§
Trinta e três cavaleiros, paramentados com longos balandraus negros e pontudos capuzes da mesma cor em suas cabeças, que deixavam entrever apenas os olhos, reuniram-se no castelo de Gisors em meados de maio de 1307 para uma seção em que novos membros seriam admitidos no Circulo Interno Superior da Ordem do Templo. Isso só acontecia de sete em sete anos.
A sala onde se reuniam tinha formato retangular, sem janelas, com um piso feito em pedras de granito e mármore, formando um mosaico branco e preto que dava a ideia de um tabuleiro de xadrez. As paredes eram pintadas de preto, com um céu cheio de estrelas no teto. Duas fileiras de bancos de pedra, de cada lado da sala, semelhantes aos que se viam em uma sinagoga, ficavam encostados às paredes. Neles, silentes, com as mãos nos joelhos, sentavam-se vinte e três irmãos do Circulo Interno Superior. No meio da sala, em cadeiras dispostas em duas filas de três, sentavam-se os novos membros, que além do capuz, tinham os olhos vendados com panos pretos. Eram em número de seis os cavaleiros que iriam ser admitidos no Círculo Interno Superior. No fundo da sala, no quadrilátero chamado de Oriente, separado do resto do aposento por uma balaustrada de madeira, havia uma mesa comum, coberta com uma toalha preta, com um candelabro de nove braços, onde nove velas acesas projetavam uma pálida e bruxuleante luz amarela sobre aquela estranha e fantasmagórica reunião. Sobre a toalha preta, um lençol de linho, dobrado, de aparência muito antiga, semelhante a um sudário. Na parede ao fundo, atrás do que parecia ser um altar, onde sentavam os três principais dignitários da Ordem, havia uma pintura mostrando uma lua crescente, com um sol abaixo dela; e abaixo desse sol uma inscrição em grego: Αβρασα (Abraxas). Pendente do teto, uma estrela com a letra Z, escrita no seu centro. Ao lado da mesa, pendurado em um cavalete, um estandarte de cores semelhantes ao mosaico do piso da sala ─ quadrados pretos e brancos ─ com os dizeres em latim “Deum Vult Te”: (A Vontade de Deus). Dois monges-cavaleiros guardavam a porta do recinto, um pelo lado de fora, com uma espada e outro, armado com um pique, pelo lado de dentro.
Jacques de Molay, Hugues de Peyráuld e Geoffroy de Charney, os três grandes dignitários da Ordem do Templo na Europa, sentados em três cadeiras de alto espaldar, decorados como se fossem tronos reais ou cardinalícios, dirigiam a reunião. Era tal o silêncio que reinava no recinto, que podiam ser ouvidas as respirações dos trinta e três homens encapuzados que estavam ali reunidos.
Então Jacques de Molay desembainhou sua espada e bateu com o punho dela três vezes sobre a mesa. Dos lados direito e esquerdo dele, Geoffrey de Charney e Hugues de Peyráuld também desembainharam as suas e bateram, cada um por sua vez, três vezes sobre a mesa. Os demais cavaleiros presentes na sala desembainharam as suas e repicaram, umas contra as outras, as três batidas, por três vezes.
─ Declaro aberto o capítulo LVIII, para a elevação de seis novos membros ao nosso Círculo Interno Superior. Desde agora é vedado a qualquer irmão se levantar de seu lugar ou tomar a palavra sem ser a isso concitado ─ disse Jacques de Molay.
─ Irmão Guarda da Torre, o capítulo está bem guardado e a salvo de olhos e ouvidos profanos? ─ perguntou de Molay, ao monge que guardava a porta, pelo lado de dentro.
─ Sim, Sereníssimo Grão-Mestre. O capítulo está bem guar -
dado e a salvo de olhos profanos ─ respondeu o Guardião da Torre, erguendo a sua espada.
─ Irmão Mestre da Justiça ─ todos os presentes nesta sala são dignos de participar destes trabalhos? ─ perguntou o grão-mestre.
─ Sim, Sereníssimo Grão─Mestre ─ respondeu Peyráuld ─ Todos foram examinados e são dignos de estarem aqui.
─ Irmão Sacrificador, a que horas começam os nossos trabalhos?─ perguntou o grão-mestre.
─ Á décima segunda hora, Sereníssimo Grão-Mestre, quando o Pai das Luzes se oculta no Ocidente e a Mãe Divina começa o seu trabalho de parto ─ respondeu Geoffrey de Charney.
─ Que horas são ─ Irmão Guarda da Torre?
─ A décima segunda hora, Sereníssimo Grão-Mestre.
─ Honremo-los então ─ disse o Grão-Mestre. E todos os presentes na sala se puseram de joelhos e se curvaram, três vezes, encostando as mãos nos joelhos. Em seguida, todos se levantaram, com as mãos para cima, e exclamaram três vezes: Huzah! Huzah! Huzah!
─ Irmão Mestre da Justiça, procedei à abertura dos nossos trabalhos com a leitura do Livro Santo ─ comandou de Molay.
Hugues de Peyráuld abriu a Biblia em Êxodo, 19, versículo 5, e
leu: Se, portanto, ouvirdes a minha Vóz, e observardes a minha Aliança, sereis para mim a porção escolhida entre todos os povos; porque toda a terra é minha. Sereis para mim um reino sacerdotal, e uma nação santa.”
Finda a leitura, Peyráuld fechou a Bíblia e disse: ̶ Vossas ordens foram cumpridas, Sereníssimo Grão-Mestre.
─ Irmão Mestre da Justiça, lêde os nomes dos irmãos que passarão a compartilhar dos nossos mais sublimes segredos ─ pediu o grão-mestre.
Hugues de Peyráuld tomou um pergaminho e leu os nomes de Reginald de Provins, Geoffrey de Gonneville, Ponzard de Guizi, Bertrand de Chartres, William de Chambonett e Gaucerant de Montepezat, suas respectivas origens e cargos dentro da Ordem.
─ Irmão Sacrificador, todos foram devidamente examinados e encontrados dignos dessa investidura? ─ perguntou de Molay.
─ Sim, Sereníssimo Grão-Mestre. Todos foram examinados e considerados dignos de participar dos nossos Augustos Mistérios ─ respondeu Charney.
─ Lembrai-vos irmãos ─ disse Peyráuld em seguida, após ter terminado a leitura dos nomes ─ que ao ingressardes em nossa Ordem vós fizestes o juramento solene de guardar vossos corpos em perfeita castidade, renunciar a todo e qualquer bem pessoal, defender os pobres e os aflitos e permanecer fiéis e prontos a dar vossa vida em prol da nossa fé. Tudo isso vós cumpristes. Professastes a fé da nossa irmandade e vivestes na perfeita obediência aos nossos estatutos. Passastes também por todas as provas previstas pelo nosso ritual. Em todas, fostes levantados limpos e puros. Agora vos é dado conhecer os nossos mais sublimes mistérios e segredos, pelo que juram, solenemente, nunca os revelar a ninguém, nem os comentar com qualquer outro irmão que não os que aqui estão presentes. Lembrai-vos que o perjúrio acarretará a vossa morte. Fazeis de coração e alma, esse juramento?
─ Eu o juro! responderam todos os seis cavaleiros.
─ Podeis então tirar as vossas vendas e os demais irmãos os seus capuzes.
E todos, inclusive os dirigentes da reunião tiraram seus capuzes, deixando a descoberto suas cabeças. Os seis cavaleiros que, até então estavam vendados desde a noite anterior e não sabiam onde estavam, nem quem eram os irmãos que os acompanhavam naquele ritual, puderam então reconhecer que ali estava presente todo o comando superior da Ordem, desde o grão-mestre geral, até os preceptores das maiores e mais importantes províncias templárias da Europa e Ultramar.
─ Ouvi agora, o que tem a dizer o nosso Sereníssimo Grão ─Mestre. Peço-vos que não o interrompais, a não ser que a isso sejais concitados ─ concluiu Hugues de Peyráuld.
§§
Jacques de Molay levantou-se. Sua figura parecia mais imponente, ali, naquele ambiente fantasmagórico. Sua imensa barba cheia de tufos brancos, que descia em dois fartos cachos até a altura do peito, dava-lhe um aspecto intimidante de profeta bíblico. Então ele falou:
“Meus irmãos. Aprendestes que a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão foi fundada por nove nobres cavaleiros, no ano de 1118, sob a chefia do conde Hugues de Payns, com o objetivo de proteger o caminho do Santo Sepulcro, para que os peregrinos cristãos pudessem visitar, em segurança, o túmulo de Nosso Senhor.”
“Assim está escrito em nossas crônicas e tem sido informado
ao mundo. E de fato, foi o que fizeram nossos primeiros irmãos
durante algum tempo. Eram apenas nove cavaleiros, que patrulhavam os caminhos do Santo Sepucro, lutando bravamente contra os bandidos e assaltantes sarracenos que procuravam saquear e impedir que os cristãos fossem à Jerusalém para rezar no túmulo do Nosso Senhor.”
“Mas logo se percebeu que apenas nove cavaleiros eram insuficientes para uma tão nobre e difícil tarefa. Então o rei de Jerusalém, Balduíno II, convenceu os nossos nobres fundadores que a sua pequena milícia precisava ser aumentada em números e ganhar um formato de verdadeira instituição para poder cumprir com mais eficiência o piedoso e difícil trabalho que eles se propunham fazer. Para tanto, o rei forneceu aos nossos fundadores alguns recursos para eles melhorarem seus equipamentos e a ala de um edifício em ruínas na colina do Monte Moriá, em Jerusalém, onde se dizia ter existido, nos tempos de Nosso Senhor, uma parte do antigo Templo de Jerusalém, que fora construído, primeiro pelo rei Salomão e destruído pelos caldeus, depois reconstruído pelo sacerdote Zorobabel nos tempos do rei Ciro da Pérsia, novamente destruído pelos romanos na era de Pompeu. Esse Templo, como sabeis, foi reerguido pelo rei Herodes e finalmente destruído de novo pelos romanos cerca de quarenta anos depois da crucificação do Nosso Senhor. Foi nesse sagrado local que a nossa irmandade se instalou definitivamente e por isso adotou o nome que nos acompanha até hoje.”
“ Foi então que o nobre fundador da nossa ordem, Hugues de Payns, com o apoio do rei Balduino e do patriarca de Jerusalém, conseguiu convencer o papa Honório II, da nobreza e da importância da missão da nossa Ordem, e ela foi reconhecida pela Igreja e ganhou um estatuto redigido pelo então mui santo e sábio Bernardo de Clairvaux. Estava formada a milícia de Cristo. Nosso nobre fundador conseguiu também que vários cavaleiros e nobres importantes da Europa toda se juntassem á irmandade, e assim o projeto templário cresceu e nós nos tornamos uma grande potencia militar e econômica, pois ao entrar para a nossa milícia, os nobres cavaleiros que adotavam nosso modo de vida, doavam á Ordem todos os seus bens.”
“Depois de alguns anos nossa iirmandade se tornou tão poderosa e influente que o papa resolveu conceder a ela um formato de Ordem religiosa militar, independente de qualquer poder secular e sujeita apenas ao comando do próprio Pontífice Supremo. Também isentou as rendas da irmandade de todas as talhas, corvéias e banalidades que recaem sobre as servidões feudais, pois sendo a Ordem uma instiuição religiosa, ela estaria, por lei, desobrigada dessas imposições.”
“Ao par de nossas obrigações militares, com a defesa dos Lugares Santos, um dos mais importantes objetivos da nossa irmandade era a de lutar contra os vícios da época, que haviam contaminado toda a instituição da cavalaria. Pois como sabeis, a arte da guerra, que é a arte da qual se ocupam os cavaleiros, sempre foi uma ocupação muito desprezada pela Igreja, que via nela um comportamento de desprezo contra as leis de Deus. Assim, a nossa investidura, como monges e guerreiros ao mesmo tempo, tinha o objetivo específico de regenerar a instituição da cavalaria, mostrando a toda cristandade que a guerra, quando praticada com uma razão justa, pode ser abençoada por Deus. Esse foi o objetivo do nosso santo patrono, São Bernado, ao redigir os nossos estatutos e constituir a nossa irmandade como uma milícia a serviço do nosso senhor Jesus Cristo.”
“Assim, a nossa Ordem passou a ter uma missão específica. Essa missão tinha uma face externa, que era defender militamente o reino cristão de Jerusalém, e uma face interna que consistia em trabalhar pela realização da obra pela qual Jesus deu sua vida, ou seja, a constituição de um Regnus Dei, o Reino de Deus sobre a terra. Seria um reino, ao mesmo tempo profano e sagrado, com sua face terrena govenada pelos princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, e na sua face espiritual, guiada por uma filosofia de tolerância e respeito para com todas as crenças; filosofia essa fundamentada no princípio de que só há um único Deus e todas as pessoas são seus filhos.”
“Esse propósito deveria ser realizado politicamente pelo reino de Jerusalém. Para isso seria preciso que os governantes do reino e as nossas autoridades religiosas se abstivessem também de algumas práticas insidiosas que contaminavam a virtude dos cristãos. Práticas essas que eram combatidas pela Igreja externamente, com proibições e castigos para aqueles que as realizassem, mas que internamente eram cometidas e toleradas pelos próprios governantes, tanto os laicos quanto os religiosos. O reino de Jerusalém, ao qual a nossa irmandade dedicava sua fidelidade, seu espirito e seu sangue, tal qual foi idealizada pelos seus fundadores, e institucionalizada pelo nosso santo Bernardo de Clairvaux, deveria ser uma cópia fiel da Israel delineada em seu testamento por Moisés, ou seja, uma nação Kaddosh, um reino dedicado ao verdadeiro e único Deus.”
“ Como sabeis, a antiga Israel, durante vários séculos foi go-
vernada por sacerdotes Kadosh, conhecidos como levitas, escolhidos por Deus e defendida militarmente por outro tipo de sacerdotes sagrados, também escolhidos por Deus, conhecidos como Juízes. Mais tarde, o povo de Israel pediu a Deus que lhe desse um rei, para governá-los como a uma nação igual às outras. Então Deus lhes deu reis, os quais eram também considerados sagrados, tais como Saul, Davi e Salomão, os Rex Deum, dos israelitas.”
§ § §
“ Ouvi agora a verdadeira história de Jesus, nosso Senhor e rei, por quem lutamos na Terra Santa, na crença de que ele era o Filho de Deus, e por quem lutamos agora, por ser ele o nosso verdadeiro rei. O Irmão Mestre da Justiça tem a palavra.”
Hugues de Peyrald bateu três vezes com o punho da espada sobre a mesa e tomou a palavra.
“Nosso Senhor Jesus Cristo era descendente desses reis sagrados de Israel. Ele descendia do rei Davi por parte de sua mãe, Maria. Como dizem as escrituras sagradas, ele não era filho do esposo de Maria, José o carpinteiro. Todavia, não foi também concebido por obra do Espírito Santo, como foi nos dado crer. Na verdade, Jesus era filho de um alto sacerdote do Templo de Jerusalém, chamado Zadoc. Esse Zadoc era irmão de José, conhecido como de Arimatéia, por que essa família era oriunda de uma aldeia que tinha esse nome. Zadoc enamorou-se de uma jovem chamada Maria, donzela consagrada ao serviço do Templo de Jerusalém. Mas as leis judaicas não permitiam o casamento de uma donzela consagrada ao serviço do Senhor, pois tais jovens deviam ser conservadas para sempre virgens.”
“Desse romance nasceu Jesus. Zadoc, o sacerdote, ficou conhecido por ter liderado uma rebelião, junto com um general de nome Judas Galileu, contra a ocupação romana nos tempos do rei Herodes. Esse Judas foi o fundador do partido dos zelotes, que como sabeis era um grupo de patriotas que defendia com unhas e dentes a independência de Israel e queria ver sua pátria livre de toda e qualquer influência estrangeira.”
“Zadoc pertencia a uma longa linhagem de sacerdotes levitas, que remontava aquele outro Zadoc, sacerdote dos tempos do rei Salomão, que consagrou o Templo de Jerusalém. Ele já fizera parte da seita dos essênios e era, na época do nascimento de Jesus, um dos mais destacados membros do Sinédrio. Assim, quando Jesus nasceu, ele não pode assumi-lo como filho legítimo. Para que a jovem Maria não sofresse as penas da lei, previstas para o caso, ela foi dispensada do serviço no Templo e casou-se com o carpinteiro José graças a um arranjo feito pela família de Zadoc.
A família de José, juntamente com Jesus, o filho de Maria, foi mandada para a Galiléia, onde fixou residência em Nazaré. E José, o carpinteiro, tornou-se seu pai adotivo. Quando Jesus cresceu e atingiu a idade para receber educação, ele foi levado para uma colônia de mestres essênios para ser por eles educado. Porque os essênios também eram zelotes e viviam em irmandades semelhantes à nossa, preparando o povo de Israel para o advento do reino do Messias.”
“Os essênios eram seguidores do Caminho, ou seja, a antiga doutrina que Moisés havia ensinado ao povo de Israel, para que esse povo constituísse um reino consagrado a Deus: o reino Kadosh, dos Eleitos do Senhor. Mas o povo de Israel se desviou do Caminho, por isso os essênios se retiraram para o deserto para evitar a contaminação da sua doutrina, e ao mesmo tempo, preparar uma estrutura para o novo reino de Israel, que seria instituído quando o Messias prometido pelos profetas chegasse para libertá-lo do domínio político de Roma e da influência estrangeira em sua cultura. O Messias, como sabeis, era o líder esperado pelos judeus para realizar essa tarefa.”
Peyráld fez uma pausa, tomou um pouco de água de uma taça que estava à sua frente e continuou:
“Jesus foi educado na irmandade dos essênios e quando fez vinte e cinco anos, passou a seguir um pregador chamado João, o Batista, que se tornara famoso em Israel por pregar a conversão dos judeus ao Caminho.”
“Irmão Sacrificador, dai continuidade à narração”, comandou de Molay.
A palavra passou para Geoffrey de Charney, que após bater três vezes com o punho da espada sobre a mesa, deu seguimento à narrativa.
“Quando Jesus completou o seu período de ensinamento junto a João, ele deixou o grupo do Batista e começou a organizar o seu próprio plano para libertar sua pátria do jugo romano e dar a ela uma nova forma de organização, semelhante à que Salomão havia feito para o antigo reino de Israel. Porque, segundo a crença dos essênios, o sagrado reino Kadosh de Israel seria reformulado pela liderança de dois Messias, um sacerdote e um rei.”
“O mestre-sacerdote era João Batista e Jesus seria o rei. Foi por isso que ele convocou exatamente doze discípulos para fazer parte do seu apostolado e mais setenta para espalhar por toda a terra de Israel a sua mensagem. E foi ungido, à moda essênia, pelo sacerdote João Batista, como todos os sagrados reis de Israel foram antes dele. A organização que eles pretendiam dar ao novo reino seria igual à que a própria seita dos essênios havia desenvolvido para a sua vida comunal. Um reino governado espiritualmente por sacerdotes santos e puros, os homens denominados Kadosh, detentores de todos os segredos dos homens e conhecedores de todas as línguas faladas na terra. Politicamente, uma estrutura baseada na liberdade, na igualdade e na fraternidade seria a prática comum do novo reino.”
“Os essênios são os inspiradores espirituais da nossa Ordem. Foi com base nos ensinamentos e na organização dessa fraternidade de “Filhos da Luz” que o nosso santo abade Bernardo de Clairvaux escreveu os nossos regulamentos. Como nós, eles também desenvolveram uma organização composta por guerreiros, sacerdotes e juízes. E como nós, praticavam o comunismo de bens, mantinham-se castos e observavam estrito zelo pela lei de Deus e respeito pelos costumes dos seus ancestrais. Eles seguiam estritamente os ensinamentos da Torá, que vós conheceis como Velho Testamento, ou seja, os cinco livros de Moisés e os escritos dos profetas.”
§ § § §
Os vinte e três cavaleiros sentados nos bancos de pedra e os dois templários que guardavam a porta já conheciam a história que os comandantes da Ordem estavam contando. Eram membros antigos do Circulo Interno Superior e haviam galgado os mais altos postos na hierarquia do Templo. Eram grãos-mestres nos reinos onde o Templo estava instalado ou preceptores das províncias templárias mais importantes da cristandade.
Porém, para aqueles que estavam participando pela primeira vez na reunião do capítulo LVIII, essa versão heterodoxa da vida de Jesus era completamente nova. Por isso, na luz amarelada e bruxuleante que iluminava aquele ambiente totalmente insalubre, não era possível ver em suas testas o vinco de estranheza e preocupação que aquela bizarra lição de história estava provocando.
Os seis cavaleiros que ali estavam para serem elevados eram, em sua maioria, oriundos da pequena nobreza europeia, que foram educados na ortodoxia católica, e seu espanto com aquela versão completamente diferente da que haviam aprendido desde a infância, de algum modo, os assustava.
Hugues de Peyràld havia agora reassumido a narração.
“Jesus passou três anos doutrinando os judeus a respeito do que ele entendia que deveria ser o novo reino de Israel. Quando achou que estava na hora de proclamar a restauração política desse reino, ele subiu, com seus seguidores, à Jerusalém. Por que ele sabia que a grande maioria do povo judeu se reunia nessa cidade na época e essa proclamação deveria ser feita no Templo, o mais sagrado dos seus locais. E como era a semana da páscoa, Jesus esperava que o povo ali reunido o apoiasse, porque então ele se revelaria como o Messias, descendente de Davi, herdeiro natural do trono de Israel. E sendo filho de Zadoc, descendente do rei Davi, que ao seu tempo levantara o povo de Israel numa rebelião contra os romanos, ele esperava a adesão do povo à sua causa. Pois ele era, em todos os sentidos, o lídimo herdeiro do trono de Israel.”.
Ninguém ousava romper o silêncio na sala. Os veteranos porque já conheciam aquela história, os iniciandos porque estavam chocados ou curiosos demais para perguntar. Então, Peyráld continuou.
“Eis porque o chamavam de Filho de Davi e Filho do Homem. Filho de Davi porque ele descendia do famoso rei e os essênios reconheciam nele o Messias que conduziria Israel ao seu antigo estado de nação sagrada, eleita do Senhor. E Filho do Homem porque ele era aquele que os profetas diziam, que um dia viria para restabelecer a antiga grandeza de Israel, tal qual fora nos tempos de Davi e Salomão.
“Dessa forma”─ continuou Peyráuld, “Jesus seria proclamado rei dos judeus durante a festa pascoalina e daria início à sua revolução política e religiosa. Por isso ele disse que destruiria aquele Templo e o restabeleceria dentro três dias. Aquele Templo significava o atual governo de Israel e a falsa doutrina que os líderes religiosos da época – fariseus e saduceus - pregavam.”
“Essa revelação foi feita na terça-feira. Pois ele esperava que até o sábado, quando o povo de Israel comemora o sabbath sagrado, tudo estivesse consumado. E então ele começaria a erguer o novo Templo ─ que seria um novo reino e uma religião renovada, restabelecida em sua pureza primitiva.”
“Mas antes que a rebelião fosse desencadeada, o seu plano foi descoberto pelos membros do Sinédrio” - continuou Peyráld. “Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, o traiu, denunciando para eles o que Jesus pretendia fazer. Os membros do Sinédrio não acreditavam em Jesus, pois sabiam quem ele era. Não admitiam que o filho ilegítimo de um de seus antigos membros (pois Zadoc fora, no seu tempo, membro daquela casa), reivindicasse para si o trono de Israel. E os anciãos também temiam uma revolta popular, pois sabiam que os romanos eram sanguinários e passariam a fio de espada toda a população de Jerusalém.”.
§ § § § §
O silêncio era geral na sala. Todos os cavaleiros, contritos, seguiam à risca a regra da Ordem. Quando o mestre fala, todos devem ouvir sem interromper. Atenção, respeito, comedimento, silêncio e humildade eram virtudes cultivadas por aqueles monges. A regra da irmandade, escrita por São Bernardo, era inspirada nos ensinamentos essênios, que Jesus revelara em seu discurso conhecido como Sermão da Montanha. “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus”. Eles sabiam que ser pobre de espírito não era ser tolo ou mesmo ignorante. Era sim, ser humilde e mesmo tendo muita sabedoria, comportar-se como se nada soubesse. Mais ouvir do que falar, mais aprender do que ensinar, mais dar do que receber, servir antes de ser servido. A verdadeira sabedoria não vinha das letras, do conhecimento enciclopédico, mas da verdadeira fé e da disposição de lutar pela razão certa.
A narrativa voltara, agora, para o grão-mestre. Jacques de Molay bateu com o punho da sua espada por três sobre a mesa, limpou a garganta e continuou.
“Jesus foi preso pelos guardas do Sinédrio, julgado pelos anciãos e sentenciado como herege e agitador. Sua pena deveria ser a morte por apedrejamento, como dispunha a lei judaica. Porém, pela lei dos judeus, ninguém podia ser executado na semana da páscoa. Assim, ele foi entregue ao governador romano, Pôncio Pilatos, com a acusação de sedição. Os romanos não seguiam a lei dos judeus e não respeitavam sua tradição. Poderiam condená-lo sem problemas. O resto vós sabeis. Ele foi executado como criminoso, um sedutor do povo, um conspirador e usurpador. Por isso Pilatos mandou escrever na sua cruz as iniciais “INRI”, que significa Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum, em latim.”
“Essa é a verdadeira história de Jesus, que vós conheceis como o Cristo” ─ disse de Molay, sentando-se. Estava suado e ofegante.
Hugues de Peyráuld havia reassumido a narrativa.
“Como sabeis, Jesus foi arriado da cruz tão logo expirou, pois era o cair da tarde da sexta-feira que precede a páscoa. O dia seguinte seria o sábado, e nesse dia os judeus não podiam praticar nenhuma atividade. Assim, para que o sabbath sagrado não fosse desrespeitado, o corpo de Jesus foi envolvido em lençóis e depositado em um túmulo pertencente a um membro do Sinédrio, chamado José, de sobrenome Arimatéia. Esse José era o irmão mais jovem de Zadoc, o sacerdote, pai verdadeiro de Jesus, já falecido. Assim, Jesus era seu sobrinho. Por isso ele disponibilizou o túmulo de sua família para que o corpo dele fosse ali colocado, aguardando até que chegasse o domingo e ele pudesse ser lavado e preparado para o funeral, como mandava a tradição dos judeus.”
“Mas como sabeis” - continuou Peyráuld – “quando chegou o domingo e as mulheres foram ao túmulo de Jesus para preparar o corpo com os óleos da unção, elas o encontraram vazio. E então propagou-se a lenda de que ele havia ressuscitado.
“Essa é história que os evangelhos ensinam” ─ continuou Peyráuld ─, “porém, Jesus nunca ressuscitou. Como lestes nas escrituras, foi Maria Madalena quem anunciou aos discípulos que o corpo dele havia desaparecido, e foi ela também, que disse tê-lo visto, ressurreto, a caminho da Galiléia. A verdade é que os essênios, que sempre estiveram por trás do ministério de Jesus, juntamente com Maria Madalena, que era na verdade, sua mulher, e José de Arimatéia, seu tio, removeram o corpo dele durante a noite e o encerraram em um lugar secreto, onde jamais os romanos e os membros do Sinédrio pensariam em procurá-lo. E combinaram dizer aos discípulos que ele havia ressuscitado.”
“Os essênios costumavam usar imaculadas túnicas brancas”- continuou Peyráuld. “Por isso é que podeis ler nas escrituras que quando Maria Madalena e as mulheres que a acompanhavam chegaram ao sepulcro, ao invés do corpo de Jesus elas encontraram dois homens vestidos com roupas tão brancas que brilhavam como a luz do sol. E eles disseram a elas: “porque procurais entre os mortos aquele que vive”? Assim propagou-se a lenda da ressurreição, que como sabeis, é o verdadeiro sustentáculo da fé cristã.”
─ A palavra será agora aberta aos nossos irmãos que estão sendo elevados ao nosso Círculo Interno Superior ─ disse Jacques de Molay, assumindo novamente a condução dos trabalhos. ─ Podeis fazer as perguntas que vos apetecer.
─ Sendo verdade tudo isso que os irmãos comandantes relataram, então tudo o que as sagradas escrituras ensinam sobre a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo são mentiras? ─ perguntou Reginald de Provins.
─ O Irmão Mestre da Justiça irá responder à vossa pergunta ─ disse Jacques de Molay.
─ Não, Irmão Reginald ─ respondeu Hugues de Peyráuld,
levantando-se. Depois, com ar professoral, como era sua postura normal, continuou:
─ Tudo que a Igreja e as escrituras ensinam é verdade, só que não devemos tomar os escritos ao pé da letra ─ disse Peyráuld. Na verdade ─ continuou ─, Jesus era um monge-guerreiro como nós. Ele conhecia a verdade das escrituras antigas e o poder da palavra. Assim, ele pregava uma doutrina e uma ideia de liberdade, que era tanto política quanto religiosa, mas muito perigosa para a época, pois Roma dominava a região com mão de ferro e não permitia nenhuma pregação sediciosa. E por seu lado, quem determinava a crença religiosa dos judeus eram os sacerdotes fariseus e saduceus, férreos defensores da interpretação que eles mesmos davam da lei mosaica, interpretação essa que era feita sempre em beneficio deles próprios.
─ E qual era, na verdade, a sua doutrina? ─ perguntou Geoffroy de Gonneville, recém-empossado como preceptor de Aquitânia e Poitou.
─ Era uma doutrina que propunha a volta de Israel à sua antiga
tradição religiosa e política, com um povo livre, praticando uma filosofia de igualdade e fraternidade, adorando a um único Deus, como Moisés lhes ensinara ─ respondeu Peyráuld.
─ E o que era, de fato, o Reino dos Céus, esse Regnum Deum, que ele pregava?
─ Era o reino prometido a Moisés, quando os israelitas saíram do Egito, irmão Geoffrey. Um reino de justiça e paz, onde todos viveriam como irmãos, como se a humanidade toda fosse uma grande irmandade, unida pelos laços da religião, fortalecida pela crença em um único Deus. Exatamente o mundo que os essênios sonhavam construir quando o Messias viesse ao mundo.
─ Mas porque ele disse que seu reino não era desse mundo? ─ perguntou Ponzard de Guizi. As perguntas agora começavam a pipocar.
─ Porque não era, irmão Ponzard ─, respondeu Peyráuld. ─ Não daquele mundo em que eles estavam vivendo naquele momento. Seu reino era um mundo sonhado pelos antigos patriarcas e profetas, um reino que havia desaparecido há muitos séculos atrás, quando o primeiro Templo, o de Salomão, foi destruído e os filhos de Israel dispersos pelo mundo. Israel nunca mais se reconstituiu como nação livre depois disso e a ideia de um reino Kadosh, o reino dos homens puros, consagrados a Deus, se perdeu. Jesus queria reconstruir esse modelo de nação, para que ele servisse de exemplo para todas as nações da terra. Seria um reino de paz, justiça e liberdade, onde todos os homens se comportariam como amigos e não como adversários e inimigos. Por isso ele falou em destruir aquele Templo, que era o de Herodes, e reconstruí-lo dentro três dias, nos moldes em que o antigo Templo, o de Salomão, existira. Com isso ele queria dizer, a antiga religião e a monarquia dos tempos de Salomão.
─ Então ele era, na verdade, um homem comum, embora de sangue real? ─ perguntou Bertrand de Chartres.
─ Sim, irmão Bertrand. Ele era um rei e um profeta, mas tão mortal quanto nós todos aqui ─ respondeu Peyráuld.
─ Quer dizer que não ressuscitou de verdade, como dizem as escrituras? ─ inquiriu, perplexo, o cavaleiro identificado pelo nome de William de Chambonett
─ É verdade, irmão William─ respondeu Peyráuld, como se tivesse chegado ao âmago da questão e mostrasse muita satisfação por ter conduzido sua aula à conclusão desejada ─ ele está tão morto quanto Hugues de Payns, o fundador da nossa Ordem.
─ É por isso que nas nossas iniciações exigimos dos noviços que o reneguem e cuspam na cruz? ─ perguntou Ponzard de Guizi.
─ Não, irmão Ponzard. Não é a Jesus que negamos. É a falsa doutrina que foi criada a seu respeito. Pois nós o temos como um rei da linhagem sagrada e não como um Deus ─ respondeu Peyráuld.
§ § § § § §
O que os altos dignitários do Templo estavam dizendo era por demais chocante e difícil de acreditar para aqueles cavaleiros que estavam ouvindo aquela história pela primeira vez. Não para os veteranos que já a conheciam. Por isso, alguns dos iniciandos ainda não tinham saído do seu estupor e olhavam, desconfiados e aturdidos, para o rosto dos seus confrades mais antigos, procurando neles algum sinal de que tudo aquilo seria uma pilhéria, um trote.
Mas agora eles estavam sendo informados que aqueles rituais de iniciação, onde os noviços eram obrigados a negar a divindade de Cristo, cuspir, e às vezes, urinar na cruz, simbolizava, não uma negação de Jesus em si mesma, mas sim um gesto de repulsa às mentiras que a Igreja de Roma propagara a respeito da sua doutrina.
Porque, para os mestres do Círculo Interno Superior, Jesus não era Deus, não tinha nascido de uma virgem, não morrera para resgatar a humanidade de seus pecados, não ressuscitara nem dera à Igreja de Roma e a seu papa e bispos a incumbência de representá-lo na terra. Por consequência, renegar aquela imagem que o Vaticano fazia de Jesus constituia uma parte importante do ritual de iniciação de um cavaleiro templário, porque ao entrar para a irmandade ele iria viver, dali por diante, uma prática fundamentada na verdadeira história de Jesus e não em mentiras urdidas por um clero ávido de riqueza e poder.
─ Mas que provas podeis nos dar de que tudo isso é verdade? ─ perguntou, por fim, o cavaleiro Reginald de Provins. E imediatamente se arrependeu, porque não era comum entre os monges da Ordem e muito menos daquele seleto Círculo Interno Superior mostrar o mínimo sinal de dúvida ou contradição em relação a qualquer coisa que lhes fosse ensinada, ordenada ou informada por seus mestres. A regra templária exigia obediência e confiança irrestrita.
─ Esperávamos que algum de vós, irmãos que chegaram a esse estágio ─, disse de Molay, levantando-se ─ fizésseis todas essas perguntas. Como sabeis, a dúvida, em nosso meio, é punida com penitência e estudo, e a desobediência com a prisão e até com a morte. Mas neste capítulo final do vosso aprendizado, vos é dado saber que todas essas nossas crenças estão apoiadas em verdadeiras provas fáticas e não apenas em tradições compiladas ao longo dos séculos, e interpretadas segundo seus próprios interesses, como faz a Igreja de Roma com a sua doutrina.
─ Dissestes que Maria Madalena era esposa de Jesus. E que José de Arimatéia e ela, juntamente com membros da irmandade dos essênios tiraram o corpo do Nosso Senhor Jesus Cristo da tumba e espalharam a notícia da sua ressurreição. Porque não se diz nada sobre isso nos evangelhos e a Igreja sempre fez questão de defender o celibato, se o próprio Jesus era casado? E nós mesmos fazemos votos de castidade, por quê? ─ emendou o cavaleiro Bertrand de Chartes, na mesma pergunta, pois ainda parecia não estar nada convencido daquelas histórias. Elas eram tão extraordinárias, que ele mal conseguia pensar direito.
─ Primeiro porque Jesus e Madalena não eram casados de fato
─ respondeu de Molay. Quando Jesus conheceu Madalena ela era uma mulher possuída por muitas dúvidas e temores. Ele a curou. Por isso as escrituras dizem que Jesus expulsou dela vários demônios que a possuíam. Ela então entrou a seu serviço e passou a segui-lo por todos os lugares. Logo nasceu entre eles o amor de homem e mulher. Mas os discípulos de Jesus não gostavam dela. Tinham ciúme e inveja da atenção que Jesus lhe dedicava. Porém, foi ela que Jesus amou mais. Depois que ele foi crucificado, seus discípulos começaram a persegui-la e difamá-la entre os seus seguidores, porque foi a ela que ele confiou os segredos mais íntimos da sua doutrina e o encargo de continuar a sua missão. Quanto aos nossos votos de castidade, nós o fazemos porque somos cavaleiros, e a nossa ordem é consagrada à Virgem, que é o símbolo do Sagrado Feminino, a Shekhinah dos judeus, que é a forma pela qual Deus se manifesta na terra. A nossa castidade é ofertada a esse princípio e não à uma deusa ou santa em particular.
─ O que aconteceu a Maria Madalena? ─ perguntou Gaucerarant de Montpezat.
─ Após a crucificação de Jesus, Maria Madalena e José de Arimatéia fugiram para a Gália, que então se chamava Aquitânia, onde divulgaram a nova fé aos gauleses. Fizeram muitos discípulos no nosso país, que ficaram conhecidos como os “Filhos da Viúva”.
─ Porque receberam esse apelido? ─ continuou Gaucerand.
. Os primeiros cristãos foram assim chamados porque Jesus era filho de uma viúva, Maria, a mãe de Jesus. E também porque seus discípulos franceses foram catequizados por aquela a quem consideravam ser a sua viúva, Maria Madalena. Os discípulos de Madalena na França foram feitos primeiramente entre os operários, os trabalhadores, as pessoas de condição servil, especialmente os pedreiros de ofício. Somente alguns séculos depois é que os nobres começaram a aderir à nova religião, e o culto cristão dos “Filhos da Viúva” se fundiu com antigos cultos gauleses e celtas que revenciavam a deusa Ísis, entre nós conhecida como Notre Dame, a Nossa Dama.
─ É por isso que o povo francês é tão devoto à Notre Dame? ─ perguntou Bertrand de Chartres.
─ Exatamente, irmão Bertrand, e nós também, pois como sabeis, nossa ordem é consagrada à Mãe Universal ─ disse de Molay, apontando para o desenho da lua crescente, que na Árvore da Vida, representava o Sagrado Feminino, também conhecida como Shekinah, na linguagem cabalística.
─ Se Jesus não ressuscitou, o que foi feito do corpo dele? ─ indagou Geoffrey de Gonneville, que desde que fizera a sua primeira pergunta se mantivera calado, tentando digerir aquela história. Tudo aquilo lhe parecia uma rematada loucura, mas fora educado para nunca duvidar dos seus mestres.
─ Os mestres essênios haviam encerrado o corpo de Jesus em um nicho secreto, escavado nos subterrâneos do Templo de Jerusalém. Somente Maria Madalena e José de Arimateia, entre os discípulos dele sabiam o local exato. O local do túmulo definitivo de Jesus foi um segredo que eles mantiveram e passaram aos seus discípulos mais fieis na França, que foram os antecessores da família de Hugues de Payns. Estes, por sua vez, o conservaram durante mais de mil anos. Durante sua estada em Jerusalém nossos fundadores promoveram escavações nos subterrrâneos do Templo, buscando encontrar, não só os tesouros que eles sabiam terem sido escondidos lá pelos sacerdotes quando da invasão do Templo pelos romanos, bem como os restos mortais de Jesus e sua família, que antigos documentos em seu poder diziam estar sepultados naquele local. Esses restos mortais e esses documentos foram encontrados. Ficaram guardados na fortaleza de Acre enquanto estávamos na Terra Santa e foram finalmente trazidos para a França. Estão agora guardados em uma das nossas preceptorias ─ completou de Molay.
Essa era a mais chocante de todas as revelações que aqueles cavaleiros que estavam sendo iniciados no Circulo Interno Superior ouviriam naquela noite. Eles sabiam que o Templo era o guardião de muitas relíquias sagradas e documentos, obtidas durante o tempo em que a Ordem existiu na Terra Santa e principalmente durante o saque de Constantinopla, ocorrida na quarta cruzada. Mas jamais atinariam com uma revelação dessas. Mudos de espanto, eles olhavam para os irmãos veteranos, sentados nos bancos de pedra em volta deles, mas estes não mostravam nenhum sinal de surpresa. Já haviam ouvido aquilo antes.
Ponzard de Guizi parecia o mais atônito.
─ Irmão grão-mestre ─ disse ele, levantando-se da sua cadeira. ─ Sei que é costume da nossa Ordem crer e obedecer aos nossos mestres sem reservas, aceitando no coração e na alma todos os preceitos que nos forem transmitidos. Mas tudo que se disse aqui é tão extraordinário que me será muito difícil acreditar nisso se não forem apresentadas provas dessa verdade. E creio que isso é o que pensam todos os nossos irmãos, que aqui estão pela primeira vez.
Os demais cavaleiros que estavam sendo elevados aos mistérios do capítulo LVIII concordaram com um balançar de cabeça.
─ Que essas provas vos sejam dadas ─ disse o grão-mestre.
Então Jacques de Molay levantou o pano vermelho que cobria o objeto que estava sobre a mesa. Um crânio humano, com seu volume normal diminuído, coberto com uma pele dura, seca, enrugada e de tonalidade enegrecida, com seus traços fisionômicos da face vagamente conservados, foi apresentado aos atônitos cavaleiros. Tratava-se de um crânio mumificado que parecia ter pertencido a um homem jovem, com cabelos longos, barba negra e cerrada. Juntamente com dois ossos tibianos, cruzados em baixo dela, a estranha visão daquelas relíquias mortais provocou arrepios nas espinhas dos novos cavaleiros do Círculo Interno Superior. Seus olhos pareciam estar vivos. Sua boca parecia emitir uma muda mensagem. Na atmosfera lúgubre e fantasmagórica daquela câmara, a estranha aparição assumia um aspecto ainda mais terrível e assustador. Mas eles eram cavaleiros templários. Homens de espírito treinado para nunca mostrar medo no campo de batalha. Todavia, eles também eram pessoas criadas no temor da religião e viviam em uma época e em um ambiente propício ao mistério e à superstição. Por isso temiam o desconhecido, e assim ficaram imóveis, boquiabertos, atônitos, não sabendo o que dizer nem pensar. Imediatamente os cavaleiros veteranos se abaixaram e prostraram suas cabeças no chão, em atitude de adoração, exclamando:
─ Abhulaphia! Abhulaphia! Abhulaphia!─ gritaram três vezes.
─ Irmãos, ̶ disse de Molay, erguendo à frente da contrita plateia a estranha e assustadora relíquia. ─ Eis a prova do que dizíamos! Esta é a sagrada cabeça de Jesus, filho de Davi, herdeiro dos Rex Deum, os reis sagrados de Israel! Este é o Mestre Verdadeiro que os essênios esperavam, o Filho do Sol, mensageiro da Luz. Este é Abhulaphia, o Pai da Sabedoria! É por sua memória e sua mensagem que agora nós lutamos. Para o estabelecimento e a glória do seu reino, o reino dos homens puros, o reino Kadosh, onde imperará a liberdade, a igualdade e a fraternidade verdadeira entre os homens, sem a mentira, a tirania, a intolerância e a utilização maligna do nome de Deus para adquirir poder e riqueza!
Na plateia nenhum murmúrio se ouvia. Ninguém ousava também erguer o rosto para olhar diretamente para aquela relíquia, que de Molay levantava em suas mãos, movimentando-a para a direita e para a esquerda, como se com ela estivesse abençoando todos os presentes.
─ Levantemo-nos e saudemos nosso rei, por quem todas as coisas nos são dadas. Por quem as chuvas caem, as flores nascem, as moléstias são curadas e todos os milagres são feitos!
─ Béauseant! ─ gritaram todos, erguendo-se, com o braço direito esticado e a mão formando um esquadro com o polegar e os demais dedos.
─ Nós, os templários, somos os defensores do reino de Jesus, o reino sagrado da Justiça e da verdadeira religião. O sagrado reino dos puros, o Regnus Deum! ─ gritou de Molay, erguendo o mais alto que podia o crânio mumificado, enquanto, ao seu lado, Geoffrey de Charney levantava o estandarte preto e branco da ordem.
─ Béauseant! Montjoie! Gritaram todos, novamente. Desta vez, os novos cavaleiros também repetiram o coro.
E foi então que uma luminosidade intensa e envolvente, que parecia sair de um minúsculo ponto no espaço e nele se expandia como a luz de uma estrela explodida, invadiu o aposento e envolveu todos os atônitos cavaleiros ali presentes. Ninguém ousava levantar a cabeça do chão. E assim permaneceram todos até que a luz, da mesma forma que saíra de um ponto minúsculo e ocupara todo o espaço à sua volta, recuou para dentro daquele ponto e se extinguiu. E a mais espessa treva ocupou, por completo, todo o espaço da sala.
(Do livro Regnum Deum- A Irmandade dos Santos Malditos), no prelo