CRIATÓRIO
Muitas vezes ela me convidou para olhar seu criatório. Sempre inventei desculpas, tenho um trabalho a fazer, minha mãe saiu e me deixou cuidando da minha irmãzinha, esse tipo de coisa. Na verdade, eu achava que ela estava usando essa história de criatório como desculpa, que ela me queria na casa dela para algum tipo de experiência, amorosa, digamos. Não, não me entendam mal, eu gosto de experiências amorosas, mas eu tenho namorada e não tenho intenção de traí-la. Ainda por cima, gosto da Cely apenas como amigo, não quero estragar isso. Ela até que é bonitinha, mas todos a acham um pouco estranha. Eu, para falar a verdade, já me acostumei com o jeito dela, com as roupas também, aquela mistura de sad com gótico, sei lá.
Já perguntei que espécie de criatório é esse, mas ela sempre desconversa, diz que eu descobrirei quando eu aceitar seu convite. Assim, ela acabou me convencendo.
A casa dela é grande e velha. Faz com que as histórias a seu respeito ganhem mais motivos. Quando eu entrei, a primeira coisa que eu vi foi um velho piano bem no meio da sala principal, todo coberto de poeira.
Você toca?, eu perguntei, imaginando que a resposta seria negativa, pois aquilo parecia não ser usado há séculos.
Não, ela disse. Mas um de meus amigos toca. Pensei em perguntar quem, mas desisti. Já havia me arrependido de ter aceito aquele absurdo convite.
Uma sala imensa e vazia, grandes janelas com cortinas imundas e antigas, nem um ruído sequer ou sinal de pessoas ali, foi a primeira impressão que eu tive. Mas ela continuava inabalável.
É lá nos fundos, ela disse.
O quê?, perguntei, já esquecido do que tinha ido fazer.
O criatório, ela respondeu sorrindo. Não ouve?, ela perguntou.
Parei por um instante e comecei a um ouvir um ruído de vozes muito longe, imaginei se a casa era tão grande assim.
Ouço, quem mora aqui com você?
Eu moro sozinha.
Aquelas palavras, junto com aquele alarido cada vez mais nítido, me fez arrepiar de cima a baixo. E eu só não sai correndo dali, porque nunca fui de fugir, e eu já estava curioso demais para voltar atrás.
Havia uma escada que levava para o outro andar e um corredor que ia dar, acho, na cozinha. Pegamos o corredor. Ela na frente e eu um pouco atrás, muito lentamente, os dois. Ela era tão bonita, assim, naquela meia-luz, cheguei a torcer que ela realmente quisesse uma experiência amorosa. Eu não me faria de rogado, não mesmo, apesar de ter dito que não trairia minha namorada. Não sei se ela merece tanto minha confiança assim. Ainda mais depois do que fiquei sabendo. Mas isso não vem ao caso.
Cely para, enfim, em frente uma porta, encosta o ouvido na tábua e põe um dedo sobre os lábios, me pedindo silêncio. Paro e tento escutar algo, nada. Ela então segue, como se não houvesse acontecido aquilo.
O corredor é longo, parece que faz tempo que estamos caminhando e nenhum sinal da cozinha ou qualquer outro cômodo.
Até que nos deparamos com uma porta fechada.
É aqui, ela diz.
Há um barulho muito grande de vozes vindo daquele quarto, ou sei lá o que seja aquilo.
Seu criatório é aí?, pergunto, espantado. E todo esse povo lá dentro, estão fazendo o quê?
Não tem ninguém lá dentro, ela diz, me deixando mais desorientado ainda. Aí só tem minhas criaturas, minhas belas criaturas.
Essa é a hora de fugir, mas a curiosidade é mais forte do que o medo, e eu fico, e espero ela abrir a porta muito devagar, numa espécie de suspense cinematográfico.
A casa pertencia a uma família proeminente do lugar. Uma das mais ricas e bem relacionadas na sociedade daqui. Numa bela noite, eles, o casal dono da casa, ofereceram um jantar especial, em comemoração ao aniversário de seu casamento. Uma das empregadas, que sofria de uma grave doença mental, envenenou a comida e todos os convidados morreram. Mas essa história eu só soube depois daquela estranha visita.
Cely então abriu a porta e disse, triunfalmente, eis meu belíssimo criatório. Eu entrei e uma luz muito forte me deixou quase cego, mas eu via vultos como que dançando e ouvia vozes e gargalhadas, acontecia uma festa ali, mas, de forma alguma, qualquer um daqueles entes era uma pessoa viva.