A morte do cerrado
Berço de diversos rios, dono de árvores pequenas com galhos retorcidos que formam imagens mais belas do que as constelações e que possui um verde claro espalhado em todas as direções. Como não amar o cerrado?
Osvaldo era um entusiasta desse bioma, talvez um dos maiores que já existiu. Ele trabalhava como caixa de um mercadinho em uma pequena cidade no interior de Goiás. Não que gostasse de trabalhar nisso, mas era algo que o permitia ser feliz apesar de tudo. Com o tempo, comprou a moto que tanto queria e uma quitinete, saindo do aluguel. Entretanto, não eram esses bens materiais que formavam a sua felicidade, mas sim as longas caminhadas que fazia após o trabalho.
Lá pelas cinco da tarde, pegava a sua mochila e caia na estrada. Antes tentava pegar carona, porém, agora, vai com a sua moto e dirige alguns quilômetros. A paisagem o encanta conforme vai passando apressadamente pelos os seus olhos. Cada peculiaridade e besteira na visão dos outros, o faz abrir um sorriso tímido, porém sincero. De repente, alguma voz em sua mente o diz para estacionar, então é isso que ele faz. Depois de pegar a sua mochila, trancar a moto e escondê-la com um pouco de mato para ninguém a roubar, ele começa a caminhar para alguma direção aleatória. As suas pernas já não sentem mais o cansaço após fazerem isso todo dia, tornando mais difícil a tarefa de saber quando parar. Ele andava durante horas até achar algo que o fizesse interromper a sua caminhada. Na maioria das vezes, era alguma árvore diferente das demais e às vezes apenas por algum detalhe nela. Ele se sentava embaixo dela, desligava a lanterna e ficava observando as estrelas. Em meio ao silêncio e a escuridão, se sentia completo. Era o único momento do dia em que se sentia vivo. O cerrado preenchia o frustrado coração de Osvaldo, os tornando um único ser vivo.
Na hora de ir embora, ligava a lanterna, a mirava na árvore e colocava a mão calmamente nela enquanto se despedia. Algumas vezes, tanto na ida como na volta, parava para observar algum animal, como antas e capivaras. Mesmo com eles não sendo tão grandes como os das savanas africanas, o bioma irmão do cerrado brasileiro, a beleza deles atrai qualquer um. Na realidade, o pequeno e médio porte deles é que guarda o seu poder de atração, afinal, se fossem maiores, seriam assustadores. Alguns desses animais eram raros de serem encontrados por estarem em perigo de extinção, como o lobo guará que ele conseguiu observar somente uma única vez e de maneira apressada.
Quando voltava para casa se sentia leve. Toda a sua raiva havia ido embora e as suas preocupações não mais existiam. Dependendo do tempo que tinha ficado imerso no seu templo da sabedoria, não havia como fazer uma refeição decente, então comia qualquer coisa de rápido preparo até ter certeza que o seu estomago não iria reclamar até a manhã seguinte. Ele sabia que isso não era o correto, mas não se importava com nada desde que ainda tivesse a oportunidade de ter mais uma longa caminhada em meio ao cerrado no dia seguinte. Esse era o único motivo para ele levantar cedo todo dia e o seu único motivo para viver.
Com o passar do tempo, começou a caminhar cada vez menos, mas não por vontade própria, algo o obrigava a fazer isso. Uma coisa com a aparência de uma parede com tons fracos de amarelo começava a ser vista no horizonte e avançava cada vez mais rápido. Isso poluía a sua visão e perturbava o seu equilíbrio, o forçando a parar em pontos que não queria somente para não ver aquele monstro. No decorrer do ano, o seu inimigo ficava mudando de cor, indo do verde até o marrom. Embora fosse um feito notável, não havia nem possibilidades de entrar em combate com a beleza e a riqueza do cerrado.
Tendo isso em sua cabeça, Osvaldo decidiu caminhar até aquela coisa que perturbava a sua paz. Na direção em que ia, conseguia se lembrar de outras caminhadas que tinha feito naquela direção. Passou por árvores em que já tinha descansado, lugares em que já tinha visto animais e até mesmo onde ficou tremendo de medo pelos motivos mais diversos. Ao encarar o seu inimigo, ficou perplexo: tudo a sua frente era soja. Em alguns pontos ainda estava verde e em outros amarela, dependendo da maturidade dos grãos. Somente uma frágil cerca separava o cerrado daquela plantação. A partir daquele ponto em que estava, a sua visão só via a soja e nada diferente disso até o horizonte.
Ele ficou encarando aquela paisagem depressiva durante um longo tempo até que lágrimas saíram dos seus olhos. Ficou se lembrando de uma grande árvore que ficava a uns quinhentos metros dali e que tinha visitado no ano passado. Um de seus galhos fazia a forma quase perfeita de um coração enquanto uma única folha estava presa em sua ponta. Naquele dia, também teve a honra de ver um tatu-bola que provavelmente morava no pé daquela árvore. Em uma das poucas vezes das quais se lembrava, voltou do cerrado totalmente triste.
Nos dias seguintes daquele ano, observou que a cerca mais se movia do que ficava parada. Parecia que ela andava quilômetros em pouco tempo, deixando Osvaldo abismado. Estranhamente, ninguém parecia nem se importar com isso. Durante todo o dia em que ficava no mercadinho, não ouvia uma única palavra sobre como o cerrado estava sendo dizimado. As pessoas falavam sobre tudo, esportes, política, e quem se divorciou de quem, mas não sobre algo que estava acontecendo literalmente a sua volta.
Começou a ficar cada vez mais difícil achar algum bom lugar para adentrar no cerrado. Às vezes, simplesmente não conseguia ficar à vontade porque parecia que a soja o acompanhava com olhos atentos de um vigilante. Por causa disso, a sua alma passou a ficar cada vez mais pesada e a sua tristeza misturada com apatia não parava de aumentar.
Certo dia, pegou a sua moto após o trabalho como sempre fazia e começou a rodar pela estrada. Percorreu um número atípico de quilômetros, mas parecia que não tinha andado um metro sequer. Tanto a sua esquerda como a sua direita, a paisagem não se modificava: a poucos metros do acostamento havia uma cerca e atrás dela soja. Ele deve ter rodado mais de trezentos quilômetros naquela noite, mas teve que voltar sem ver o cerrado.
Quando chegou em casa, estava inconsolável. Não teve vontade de jantar, de jogar ou assistir televisão, simplesmente não queria fazer nada. Ele não conseguiu entender o porquê de o cerrado estar perdendo essa guerra contra a soja, afinal ele é mais belo e rico, e a soja somente ganha no quesito “gerar dinheiro”, algo superficial. De qualquer jeito, Osvaldo ainda não tinha desistido de ver o seu amor pelo menos mais uma vez.
No dia seguinte, decidiu faltar ao trabalho para procurar pelo cerrado. Logo quando acordou, pegou a moto e foi para a estrada antes mesmo de comer alguma coisa. O olhar dele estava o mais atento possível enquanto procurava uma estrada de terra, uma trilha ou alguma árvore distante indicando que o cerrado ainda estava vivo, mas não achava nada além da soja.
Já tinha ido para o norte, sul, leste e oeste quando o relógio deu dez da noite. Ele simplesmente não encontrava o cerrado, parecendo que ele foi sequestrado e não conseguiu deixar pistas indicando para onde foi levado.
A cada centímetro que andava, a sua esperança se esvaia um pouco. Lágrimas começavam a encher os seus olhos, mas se recusavam a sair. Um incômodo atingia o seu peito e fazia com que ele desejasse nunca ter existido ou que simplesmente sumisse apenas para que essa sensação cessasse. As suas pernas tremiam mais do que o motor da moto que dirigia enquanto os seus braços estavam firmes e duros como se não tivessem articulações. Numa hora, entretanto, tudo isso cessou. A sua face estava séria com expressões neutras, os seus músculos estavam relaxados e ele guiava a moto de maneira calma em direção ao acostamento.
Quando a moto parou completamente, Osvaldo desceu dela, caminhou um metro na direção da cerca e se sentou na frente dela. A sua alma já estava completamente morta, então ficou meditando ali até que o seu corpo definhasse e também morresse. Pelo menos dessa maneira, conseguiria se juntar ao seu querido cerrado. Ironicamente, essas duas mortes, a da alma de Osvaldo e a do Osvaldo, poderiam ser evitadas com a preservação do cerrado por meio da instituição de leis mais rígidas, uma fiscalização mais forte e a determinação de áreas de preservação. Infelizmente, tanto na morte do cerrado como na de Osvaldo, as outras pessoas passavam pela estrada e não ligavam.