O ESTRANHO QUADRO

O ESTRANHO QUADRO

Realmente "há mais coisas entre os céus e a terra do que sonha nossa vã filosofia", como eternizou Shakespeare, mas a história que vou lhes contar supera os "causos" e fatos mais estranhos já conhecidos. Essa narração mirabolante está na família Odeveza faz algum tempo, embora todos se calem, ninguém ouse tocar no mistério que circundou velho quadro, doado como herança a um dos 3 sobrinhos do nonagenário Fortunato Odeveza, derradeiro varão do ramo antigo dos Odeveza, família meio desunida e espalhada por vários Estados, cada uma vivendo com raros contatos com as demais.

Mas, eis que um dia o quase centenário tio Fortunato "resolveu a contragosto" seguir o caminho dos demais irmãos, dos seus pais e avós, da Humanidade inteira, enfim: "fechou o paletó", "bateu as botas" (e nem militar era !), foi ver São Pedro, partiu, morreu ! Aberto o testamento -- mero bilhete deixado com uma vizinha, que o velho era sovina demais para gastar com advogado -- eis que os 3 sobrinhos têm baita surpresa... deixara a modesta casinhola para 2 deles e o casebre de pouco valia, situado em bairro distante da capital e de pequena expressão. Ao terceiro "herdeiro", xará do ancião, apenas enorme tela na parede da casa, quadro imenso, quase metro e meio de altura, moldura trabalhada em madeira maciça, fundo de 8 cm e uns 10 kg de peso. O mais velho ficou estarrecido com o "presente" enquanto os 2 mais jovens caíam na gargalhada.

A senhora os recriminou: ela escrevera o testamento que o tio assinara, não tinha mais idade para rabiscos legíveis. A recomendação expressa do "seu" Fortunato era que o sobrinho não se desfizesse da obra, por ser muito valiosa. Olhando com atenção a tela, nem mesmo a paisagem nela -- muito bem feita -- teria algum valor, além do artístico. Era um cavaleiro das Cruzadas, armadura completa, tendo ao fundo uma campina ao entardecer, com imenso castelo medieval. De elmo aberto, o cruzado "piscava" para quem apreciasse a obra de frente. Fortunato Sobrinho não se abalou, conversou com os irmãos e comprou deles suas partes, estava para se casar e a tal casa lhe sairia quase de graça.

Mandou pintar e reformar boa parte dos cômodos e desceu o ""trambolho" da parede... "aquilo" não ficaria 1 minuto a mais na casa ! Colocou-o na calçada em frente, era Arte, não iria destruí-la. Mal fechou a porta atrás de si e um estrondo sinistro quebrou 2 ou 3 telhas, espatifando-as na sala, Achou que seria algum pivete da vizinhança a apedrejar-lhe o telhado... foi à janela e nada, não havia viva alma na rua. Olhou para o chão e constatou que o quadro sumira da calçada. "Menos mal", pensou, "temos quem goste de arte por aqui" !

A noite chegou, a primeira na nova casa, e o espaço vazio na parede tomava sua atenção. Dormiu mal, cochilou várias vezes, o cansaço cobrando sua cota de sono. Dormiu e sonhou... o tio, ainda jovem, a apontar o castelo, da mão saindo raios de luz que íam iluminar aquele esquisito quadro, do qual se desfizera. O cavaleiro de armadura na tela, quem diria, era o próprio tio ! Levantou cedo, indormido, disposto a recuperar a obra. Saiu perguntando pela vizinhança... lhe apontaram um carroceiro, só haviam 2 no bairro e este morava "assim, assado", lá "onde o Judas perdeu as botas", "onde o vento faz a curva". Não iria desistir agora... achou o casebre a custo, na frente dele um burrico cinza muito mal tratado mastigando milho num balde. Sim, o velhote lembrava, quase morrera de susto, um raio em pleno dia caiu sobre o quadro e disparou a carroça. A tela ficou pelo chão, lá pros lados do "boteco" da Mariazinha. Mais uma caminhada e, na conversa com a dona do bar, outra surpresa: ela recolhera a obra quando um bêbado gritou que da tela saía fumaça. Todos riram !

-- "Daqui a pouco saiu todo mundo do bar, o espaço era um "fumacê" danado... dei a tela pro carroceiro "Lilico", que mora perto daqui e "tomava umas" no meu barzinho !

Nova andança e o dia findava... "seu Lilico" ainda tremia contando a história:

-- "Aquilo está amaldiçoado, seu moço, eu ía levar pro vigário benzer. Mas, nem foi preciso... a dona Rosinha passava por aqui, via a tela e até me pagou pra ficar com ela ! É a senhora da casa verde, bem ao lado da do velho que morreu por esses dias, no fim desta rua" !

Vejam como é o Destino, a "testamenteira" estava com a tela que ela insistira que o sobrinho não descartasse por motivo algum. O quadro voltara a seu lugar !

Comeu qualquer coisa, a ansiedade lhe tirara a fome. Resolveu encomendar outro quadro, com nova moldura, aquela estava imprestável, lascada em vários pontos, enlameada e com cheiro de comida azeda. Benzeu-se, receava que o espírito do tio lhe reservasse algum tipo de castigo pela "desobediência". Só não entendia porque o fundo era tão grande... não havia lâmpadas laterais, flores, qualquer objeto interno a enfeitar a tela. Olhou à contraluz e "coisas" se mexeram dentro dela... virou de lado, mais "barulhos" estranhos ! Não eram ratos, não gemiam nem se movimentavam... poz a tela na horizontal e 3 minúsculos pregos caíram no chão de tacos, tilintando.

-- "Epa, pregos fecham coisas, unem peças e aqueles não estavam ali por acaso" !

Exame mais minucioso detectou estreita gaveta de uns 4 centímetros oculta atrás da tela. Virou o quadro de lado e a gaveta foi ao chão, com estrépito. Surpresa incrível: em 8 ou 10 nichos de vários tamanhos, dólares e euros, títulos de capitalização válidos por 20 anos e 1 seguro de vida em seu favor, de 50 MIL REAIS, quase cem mil reais no total, escondidos da forma mais bizarra possível. Em família de azarados, o tio fizera fortuna apostando em loterias, todas elas !

Entendeu que tudo aquilo era dele, sua herança, não tinha porque repartí-la com os irmãos, mas dona Rosinha ganhou cozinha moderníssima, para espanto do bairro inteiro. Ninguém jamais imaginou que o idoso que vivia de benefício era, na verdade, muito rico. Essa história me foi contada pelo sobrinho -- de quem sou amigo -- e que me pediu sigilo !

"NATO" AZEVEDO (em 17/agosto 2019, 20 hs)

OBS: em caso de filmagem deste conto sugiro substituir os preguinhos por parafusos, "camuflados" com tinta da cor da moldura, apenas para justificar porque a gaveta oculta não abriu durante as diversas "viagens" que o quadro fez. Já usei o tema em outro conto (do ano 2000) "Revelação do Ano", postado no site RECANTO DAS LETRAS em 12/06/2009. Ambos "nasceram" da nota num jornal sobre tela comum comprada numa praça de Paris. Ao tentar trocar a moldura velha o colecionador descobriu oculta atrás da primeira outra tela, essa de famoso pintor, que se achava desaparecida e valia milhões de francos.