UMA PALAVRA MISTERIOSA

Sentada no sofá da sala, Ragna segura pensativa, um antigo dicionário. Encontrara-o quando fazia uma limpeza na estante abarrotada de livros do seu quarto. Pela enésima vez, sua mãe a mandara organizar sua estante a fim de analisar o que poderia ser doado. Ragna tremia só em imaginar seus queridos livros afastando-se dela.

Deteve-se em um dicionário, imaginando se poderia se desfazer dele, mas, ao folheá-lo, seu olhar fora capturado por uma palavra que lhe chamara a atenção:

RAIONA.

Abaixou as mãos segurando o dicionário e olhando para cima, buscou no cérebro, o significado dessa palavra. Caminhou até a sala, ainda com o grosso livro em mãos, sentou-se no sofá para pensar melhor.

Habituada a deter-se quando via palavras estranhas (talvez porque seu nome sempre lhe soara estranho), deixou seus olhos irem e virem nas letras daquela nova palavra por alguns milésimos de segundos e repentinamente resolveu fechar o dicionário com força, causando um baque surdo que fez Salém pular assustado do sofá para o pufe cor-de-rosa. Ela olhou para seu gato persa, que lhe devolveu um olhar zangado, debaixo do pelo cinza-escuro que cobria seus minúsculos olhos.

“Que susto, sua louca! ”

- Desculpe, meu lindo. – Falou ela, como se o gato entendesse sua língua. – É que quero tentar adivinhar o que essa palavra significa sem olhar seu significado. O que ela lhe sugere, Salém?

O bichano miou, olhando- a com a cara de desdém “padrão gato -rei” e voltou a enroscar-se no quentinho do sofá.

Ragna continuou seu devaneio introduzindo Salém em sua conversa, imaginando o que aquela palavra poderia significar. Pôs-se de pé, a andar de um lado para o outro, sentindo o tapete macio da sala de estar, passar entre os dedos dos seus pés descalços. Recorre a um antigo cacoete, que sempre lhe ajuda a pensar: dar leves tapinhas no queixo, com o dedo indicador.

- RA-IO-NA... – Pensativa, ela divide a palavra. – Será que tem algo a ver com raio? Não, não... Se fosse algo a ver com raios seria “RAIONO”, já que raio é substantivo masculino.... Não...Não!

Continuou seu passeio para lá e para cá, batendo o dedinho no queixo. Para, de repente, apontando o dedo para Salém, que agora a olha interrogativamente.

- Já sei! Provavelmente vem de raia, o animal marinho, que em alguns lugares tem o nome de arraia. Sim! Raiona, pode ser uma raia grande! Uma raioooonaa! – Fala ela abrindo os braços, na tentativa de intensificar seu pensamento.

- Miau... – Salém responde baixinho, ainda assustado com aquela representação da sua dona, mas prefere se fingir de morto. Abaixa a cabeça, escondendo-a com a pata gorducha.

“Será que essa maluca não vai me deixar dormir? ”

- Mas...seria RAIONA o aumentativo de raia mesmo? – Ragna volta a andar pela sala e o dedo indicador volta a tamborilar em seu queixo. – Me parece um aumentativo um tanto pobre para um vocabulário tão vasto como o nosso!

- Vamos lá: Raio, Raia, Raiar, Ragna... (olha meu nome atrapalhando de novo! Aff!).

No auge da impaciência adolescente, Ragna odiava seu nome. Seus pais, amantes de literatura, história, filmes e séries, gostavam de batizar pessoas e animais com nomes retirados deles e era só ela dizer o seu nome que já esperava o ouvinte perguntar-lhe:

- Ragnar? O Viking? – E um sorriso de deboche sempre acompanhava as perguntas. – Vahala! Como odiava aquilo!

Balançou a cabeça a fim de concentrar-se. Focou novamente na palavra desconhecida e voltou a ponderar seu significado.

- Se não tem a ver com raios, se não é aumentativo de raia, teria alguma ligação com raiar? Tentou formular uma frase que corroborasse com sua nova ideia.

- “ O raiar da raiona invade o seu quarto...” Não.... Muito esquisito! Arre! Que raios de palavra é essa?

Sentou-se no sofá um tanto desanimada. Acariciou os pelos do bichano que ronronou agradecido.

“Ah! Finalmente, um carinho gostoso...”

De repente lhe ocorrera que poderia ter lido a palavra errada. Seria RAIONA mesmo? Será que era RAIANA e na penumbra do quarto, seus olhos a enganara?

Sentiu-se tentada a abrir o dicionário e conferir sua dúvida, mas o medo de não resistir e olhar seu significado a fez recuar. Estava decidida a decifrar o mistério do significado daquela palavra esquisita.

Correu com o dicionário até a cozinha e entregou-o à sua mãe que olhou interrogativamente para o grosso volume que agora jazia em suas mãos.

Salém desceu do sofá e correu atrás da sua dona.

“Nem com todo sono do mundo eu vou perder essa! ”

- Mãe, abra esse dicionário na letra R e veja se encontra uma palavra chamada RAIONA, por favor. Mas, não me fale o significado!

- Lá vem você com essa história de palavra nova. Está querendo saber todas as palavras do dicionário? – Brinca D. Letícia, com uma ponta de orgulho na voz, folheando o dicionário com destreza, buscando a palavra, utilizando o dedo como régua. No fundo, gostava de ver sua filha seguindo seus passos literários.

Ragna fica calada, aguardando, enquanto sentia os pelos macios de Salém roçar em suas pernas. Olha para o gato e este lhe devolve um olhar cúmplice.

- Aqui! Encontrei! – Exclama D. Letícia, batendo na palavra, como se esse gesto pusesse mais ênfase ao seu achado. - R-A-I-O-N-A. Significado...

- Nãããooo! – Grita Ragna. – Não leia o significado em voz alta! Está correto então? Essa palavra se escreve assim mesmo? Não é RAIANA?

- Não, filha. Ainda sei ler.... É RAIONA mesmo. Toma! Leva seu dicionário e veja se termina de arrumar essa estante ainda hoje, por favor – Ordena Dona Letícia, devolvendo o livro e voltando aos seus afazeres.

Ragna dá meia volta e vai se dirigindo à sala quando resolve voltar e perguntar à Dona Letícia: - Mãe, me dá uma pista? Essa palavra tem a ver com raio, ou raia ou raiar?

- Que nada, filha! Passou longe! - Responde sua mãe com ar de mistério.

- É o nome de alguma coisa ou pode ser conjugado como um verbo? – Insiste Ragna.

- É o nome que se dá a uma coisa! – Responde Dona Letícia.

- É um objeto? - Ragna pergunta esperançosa.

- Não! É o nome de...de uma...coisa! Você não falou em raio? Raio é um objeto? Não. Então, é por aí o raciocínio. - Responde Dona Letícia já impaciente. – E, vai logo terminar de arrumar essa bendita estante!

Ragna segue pensativa em direção ao seu quarto, abraçando o dicionário, seguida do fiel Salém em seus calcanhares.

- Um “nome que se dá a uma coisa...” Um objeto? Não. Ela disse “um nome para uma coisa...” Que coisa será essa? Um raio não é um objeto.... Que raios é um raio? Um elemento? Ora bolas! Perdeu a graça, esse mistério!

Solidário, Salém lhe devolve um miado acalentador.

- Miaaauuuu!

Indignada joga o dicionário em cima da cama e recomeça a arrumação da estante.

Nesse instante, a porta do quarto se abre e o seu pai, alheio ao seu dilema literário, lhe pede em tom de súplica:

- Ragna, preciso que você me faça um favor urgente! Vá até a garagem e pegue para mim uma caixa de ferramentas que está na prateleira acima do armário de madeira. Não está muito pesada, mas tome cuidado para não cair em seus pés. – Adverte, cuidadoso.

Ragna sai rapidamente do quarto a fim de atender o pedido do seu pai e, chegando numa garagem cheia de ferramentas e materiais de trabalho, vasculha as prateleiras em busca da caixa de ferramentas. Salém que seguiu em seu encalço, sobe em uma das prateleiras, cheirando tudo o que encontra pela frente.

Logo Ragna encontra a caixa que seu pai pedira e já ia saindo apressada, quando Salém pula da prateleira para cima de um saco grande de tecido, derrubando-o juntamente com algumas latas de produtos. Ela se volta para conferir a bagunça, pronta para brigar com seu gato, quando algo no saco, lhe chama a atenção: A descrição do que é feito o tecido do saco, está em letras grandes e vermelhas, destacando-se no saco branco. Como o saco se dobrou com o peso do gato, ela só consegue ler o início e o final de algumas palavras. Dentre elas, uma em especial: R...na.

Detém-se e se encaminha vagarosamente em direção ao saco. Arruma-o, de forma que possa ler melhor o nome que aparece embaixo do nome de fantasia. E lá está:

“TECIDO FEITO DE PURA RAIONA ”

Ragna não acredita em seus olhos. À sua frente está a solução da palavra misteriosa. Um riso contido se forma em sua garganta e de repente se transforma em uma gargalhada. Salém resolve sair de perto dela.

“Pronto que agora endoidou de vez...”

Com lágrimas nos olhos provocadas pelo riso incontido, Ragna lê mais uma vez, o nome desenhado na embalagem aos seus pés.

Sua grande palavra misteriosa, sua RAIONA, nada mais era do que um material sintético feito a partir de fibra de celulose, semelhante à seda.

Ainda sorrindo, carregou a caixa de ferramentas numa mão e Salém na outra e seguiu cantarolando de volta para casa.

FIM

Licínia Ramizete

26/06/2019