O defunto e seu companheiro
Era tarde de domingo. Início de inverno. O sol começa a se pôr no horizonte. João Feliciano estava sentado na praça, que ficava de frente a uma funerária. Ele era uma pessoa muito bondosa e muito respeitada na cidade. Com o sorriso gaiato, sempre feliz, ficava ali todos os dias e sempre tinha alguma conversa com quem passasse.
Neste dia, por causa do vento frio e a temperatura caindo drasticamente, não passou ninguém e os que ali transitavam, estavam apressados, indo diretamente para suas casas. João estava triste, pois havia preparado uma longa conversa com quem que ali chegasse, mas, até o momento, nem uma alma viva. Somente solidão pairava ali. O jornal lavado por ele foi lido várias vezes, apesar de ter poucas páginas, mais ou menos umas oito folhas. Ele já ia desanimando, quando do outro lado da rua ouviu uma voz meio fraca, mas que o chamava várias vezes:
- Sr. João, Sr. João.
Era a funcionária da funerária local. Ela recebeu um chamado de que a filha não estava passando bem e precisava leva-la até o pronto-socorro. O patrão estava viajando e não tinha outra pessoa para ficar ali. Um novo corpo havia sido preparado e aguardava o veículo para transportá-lo até a cidade de origem, que ficava a mais de trezentos quilômetros do local. Era um jovem dentista que faleceu de acidente de motocicleta. Tinha apenas vinte quatro anos e muita amizade na cidade.
Meio desgovernado e pego de surpresa, Sr. João ficou apreensivo e pensava consigo mesmo porque havia sido ele, o escolhido, para ficar ali, junto a corpo, em pleno final de dia e mais ainda no domingo. Gostava de ir à missa das dezenove horas. Dizer não a uma jovem mãe, muito conhecida e tentando resolver um pequeno problema de saúde, seria falta de educação e muita falta de afeto.
- Pronto, Dona Márcia. Estou aqui. Em que posso ajudar-lhe?
Com a voz mansa e muito educada, aquelas frases ressoavam alívio à funcionária. Ela poderia levar a filha ao médico e ainda saborear a noite, pois estava cansada e fez muito plantão na funerária. Estava cansada e não via o momento para deixar o trabalho. O patrão logo chegaria e se encarregaria de despachar o defunto.
- Sr. João. Preciso de um pequeno favor.
- Pois não, minha grande amiga. Respondia João.
- Olhe. Minha filha está com febre e dor de cabeça. Deve ser a sinusite que a atacou. Vou levá-la ao médico. Não vai demorar muito. O Sr. Pedro, o patrão, estará chegando dentro de uma hora ou mais. Preciso que o Senhor fique aqui, fazendo companhia a este lindo e fresco defunto. Não precisa muito ficar perto. Ele já está preparado e o carro virá buscá-lo daqui a pouco. Será que o Senhor poderia me ajudar?
Como dizer um não a uma pessoa tão bondosa, tão educada e que precisava de um apoio no momento tão difícil da vida. Então, raciocinando e sem palavras para dizer, ele, com um pequeno gesto de balançar a cabeça, disse:
- Com todo o prazer, minha Senhora.
- Ficarei aqui até a chegada do pessoal. Se o carro vier primeiro que o Pedro, eu faço o despacho e assino a papelada.
- O Senhor é um amor, é meu príncipe...
Com um beijo no rosto e um forte abraço, Márcia se despede de João e sai toda apressada. Ao dobrar a esquina, vira para o lado de trás e lança um beijo com as mãos na direção de João, que fica todo saliente e emocionado com o agrado recebido.
O tempo vai passando. A tarde vai dando lugar à noite, que violentamente se aproxima. São mais de dezoito horas e os ponteiros caminham para às dezenove horas. As pessoas vão passando perto da funerária em direção à igreja, pois a missa já está prestes a iniciar.
- Boa noite, Sr. João.
- Boa noite, Dona Terezinha, como vai?
- Vamos à missa, pois está quase no horário. Por que o Senhor não vem?
Desta forma, as pessoas, os conhecidos e os amigos passavam perto de João e lhe faziam várias perguntas. Muitas delas achavam estranho porque estaria ele ali, na porta da funerária e não ir à missa. Seria que algum parente havia falecido ou ele estaria ali para cumprir a missão de ser tão generoso para com as pessoas e estar “ quebrando um galho” para alguém.
A missa acabou e novamente as pessoas passavam perto da funerária e João continuava ali. Faziam as mesmas perguntas e ele respondia que estava ajudando a amiga até que o carro chegasse ou que o dono também chegasse.
Soaram nove badaladas no relógio da igreja, dez, onze. Eram vinte e três horas e mais alguns minutos. Nem o veículo, nem o dono da funerária chegava. As mãos começavam a suar frio. As pernas mal conseguiam ficar erguidas. Andava ele para um lado e para o outro. O vento frio iniciava a cada minuto mais gelado. Os cabelos sentiam o toque o vento. Os pés davam início de caibras, mas ele andava de ou lado para o outro. O frio apertava cada vez mais e ficar ali tornava-se impossível para ele, que era um senhor de mais sessenta anos. Solteiro e aposentado como professor. Morava sozinho e a única irmã morava no interior do Estado de São Paulo. Se ficasse doente, teria que se internar no hospital e ficar por lá bastante tempo. Desde que Márcia saiu, ele não entrou dentro da funerária, parece que tinha algo que o deixa confuso. Concluindo, ele tinha medo de ficar lado a lado com defunto. Então, pensou e disse, em voz baixa:
- Não me resta outra coisa a não ser ir para dentro. Pelo menos lá estará mais quente, porque aqui de fora, o frio não está nada bom.
Ao entrar, viu o jovem defunto todo arrumado. Sentou perto e fez algumas orações para a alma dele. Rezou várias vezes e refletiu a vida dos vivos. Pensando bem, ontem, ele ainda trabalhou, ganhou dinheiro e hoje está aqui totalmente imóvel, feito uma pedra, um ser sem vida, sem carinho, sem amor. Fará muita falta aos pacientes. Falando baixinho, disse:
- Como pode um jovem morrer de forma trágica assim. Um rapaz bonito, cheio de vida, cheio de dinheiro, com uma linda e esculpida namorada, com carro de luxo, com uma boa conta bancária e mais bens, deixar o mundo tão rápido.
- Imagine o que a família pensa neste momento.
- Chorar, cada vez mais chorar, é o remédio para tudo.
- Dizia um poeta:
-“ Chorar pela vida,
Até que a morte chegue,
Não se sabe como, nem mesmo a hora.
É o momento da partida eterna.
Neste ataúde sombroso
Tendo as flores ao redor,
Uma veste que cobre o corpo tresandar.
É hora da partida, é hora do último adeus.
Respiras, pelo menos uma vez,
Respiras a vida que te leva”.
Neste momento, um forte som, como se fosse um último suspiro, um último respiro, um último sopro para a eternidade, sai da boca do morto e até levanta as flores que ali estão perto.
Não se deu outra, a não ser João sair correndo e deixando o defunto ali, sozinho, na calada da noite. O suspiro do defunto foi tão forte, que João ainda guarda na lembrança o que passou ali.
No outro dia, Márcia foi até a residência de João e ao saber do acontecido contado por João, disse:
- É que eu coloquei um balão cheio de ar, junto ao travesseiro, para que a cabeça dele ficasse em uma posição melhor. Portanto, o balão não aguentou a pressão e o ar vazou, jogando ar nas flores que estavam perto dele.