Querido avô
O senhor se lembra da promessa que minha mãe lhe fez muitos anos atrás, de cuidar dos seus irmãos mais velhos, solteiros, quando não pudessem cuidar de si mesmos? Pois então, fico feliz em informar que ela vem cumprindo à risca essa promessa e agora que ela já não é mais uma moça, estou dando continuidade a esse compromisso. Devo enfatizar que não tem sido fácil cuidar de meus tios avós e, conhecendo seus irmãos como ninguém, o senhor há de concordar comigo.
Tia Clotilde, como o senhor já sabe, morreu faz alguns meses. Ela não era de todo ruim, na verdade o que foi ruim foi ver os estragos que a senilidade fez a tão exemplar criatura. Pois desde que se formou no colégio, dedicou sua vida ao magistério, cuidou de sua mãe idosa e palpitou, com a superioridade de primogênita, nos assuntos familiares de todos os irmãos. Os sobrinhos não apreciavam a austeridade e o altíssimo moralismo da tia solteirona, mas todos a respeitavam e procuravam manter sempre uma distância segura.
No fim, a tia não era nem a sombra do que fora outrora. Presa à cama com amarras de enfado e correntes de velhice. A pele, fina como papel de cera, mal cobria veias e ossos, e o cabelo finíssimo se assemelhava a painas esvoaçantes. Descansou, coitada.
O senhor não se surpreenderá em saber que tio Alberto continua cada dia mais detestável. Alcoólatra e teimoso, passou a vida toda se aproveitando da sombra protetora da irmã, que lhe proporcionava uma vida sossegada, sem um mínimo esforço da parte dele. Agora que está sozinho, está insuportável, toda a falsa aparência de respeitabilidade se foi. Mas vamos logo ao motivo que me inspirou essa carta. Quero muito acreditar que o senhor não sabia de nada que irei agora contar.
Logo que tia Clotilde morreu, fiquei responsável por organizar seus pertences e doar suas roupas para o asilo, assim como colocar em ordem seus poemas e quem sabe, no futuro, tentar uma publicação. Tio Alberto tornou essa tarefa insuportável, chorando sobre cada peça de roupa, móvel, papel. Parecia até que estava me vigiando. Para continuar meu trabalho, confesso que dei um copo de leite com um calmante poderoso que apagou o tio na hora. Aproveitando a calmaria, continuei meu garimpo e achei no fundo da cômoda que servia de repouso a seus escritos uma caixa comum, de madeira polida, com um pequeno cadeado guardando seus segredos. O senhor não pode me culpar por abrir, já que eu tinha que descobrir do que se tratava, a fim de dar melhor destino ao conteúdo.
Abri a caixa, não sem alguma dificuldade já que não estava na posse da chave. O que descobri me deixou chocada; dentro daquela pequena caixa comum e ordinária se encontrava a história toda de uma mulher. Documentos, fotografias, cartas, históricos médicos, desenhos, uma infinidade de tesouros que uma mãe zelosa guarda de suas crianças. Gostaria de enfatizar o quanto eu desejo que o senhor não tenha tido um conhecimento prévio desses fatos pois a mulher cuja vida se resume nessa caixa é filha de tia Clotilde. Se meus olhos não tivessem visto a certidão de nascimento, não teriam acreditado.
Não consta o nome do pai. Teci inúmeras hipóteses sobre ele. Teria sido um grande amor da juventude? Se foi, porque não assumiu a criança? Será que a tia foi vítima de alguma violência? Um abuso? Tremo só de pensar nessa possibilidade. Pela data de nascimento, tia Clotilde não havia ainda completado os vinte anos quando deu à luz a criança. O senhor era, então, apenas um rapaz, não se lembra de nada suspeito? Ou sempre soube e ajudou na ocultação dos fatos? Como fizeram? Tia Clotilde foi passar um tempo com parentes distantes, como nos livros e filmes? O pior, entretanto, é que segundo entendi dos laudos médicos, a criança nasceu com a síndrome de Down e foi entregue a um lar para deficientes assim que nasceu. Como puderam fazer isso? Eu sei que era outra época, as coisas eram muito mais difíceis, mas nada justifica abandonar um bebê num lugar desses, o senhor não acha? Como ninguém nunca soube disso? Tio Alberto sabia? Foi por isso que me vigiou tão de perto?
Contei só para minha mãe, e fiz isso unicamente por descobrir que a prima Bernadete ainda está viva e residente no mesmo lar até hoje. Não dá para passar ao papel a incredulidade de minha mãe, o choque foi enorme. Ela garantiu que ninguém sabe sobre essa história e estamos em um impasse sobre tornar público ou não. Como poderíamos deixar uma prima morrer em um lar para deficientes? Ela tem hoje setenta e quatro anos, deve se sentir sozinha, abandonada. Por outro lado, como poderíamos manchar a reputação impecável de tia Clotilde?
Não se aflija, querido avô, sei que o senhor não poderá responder nenhuma de minhas perguntas, mesmo assim queria desabafar. Precisava contar tudo ao senhor, mesmo sabendo que provavelmente já tenha ciência de tudo no lugar onde está. Saiba que sentimos muito a sua falta.
Com carinho,
Sua neta,
Alícia.
PS: Minha mãe e eu fomos visitar a prima Bernadete. Não nos apresentamos, fingimos ser voluntárias conversando com os internos. Devo admitir que a encontramos em ótimo estado físico e mental, conversamos longamente com ela e perguntamos como era sua vida, se conheceu sua mãe… Sua resposta nos deixou aliviadas. Parece que tia Clotilde e o Tio Alberto iam visitá-la com uma regularidade espantosa ao longo de sua vida. A tia se fez presente, ajudou em sua extrema educação, deu todo amor e carinho que qualquer filha merece.
As enfermeiras disseram que quando a tia parou de visitar, por causa da idade, a prima Bernadete sofreu muito, não entendia o porquê da ausência da mãe. Mas logo essa tristeza se acalmou e uma resignação silenciosa tomou conta dela. Perguntamos sobre como foi crescer no lar e ela respondeu que sua vida foi ótima, cheia de amigos e pessoas queridas. Perguntamos se ela não preferia viver com sua família ao invés do lar, e ela respondeu prontamente que não, pois no lar eles podiam cuidar de suas necessidades melhor do que alguém mais poderia.
Não tenho certeza se acredito em tamanha ventura, em se tratando de um lar para deficientes, mas não tenho outros meios de descobrir a verdade. Resumindo, está e sempre esteve satisfeita e feliz. A reputação de tia Clotilde está a salvo. Resolvemos deixar tudo como sempre esteve.