No dia 13 de agosto, o boi pressentiu a morte de seu padrinho, assim considerado, desde sua captura pelo vaqueiro. Boi Chuvisco urrava e lágrimas escorriam, feito gente em clamores de velório. João Velho seguiu a batida do boi, e viu o corpo enegrecido de Onofre, pendurado no galho, como picumã no travessão da cozinha. Urubu fazia sombra, mas o boi guardava o padrinho, afastando negras asas com seus bicos dilacerantes, sedentos por uma manta de carne fria.
Não há guarda chuva contra a morte. Não há melhor sorte para o bonito, o feio, o pobre ou o rico: “ A única certeza da vida é a morte.” Somos passageiros em comboio de invernada, de tal sorte, que, se não se morre quando novo mais cedo ou mais tarde, todo ser vivo abandonará o velho casulo e nada mais resta, senão um fio de lembrança, guardado nos anéis da memória.
Saudade foi o que restou da fazenda. Campo Grande tornara-se campo de batalha perdida. Nada mais ali fazia sentido para a viúva. Pouco lhe restara além da lembrança dos bons tempos que passara ao lado do marido. Com efeito, a família do coronel Generoso migrou para o Rio de Janeiro, levando consigo recortes da história, alinhavados com fios de muita saudade. Corina então, decidiu morar numa casa simples na Tijuca, e deu à sua nova morada o mesmo aspecto interno do casarão da fazenda, mandando cavar um oratório na parede, de modo que, quando entrava no quarto, podia ver a imagem do Crucificado, entalhada em bronze. No alto da parede, com a face voltada para os pés da cama, estava o retrato do finado, quando jovem. Já na moldura menor, sob o olhar de ontem do pai, a pequena Dulcinete descansava no colo da mãe.
O tempo que viveu na fazenda Campo Grande ficou gravado nos anéis da memória, mas nem tudo que viu, viveu e aprendeu, veio das cercanias da fazenda, ou dos almanaques que lia. Aprendera com o marido que tinha uma bagagem de cultura regional, sabedoria popular, e um baú de lendas e fatos com o matiz das cores do Brasil. A lenda da carimbamba, por exemplo, Corina achava que era invenção de Generoso. Ele contava que ninguém do sertão ou do mar, jamais viu a carimbamba. Só à noite se ouvia seu lamento triste, semelhante ao clangor da acauã, canglorando, canglorando, agourando morte na aldeia. Dizem que a carimbamba que há mil anos canta, tem cabeça de gente e asas que não voam e é igual em malvadeza ao Cabeça de Cuia que, “Sete Marias precisa tragar. Sete virgens comer pro encanto acabar...”
— Certo dia — disse Corina—, no cair da tarde, Maryula ouviu a carimbamba cantar: “amanhã eu vou... amanhã eu vou...amanhã eu vou... amanhã eu vou.” A menina adentrou a mata, e ao pisar a vegetação rasteira, o paredão a mata se abriu e a lagoa encantada apareceu. A pequena Maryula não voltou para casa e até hoje, corre o boato, que uma velha encurvada, grasna, em noites de lua cheia, na lagoa que não é mais encantada.
— A menina se transformou numa velhinha mesmo, vovó?
— Nunca se sabe. A velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor. Nas lendas e histórias infantis, as personagens não crescem, não envelhecem e não morrem. Até saem dos livros de ficção, e vão morar no mundo real.
— Conte mais uma história, vovó!
— Hoje não cabe mais. Durma, minha filha!
No dia seguinte, já final de outubro, o vento balançava os galhos mais tenros da mangueira e dois frutos despencaram antes da maturação. Tinham roupagem verde-chumbo e eram pequenos. Caiu na cesta o primeiro chegado, o outro, no chão, dentro da vala de escoamento das águas pluviais.
— Não presta. Jogue fora!
— Só porque é filhote de manga?
— Não! Porque é peco.
— Eca!...
Caiu também uma manga madura, e ficou presa na forquilha do tronco.
— Pegue, Chanana, seu braço alcança!
— Pego não! Está coberta de mosquitos e de chien.
— Picam?
— Mosquito assenta nos olhos da gente. Caminha no branco do olho. E chien gruda nos cabelos.
— Saiam da chuva! — gritou Corina, lá da cozinha.
— Vamos Ravenala, lá vem chuva de manga.
Entraram.
Da janela de seu quarto, Ravenala olhava os pássaros, nicando as mangas maduras. Elas caiam sobre o piso cimentado, varrido, lavado e escorrido por Chanana, que trazia nas mãos os calos de Corina.
Naquele dia na escola, ela produziu em sala de aula o texto “Fruto Peco” em cujo tema, de livre escolha, ela descreveu as cenas que viu mais cedo no quintal de sua casa: “Murcho, peco e enrugado, o fruto cai do galho, antes da maturação, como criança abortada, ainda quase em flor...”
— Vovó, consegui nota máxima, hoje, em produção de texto.
— Parabéns, minha filha! Agora, venha almoçar. Tens tarefa escolar a fazer.
— Não, vovó! Hoje é sexta-feira.
— Venha almoçar!
— Tô indo...
— Quando dizem “tô indo,” as crianças ainda ficam meia hora. Essas crianças!...
Ravenala comeu às pressas, entrou no quarto em que ficava o oratório de sua avó, e pôs-se a olhar uma réstia de sol, que incidia sobre a imagem em bronze de Jesus Crucificado.
— Quem te machucou?
— Foram as pessoas que amo.
— As pessoas que amamos machucam a gente.
— Às vezes, sim!
— Estás muito ferido!
— Sou Pastor. Toco flauta para minhas ovelhas.
— Vou passar mercúrio em seu dodói.
— Faça como disseste.
A menina olhava o Tocador de Flauta pregado na cruz. Machucado. Desprezado. Coberto de chagas. Resignado, não reclamava, não levantava a voz.
— Foste tu que tocaste flauta e uma rataiada atirou-se ao mar e se afogou?
— Aquele é outro tocador de flauta. Quando toquei flauta, quem se atirou ao mar foi uma vara de dois mil porcos.
Ele não disse que os porcos estavam possuídos por demônios. Por seu turno, embora não fosse capaz de compreender toda a dimensão do universo humano, Ravenala insiste em desvendar os mistérios da vida e acrescentar uma centelha de luz a sua percepção de mundo.
— Vovô mora nesta parede, mas não desce para conversar comigo.
— Teu avô mora no céu.
— Chanana disse que meu avô mora numa estrela.
— Ele é uma estrela. Olhe para o céu. Aquelas estrelas são as almas dos fiéis cristãos.
— Não consigo reconhecer minha estrela, entre milhões de seres luminosos. Qual delas é meu avô Generoso?
— Não faça distinção das coisas criadas, ame a todas, igualmente.
— Quero ser uma estrela!
— Não é chegada a tua hora.
O desejo de tornar-se estrela invadiu a pequena a alma de Ravenala, mas, os dias se lhe pareciam lentos, viajando preguiçosamente nos ponteiros do tempo.
No dia seguinte, (já era novembro) a menina não foi ver o amigo que mora no quarto misterioso. Deitou-se, e ficou contando as sombras que passavam de cabeça para baixo, na calçada. Viu um menino de mãos dadas com uma mulher. Logo, ambos desapareceram da imagem projetada na parede.
Alguém tocou a campainha. Corina atendeu.
— A senhora não quer entrar?
— Não! Só vim trazer o Bob. Pego antes das dezoito horas.
A mãe de Bob nunca entrava. Olhava, demoradamente, para Ravenala e dizia em seu coração: ‘Se fossem gêmeos, não se pareciam tanto: os mesmos olhos, cabelo, nariz...’ E repreendeu o pensamento pondo fim ao discurso de sua imaginação.
— Oi, Ravenala!
— Oi Bob! Posso te contar um segredo?
— Claro!
— Promete não revelar a ninguém?
— Sim, sim!...
—Em minha casa tem um quarto secreto.
— Quero conhecer!
— Eu disse que é secreto.
— Amigo não esconde segredo do outro.
— Olha lá hein! Quem revela o segredo de um amigo, perde a confiança e o amigo.
— Posso ver o quarto agora?
— Mostro a entrada e fico entretendo a vovó. Você entra.
— É muito escuro?
— Meia-luz. Tem uma janela, mas a vovó não deixa abrir.
E, dirigindo-se para a cozinha, Ravenala põe em prática seu plano de manter a avó ocupada.
— A senhora faz um bolo pra nós?
— Sim, sim. Eu faço! Cadê seu coleguinha de escola?
— Deve ter ido ao banheiro.
Robert abre, cuidadosamente, a porta que dá acesso ao quarto do oratório. Volta depressa, caranguejando e tropeça em Corina.
— Caminhando de lado? Viu assombração, menino?
— Desculpe, senhora! Estava procurando Ravinha.
— Ela deve estar na sala. Desculpe-me se fui grosseira. Não quis ofender.
— Nada não. Nada não! Desculpe mais uma vez, vó. Foi uma aposta que fizemos.
— Gostei de me chamares de vó. Ganhei um netinho, bonito e educado. ‘Aposta... Essas crianças saem com cada uma!...’
Na sala de estar.
— Bob, como surgiu a ideia da aposta? Não apostamos nada!
— Não foi nada planejado. Dei a primeira resposta que me veio à cabeça...
— Minha avó é boazinha. Só não me deixa entrar no quarto misterioso.
— Aquele é seu quarto secreto?
— Sim! Conta o que viu!
— Não há nele nenhuma porta secreta. Nenhum portal para um mundo desconhecido.
— Então o Portal não abriu pra você?
— Não. Para mim não se abriu.
Ravenala arrependeu-se de ter falado de seu quarto secreto.
— Que viste no quarto secreto? — insiste Robert.
— Vou contar: estava sozinha no quarto — é preciso estar sozinho — tive vontade de fechar os olhos. E quando abri...
— Ravenala, chame seu colega! O bolo está pronto — disse a voz que veio da cozinha.
— Conta logo!...
—Não dá. Demora muito.
— Fizeste contato com o sobrenatural?
— É brincadeira. Só queria saber se tens medo de escuro.
— Medo, isso não tenho. Vi um velho conversando com um homem machucado. O velho também estava ferido. Contei tudo que vi. Mas o portal não se abriu. Agora conta o que viste.
— Nunca vi o velho.
— Também não vi nada — disse Robert — eu estava brincando só para ver se tinhas medo de visagem.
— Não é válido usar o mesmo argumento que eu.
— Não tenho medo de assombração. Não tenho medo de casa mal assombrada. Não tenho medo de nada. Não existe casa mal assombrada. Existe gente medrosa que pensa estar vendo assombração.
— Chanana disse que tem um cabedal enterrado na antiga senzala da fazenda Campo Grande. Vaqueiros viram luzernas.
A portinhola rangeu e logo, Robert deduziu que sua mãe acabava de chegar. Lá mesmo de onde estava, ele disse em voz alta:
— Espera um pouco, mãe!
— Mais cinco minutos, então.
— Será por que as mães só dão cinco minutos?
— E a gente fica meia hora.
Os dois riram.
— Conta logo, Ravinha. Só temos mais cinco minutos! O que viu?
— Aquele quarto não tem mistério algum! O meu tem. O meu tem mistério!
— Então fala!
— Se o tempo estiver nublado, não funciona. Mas com a luz do sol, em determinadas horas do dia, vejo imagens passando de cabeça para baixo na calçada.
— É engraçado, mas nem tanto misterioso. Leonardo da Vince descreveu o princípio da imagem invertida. Teu quarto funciona como uma câmera escura; a luz penetra por um orifício da janela e vês a imagem projetada na parede de forma invertida.
Sem entender completamente, Ravenala concordou com um sorriso discreto.
— Pode ser. Bob. Pode ser!
— Vamos ver as figuras invertidas em teu quarto? — disse ele.
— Não podemos. Cadê o sol?
A campainha tocou três vezes.
Vamos, Robert! — já passou da hora.
Passou muito — pensou Dulcinete — deitada que estava em seu quarto, desde cedo, lendo livros de autoajuda.
Robert acompanhou a mãe, pensando naquilo que Ravenala lhe dissera sobre o quarto secreto. “Será que ela fala a verdade ou me tapeia?”
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou", obra em construção.