Cão
Clóvis foi um amigo de infância. Tinha o apelido de “bigorna” por ser corcunda. Dizia-se que nascera bom de saúde mas se entregou ao vício do cigarro ainda menino, lá pelos seus 11 anos.
O vício lhe afetou os pulmões. E gravemente. Daí a corcunda.
Já maior passou a fumar maconha – o que lhe afetou o comportamento. E a mente principalmente. Passou a ter transtornos psicológicos.
Naquele tempo existiam os hospitais psiquiátricos chamados hospícios. Clóvis se tratava no “Juliano Moreira”, manicômio extinto que ajudou muita gente. Aqui, em Belém.
Mas os tratamentos psiquiátricos daqueles tempos, se comentava, deixavam os pacientes mais perturbados.
Tinha um irmão e uma irmã. Como a pessoa com transtorno passa a dar problemas comportamentais, se desajustam socialmente, quase sempre são excluídos, abandonados.
Aconteceu com ele: Os irmãos o rejeitaram. Teve de ir para a rua, ficando entregue à própria sorte.
Dormia em calçadas. Em pátios de casas. Bancos de praças. Até em cemitérios.
Tornou-se alcóolatra – e dependente da maconha. Mesmo com transtorno mental, manteve parte da lucidez.
Numa madrugada eu voltava para casa, ali, pelas 3 horas. Vinha de carro, de uma festa na casa de uma amiga.
Fazia-me companhia no carro Orlinda, namorada de então. Pessoa suave, meiga, a ela eu fora bem apegado. Amor real, de verdade.
Bem, o amor é de verdade, não há mentira nele.
Estava um pouco assustado: Pouco antes eu atropelara um cão. Sem querer, algo inevitável. Fez-me mal isso. Os fortes latidos, bem, fiquei traumatizado. Mesmo um animal, sua vida é preciosa, como a nossa.
Não sei se o animal, indefeso, morreu – não sei.
Orlinda percebeu. Viu que eu estava apreensivo. Disse-lhe: ------- Sabe, amada, aquele cão. Estou pensando no acidente.
------ Fique tranquilo, Carlos Tito, foi sem querer, acontece...
Me acalmei com aquelas palavras. Pus na garagem o veículo. Abri a porta, entramos em casa, Orlinda e eu.
Estávamos cansados, nós dois. Fui ao banheiro. Orlinda foi para o quarto. E um grito. Fui lá, ao quarto.
----- O que foi? Perguntei.
Ela: ------ Não sei, senti alguma coisa encostar na perna. Como se fosse um rabo de gato...
Estranho, pois não temos gato – e nenhum outro animal. A acalmei, ela relaxou, deitou-se, ligou a TV.
Nesse momento alguém bateu na porta (da rua). Dois baques. Depois, de novo, dois baques.
Ficamos assustados. Como homem da casa (nada de machismo, ressalto – esse tempo passou), fui lá, até à porta.
------ Olha, cuidado, pergunta primeiro quem é – a namorada me aconselhou.
Fui, temeroso. Claro. Perguntei: ----- Quem é?
------ Meu amigo Tito, sou eu, Bigorna. Sabe, estou com fome, não tens um pouco de café, algo para comer?
------ Tenho, sim. Aguarda um pouco, vou buscar.
Trouxe um copo com suco de laranja e biscoitos. Orlinda estava no quarto, deitada, já quase dormindo.
Abri a porta. Lá fora, ele, Bigorna, o corcunda. Com um cachorro ao lado. Gemia.
Perguntei-lhe: ----- De quem que é esse cachorro?
------ Encontrei-o agora, aqui, em frente da tua casa. Não foste tu que o atropelaste?
Aquilo me assustou, deixou-me apreensivo. Atropelara um cão, sim, momentos antes.
Disse: ----- Sim, atropelei um cão, mas há três quarteirões daqui.
Me aproximei, e percebi ser parecido ao cão que tinha batido. Dei a Clóvis o suco e os biscoitos.
Pegou o lanche, comeu.
------ E ele (o cão)?
Bigorna respondeu que o levaria com ele. Trataria dele. Fiquei alegre por o animal estar vivo. Mas como veio parar em frente de casa, ele, o cão? Fora atropelado três quarteirões dali...
Fui deitar – e aquilo me martelava a cabeça.
Acordei no outro dia lá pelas 9 horas. Orlinda também. No começo da tarde encontrei com ele, Clóvis, o corcunda.
Perguntei sobre o cão, o que fora atropelado.
------ Eu peguei no sono, dormi, ele respondeu-me.
E continuou: ----- Acordei, estava clareando. E não mais o vi. Foi embora, não sei o que aconteceu com ele. Mas deve estar vivo, não morreu não.
Um caso que não me saiu da mente – e do coração.