Três Dias de Noite
Em uma casa à beira de um lago, a família Guimarães passava as férias prometidas pelo pai há sete anos, desde o velório da vovó Jeice.
- Pai, a Sara dormiu outra vez no sofá!
- Deixe a sua irmã dormir, Davi! Não a incomode. Você sabe que ela teve uma noite difícil.
O garotinho de oito anos não entendia como a irmã conseguia passar a noite toda acordada por causa de pesadelos. Ele sabe desde os seus cinco anos que monstros não existem.
- A mamãe já fez o café? Perguntou Sara esfregando os olhos. – O Davi me acordou de novo.
- Mana, hoje é dia de nadar no lago... lembra? Você me prometeu isso ontem!
- Eu sei, chatonildo! Não precisa ficar me lembrando o tempo todo. Eu vou te levar para nadar.
João sempre achava hilária a discussão entre seus filhos. – Davi é sempre agitado, parece que tem uma descarga elétrica no corpo – pensou o pai.
- Crianças, a mamãe saiu mais cedo para ir ao mercado da cidade. Ela foi comprar algumas coisas e já volta.
- Estou com uma fome de urso!
- Davi, você sempre está com uma fome de urso. Respondeu Sara.
- Pai, a Sara tá sendo chata de novo! Disse o menino franzindo a testa.
- Não briguem. Disse o pai
Lá fora, o som de pneus sobre o caminho de pedrinhas anunciou que Marcela chegou.
- Mãe, mãe! Gritou Davi correndo em direção à porta.
- Lá vai o bebezão. Pensou sua irmã.
O filho caçula abriu a porta, que rangeu por causa das dobradiças enferrujadas.
Marcela estava com o porta-malas cheio de compras.
- Vou precisar da ajuda de todos, meu anjo! Disse a mãe quando viu o menino.
- Espera que vou avisar o papai e a mana.
- Pode ir, vou esperar.
Davi voltou rápido acompanhado do pai e da irmã.
- Oi, amor! Falou João antes de um selinho em Marcela.
- Nossa! O mercado estava tão agitado hoje. Parecia que as pessoas estavam estocando coisas até não caber mais nada. Disse Marcela.
- Deve ser por causa da tal profecia, mãe. Falou a menina se aproximando para dar um abraço na mãe. – A internet está cheia de vídeos alertando a todos sobre isso.
- Filha, o que eu disse sobre acreditar em coisas da internet? Questionou-lhe seu pai. – Coisas assim são apenas uma forma de controle. As pessoas precisam acreditar em algo para não serem más.
- JOÃO! Não seja assim com a menina. Você está fazendo de novo. Disse Marcela.
Sara olhava cabisbaixa para os dois.
- Mas, amor! Você sabe como é prejudicial acreditar cegamente nas coisas. Principalmente quando se trata de religião.
- Não é apenas religião, pai! É ciência também. Disse a menina dando às costas.
- Tá vendo, você estragou o dia dela pelo visto. Falou Marcela.
- Não estraguei nada. Isso é só mais uma fase da adolescência.
- Tá bom, amor. Não quero brigar por causa de um motivo bobo.
Enquanto discutiam, o pequeno Davi colocou metade das compras para dentro.
- Vamos, que eu preciso me adiantar para o almoço. São 9h45 e ainda não tenho ideia do que preparar.
- Que tal macarronada, mãe? Sugeriu Davi.
- Pode ser. Todos concordam? Perguntou Marcela.
- Tanto faz, mãe. Respondeu a filha.
- Sim, pode ser. Disse o pai.
- Então, enquanto preparo o almoço, Sara, você e seu irmão vão nadar.
- Tá bom, mãe.
- Cuide do seu irmão.
Davi correu para vestir seu calção de banho. Sara demorou para pôr um maiô que lhe vestisse o mau humor. Prontos. Os irmãos saíram para ir ao lago, que atravessava a propriedade, dando também uma parte para o sítio vizinho.
O lago à beira da casa tinha águas verde-escuras com uma profundidade de cinco metros e algumas plantas cresciam à borda do lado oposto à casa.
Na outra beira, era possível enxergar um homem e um garoto pescando. Eram seus vizinhos, Matias e Nathan.
Davi ficou com muita vontade de chamar Nathan para nadar junto dele e da irmã. No entanto, o desafio era atravessar à nado toda a extensão do lago.
- Nem pense nisso.
- Eu consigo.
- Claro que não. Vou falar com a mamãe para ligar para a mãe do Nat e pedir se ele pode vir nadar com a gente.
- Pede logo, por favor.
Sara voltou para a casa para falar com sua mãe.
Depois de uns instantes, Matias apareceu gritando, todo molhado, no deck da casa.
Ele estava com Davi em seus braços.
- O que aconteceu? Desesperado o pai perguntou.
- O menino tentou atravessar o lago, nadando. O Nat viu tudo. Ele quase afogou antes de chegar no meio
- Meu Deus! Davi. Por que você fez isso?
- A Sara demorou muito para chamar o Nat para nadar.
- Eu sai um instante perto de você. Respondeu a menina para seu irmão.
- SARA! Como você pôde ser tão irresponsável? Falou João de um jeito rude. – Você não percebe que ele é uma criança? Cresce menina!
A garota engoliu o choro para parecer forte antes de correr para seu quarto, no segundo andar.
Na hora do almoço, Marcela, João e Davi comiam calados. O prato de Sara fumegava com o macarrão quente, mas seu lugar na mesa estava vazio.
Davi ainda estava com o cabelo molhado e com uma toalha em volta do pescoço. Seu pai comia com os olhos voltados para o prato e a mãe enrolava os fios de massa pensando que poderia ter perdido o filho.
- Você sabe que não é culpa dela. Marcela puxou a conversa.
- Como não pode ser? Ela era responsável por ele.
- Eu sei disso, mas o Davi é nosso filho. Assim como ela também é.
- Ela é mais sua do que minha, Sara. Falou João ironizando a própria paternidade.
- Seu nojento! Por que continua falando isso? Você esqueceu do que conversamos?
- Fatos são fatos, Marcela. Não é possível mudá-los!
- Vamos, Davi. Disse sua mãe estendendo a mão. – Seu pai quer comer sozinho.
O garotinho, sem entender nada, apenas segurou a mão de sua mãe para que se retirassem da mesa.
Enquanto saíam da cozinha, o menino ia vendo o pai sozinho com seu prato de macarrão fumegante, diminuindo por causa do seu ponto de vista.
Marcela e Davi subiram para falar com Sara, que se resignou em seu quarto desde a vergonha que passou na frente do seu vizinho.
De olhos inchados, a menina abriu a porta para falar com a mãe. Ela ainda estava ressentida porque deixou o irmão correr um risco de morte, mas mais ainda porque o pai lhe falou daquele jeito.
- Filha, seu pai é grosso às vezes, mas ele ama você.
- Falando daquele jeito? Duvido muito.
- É que ele ficou com medo do que poderia ter acontecido ao seu irmão.
- Mãe, eu não vou conversar com o pai, se é o que a senhora está tentando fazer.
- Filha...
- Não quero mais conversar.
Marcela sai do quarto acompanhada de Davi que choraminga porque ainda estava com fome.
A menina se volta para seu celular. Ela assiste a um vídeo sobre um planeta com uma órbita irregular, o qual pode provocar um eclipse de proporções apocalípticas no planeta inteiro.
- Espero que isso nunca aconteça. Pensa a menina.
No fim da tarde, João assiste TV na sala e Marcela e Davi brincam do lado de fora. Sara continua no quarto.
A noite vem chegando silenciosamente, engolindo a todos vagarosamente. Quando mãe e filho percebem, o escuro já domina a paisagem.
Marcela e Davi estavam à porta quando as luzes se apagaram repentinamente e Sara desce aos prantos do quarto.
- Começou! Começou!
- O quê começou, menina? Pergunta João que ainda continuava no sofá.
- É o fim!
- Que conversa é essa, filha? Pergunta Marcela.
- Eu disse a vocês!
As luzes voltam a apagar e a acender repentinamente.
Lá fora, há um silêncio profundo.
- É melhor procurarmos algumas lanternas e ligar para a companhia elétrica. Diz João.
- Eu ligo. Disse Marcela.
- Vou buscar a lanterna!
- Eu já disse que é o fim.
Davi começa a chorar com medo da conversa de sua irmã.
- Não faz isso filha, por favor.
- O quê, mamãe?
- Falar desse jeito.
- O quê, mamãe?
- Isso é alguma brincadeira, Sara?
- O quê, mamãe?
- Pare com isso!
O choro do caçula aumentou.
- Para, Sara!
- O quê, mamãe?
Irritada, Marcela bate em Sara.
- O quê, mamãe?
- O quê, mamãe?
- O quê, mamãe?
- O quê, mamãe?
Davi agora esconde seu rosto na perna da mãe chorando muito mais do que antes.
- Para, mana!
- Sara, pare agora! Você não vê o que está acontecendo ao seu irmão?
- Quem é Sara? Pergunta a menina.
As luzes se apagam.
A porta range.
Marcela não escuta mais Davi chorando.
João foca sua lanterna em Marcela, que está desmaiada próxima à porta aberta.
- Marcela! Marcela! Acorda!
- O que aconteceu?
- Eu não sei.
- Onde estão as crianças?
- Elas não estavam com você?
- Claro que não.
- Eu estava no quarto quando fui buscar a lanterna.
- E o jornal?
- Aqui não tem sinal de TV, que conversa é essa?
- Você estava aqui assistindo à TV quando as luzes se apagaram.
- Claro que não! Eu fiquei no quarto quase a tarde inteira. Só desci agora para pegar a lanterna depois as luzes apagaram.
- As crianças! Onde estão as crianças?
Lá fora, gritos são ouvidos.
O casal sai correndo para fora.
- É Sara e Davi, tenho certeza!
- Mas onde? É impossível enxergar nesse escuro.
- Foca ali a lanterna.
O feixe de luz incide sobre a trilha de pedrinhas na entrada da residência, que tem um brilho fosco.
Eles escutam gritos outra vez.
- Por ali! Diz Marcela. – Na direção do lago.
O casal corre. João aumenta regula sua lanterna para que o feixe de luz cresça. Eles escutam o barulho de água.
- João, olhe! O Davi está ali.
- FILHO! Como ele veio parar aqui? Cadê a Sara?
João aponta para o lago, que se move com pequenas ondas.
Sara grita!
- É a minha filha! Cadê ela?
O casal não sabe o que fazer.
Marcela sente uma mão gelada tocar seu ombro. É Matias.
- Pegue sua menina.
Sara está enrolada em um lençol.
- O que você fez?
- Eu a salvei.
- Como assim, seu louco?
- Voltem para casa! Agora!
- Que conversa é essa, cara. Diz João.
- Eles estão vindo!
- Quem? Pergunta Marcela.
- Eles...
As luzes voltam a acender.
Marcela e João ficam surpresos com o que estão vendo à sua frente.
Davi e Sara desmaiados e, ao lado, uma cabeça degolada.
É Nat.
As luzes se apagam.
Gritos são ouvidos outra vez.
O vento agita o lago.
Os pais correm de volta para casa.
Noite Um.