A Enganação

O INCAPAZ

Seus assessores e ele adentraram aquela saleta bastante nervosos. Os filhos tentavam acalmar o pai.

- Jair, não dá mais - exclamou o primeiro assessor. - Você está perdendo a popularidade...

- Por quê? - perguntou Jair.

- Porque você não responde às perguntas dos outros candidatos - redarguiu Michelle, impaciente.

- Aliás, parece nem entender o que eles falam... - disse o segundo assessor.

Todos entreolhavam-se. Estavam tensos. O debate foi exibido pela tevê e pela internet. No dia seguinte, todos estariam comentando os deslizes. O que facilitava a vida de Jair era a presença estapafúrdia de um outro candidato que aparecia com uma Bíblia em mãos e chamava mais que ele a atenção pública.

- Lamento - comentou o primeiro assessor -, mas temos que tirar você dos debates.

Jair pôs-se preocupado, mas ao mesmo tempo aliviado. Havia um outro candidato, advogado de formação, que conhecia bastante de política e seus assuntos emaranhados, ademais de outro, professor universitário, que lhe faziam perguntas bastante estranhas ao seu conhecimento de militar reformado. Jamais admitiria ignorância, pois não queria ser malvisto popularmente.

- Precisamos fazer algo para que você se consagre, pai - disse um dos filhos, a pensar.

***

A NEGOCIAÇÃO

Carlos adentrou com um homem um clube de tiros.

- Adélio - anunciou Carlos ao homem -, sei que está fodido, sem dinheiro e desempregado. Surgiu uma oportunidade para você.

Adélio pôs-se desconfiado, mas decidiu ouvir a proposta de Carlos.

- É o seguinte: preciso que esfaqueie meu pai.

- Como? - redarguiu Adélio, confuso.

- Sim, faremos uma produção cinematográfica - disse Carlos. - Primeiro, você o esfaqueia com uma faca de cinema, aquelas que não furam. Meu pai irá para um comício da campanha eleitoral. Você se infiltra no meio das pessoas e enfia-lhe a faca na barriga.

- Mas e se eu for linchado?

- Você sabe que eu tenho contatos - redarguiu Carlos, seguro. - Nada vai te acontecer. Ademais, temos tudo esquematizado: você será preso, meu pai demonstrar-se-á irritado para consigo e muitas pessoas te odiarão. Porém, contratamos uns médicos que te vão dar um laudo de louco. Antes louco que preso, não?

- Certo. E os valores?

- ...

***

A CONCRETIZAÇÃO

Naquela tarde de seis de setembro, Adélio - muito apreensivo - infiltrou-se, conforme o acordo com Carlos, no meio dos fervorosos fãs de Jair. Carlos estava perto do pai - mesmo após nunca acompanhá-lo em campanhas públicas. Adélio começou a aproximação, a desviar de algumas pessoas que choravam e gritavam “Messias” a Jair.

Quando aproximou-se do candidato, desferiu-lhe a falsa facada e rapidamente viu-se acercado de policiais e, para esconder a falsa sangria de Jair, vários panos foram-lhe postos sobre a falsa ferida. Foi uma encenação cinematográfica: haviam anunciado à imprensa que Jair havia obstruído o intestino e corria sério risco de vida. Primeiro, fora tratado em um hospital público - para aumentar ainda mais sua popularidade - e depois fora diretamente para o hospital particular mais caro do país.

A FARSA

Meses depois da facada, com a popularidade aumentada e a ser tratado como um messias pelos seus eleitores, Jair ganhou as eleições para a presidência.

Adélio fora posto na cadeia, a ser colocado em uma cela individual. Poucos meses depois, um juiz sentenciou-lhe que, pela perda da razão, este deveria ser levado a um manicômio.

Adélio seria feliz para sempre, enquanto Jair - com poucos meses de presidência - perderia sua popularidade e seu prestígio pela má administração, envolvimento com laranjas e milícias e com os pitacos de seus filhos milicianos em seu (des)governo.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 09/08/2019
Código do texto: T6715894
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