferos marinhos!

- Se ficar comprovado que podemos conversar com os golfinhos, e que são capazes de compreender conceitos abstratos e emoções, isso mudaria tudo - ponderou Barney Oliver. - Mas entendo que há um longo caminho de revisão por pares pela frente...

- As fitas que Lilly reproduziu parecem evidenciar isso... golfinhos reagindo à fala humana - observou Melvin Calvin.

- Cães também reagem à fala humana... e são capazes de seguir ordens. Símios, igualmente - redarguiu o astrônomo Otto Struve, expressão cética e braços cruzados.

- Era justamente o que eu ia comentar - respondeu Oliver, com um olhar agradecido para Struve.

- Pessoal, o Lilly trouxe uma colaboração para o debate - alertou Pearman em tom apaziguador, erguendo as mãos. - Não quer dizer que este deverá centrar-se em torno da comunicação entre homens e golfinhos!

E ignorando o ar ofendido de Lilly, voltou-se para Frank Drake:

- Drake, como você foi citado, que tal falar agora sobre a sua equação? Aquela que poderá calcular quantas civilizações tecnológicas há na Galáxia?

- Sério isso? - Murmurou Carl Sagan, voltando-se para Drake com os olhos brilhando.

- É a minha modesta contribuição - replicou o astrofísico, erguendo-se e caminhando para a lousa. Apagou uma parte da mesma, apanhou um giz e começou a garatujar símbolos matemáticos. Finalmente, virou-se para os colegas cientistas e iniciou uma preleção:

- Suponhamos que R* seja o número médio de estrelas formadas por ano em nossa Galáxia. Numa estimativa bastante conservadora, vamos definir este número como 1...

* * *

- Sei que muitos aqui dirão que o Nobel do doutor Calvin já era garantido, - anunciou o astrofísico Su-Shu Huang perante seus pares - mas o único que lembrou-se de trazer champanhe, fui eu!

E exibiu uma garrafa que mantivera oculta dentro de um armário, num balde com gelo. Enquanto os colegas aplaudiam, ele acrescentou:

- Temos copos para todos também... não taças, infelizmente.

Champanhe servido, brindes efetuados, enquanto todos saboreavam a bebida, Sagan aproximou-se de John Lilly, isolado num canto da sala.

- Sei que alguns aqui podem não ter se convencido dos resultados da sua pesquisa, mas eu entendo que na busca por civilizações alienígenas, qualquer auxílio é bem-vindo.

- Grato pelo incentivo - Lilly encarou-o com simpatia. - Estamos em busca de inteligência nas estrelas, quando podemos já tê-la encontrada aqui mesmo, no nosso próprio planeta.

- Talvez porque as pessoas precisem de algo que não exista em seu cotidiano, para acreditar nessa possibilidade - ponderou Sagan. - Algo que, definitivamente, transcenda este mundo. Quando veem golfinhos, associam-nos com animais treinados para espetáculos, criaturas de circo, não seres inteligentes capazes de manter uma conversação com um ser humano.

Lilly pareceu avaliar o que acabara de ouvir, antes de discorrer pausadamente:

- Talvez... talvez... o cérebro humano, em seu estado original, simplesmente não esteja configurado para reconhecer as tentativas de comunicação dos golfinhos. Somos criaturas terrestres buscando compreender animais aquáticos, e que ademais, usam um tipo de sonar para "ler" o ambiente ao seu redor. Quiçá precisemos adaptar, reconfigurar a mente humana, para viabilizar este contato.

- E como pretende atingir tal objetivo, se me permite perguntar? - Indagou Sagan.

- A conferência está acabando hoje, mas eu vou lhe deixar o endereço e o telefone do meu centro de pesquisas - replicou Lilly. - Vá me fazer uma visita, sinto que você possui uma mente mais aberta do que a dos seus colegas astrofísicos.

Entregou-lhe um cartão de visitas e acrescentou:

- Sobre a sua pergunta, penso que o uso de determinadas substâncias psicoativas poderá ajudar neste trabalho de reconfiguração. Especificamente, pretendo começar em breve um estudo sobre o impacto da cetamina e do LSD nas funções cerebrais.

Sagan guardou o cartão num bolso das calças, e comentou:

- Drogas psicoativas? É bom não comentar isso na frente dos demais... pode parecer um tanto...

- Beatnik? - Completou Lilly com um sorriso.

- Extraterreno - redarguiu Sagan, devolvendo-lhe o sorriso.

- Que esfinge de cimento e alumínio abriu seus crânios e devorou seus cérebros e imaginação? - Recitou então Lilly.

- [26-10-2019]