Esporádica companhia
Os vidros da janela embaçados de vapor encobrem a imagem da rua lá fora, faz frio e choveu a noite toda. Desde a madrugada o barulho da chuva vem decorando o semblante desta sexta feira nesta meia estação conhecida por outono. O asfalto molhado faz ecoar o som dos pneus plagiando o barulho do mar, um pequeno rastro de lembrança, quando as ondas quebram, chuva fina e a praia deserta. Tempos atrás nessas noites, costumava descer a avenida no início da madrugada até o centrinho comercial, caminhadas solitárias são combustível para a memória e imaginação. Em São Paulo nas noites de frio e garoa, as ruas por vezes estão vazias de gente, apenas os automóveis passam monotonamente e se enquadram na paisagem. Em meio ao caminho casas antigas intercaladas por prédios novos com suas linhas retas e racionais são uma contenda entre o presente e o passado. Sempre tive uma preferência indisfarçável pelas construções antigas com suas paredes, portas e janelas velhas repletas de contos e histórias. No portão de uma dessas casas velhas, vez em quando, uma senhora costuma desejar boa noite. A casa branca de muro cinza com balaústres de concreto e portão com grades de ferro tinha um pequeno jardim com pé de romã, rosas e margaridas. A varanda com uma pequena mureta e as portas e janelas de madeira, estilo barroco, não deixam dúvida quanto ao tempo transcorrido. Aquela velha senhora, um tanto quanto rechonchuda, de rosto branco avermelhado, rugas pronunciadas, e lenço na cabeça, compunha um cenário equilibrado com a velha casa. Certamente pela aparência haveria de ter vindo da Áustria ou Alemanha, possivelmente chegado por aqui no tempo da segunda guerra mundial. Invariavelmente, naquelas noites frias e molhadas ela estava no portão, sempre oferecia uma boa noite e profetizava indagando: - Está indo à padaria? Como quem estivesse apenas buscando atenuar a solidão. Jamais procurei saber, mas sempre imaginei que a velha senhora fosse solitária naquela casa. Sempre tive uma inquietante vontade de parar e prosear, mas nunca o fiz. Algum tempo passou e seguindo a tendência vista pelos bairros antigos da cidade, onde as velhas casas são trocadas na paisagem por prédios novos, a presença de caminhões, retroescavadeira e operários na frente da casa anunciava a sua demolição. Por impulso e quase sem pensar fui até o local, queria saber sobre a moradora, última chance de saber um pouco sobre a esporádica companhia de início de madrugada. Os trabalhadores que já iniciavam a remoção das janelas não souberam informar sobre a senhora e apenas confirmaram que em breve ali haveria mais uma torre de apartamentos. Então procurei nas casas próximas igualmente antigas, encontrei um senhor que, para meu espanto, disse que aquela casa em demolição estava sem morador há décadas, e que uma senhora de origem alemã morrera ali em meados dos anos sessenta, há quarenta anos. O frio na barriga se espalhou para a coluna, as pernas tremeram e os olhos arregalaram. O tempo correu e hoje no local há mais um prédio a verticalizar a cidade.
Gladyston Costa