- Lembrança -
O aroma de café mistura-se ao perfume das flores bem cuidadas que se espalham pelo jardim na entrada da casa. O homem velho, com o peso de todos os anos sobre as costas, caminha devagar. Nas mãos, leva uma antiga boneca de louça.
Da janela da sala, a menina de óculos de lentes grossas o observa sorrindo. Está à sua espera e sem qualquer razão sabe que naquela manhã ele está ali para, enfim, cumprir a promessa que lhe fora feita e que ele tentara negar.
Ele tira o chapéu de palha já encardido pelo uso e o pendura no mancebo ao lado da porta da cozinha. Beija sua filha que, ao reconhecer a boneca em suas mãos, acena com a cabeça encorajando-o a seguir em frente.
(...)
O velho fechou as janelas. Sentia frio apesar de ser uma bela noite de novembro e a casa mergulhou no silêncio como em todas as noites desde que ela havia partido. Não ligou o rádio, apenas sentou-se em sua poltrona para esperar o tempo passar. O sono veio aos poucos e ele dormiu embalado pela lembrança da saudade.
Um som pesado o despertou, já era madrugada e havia apenas escuridão à sua volta. Os óculos pendiam caídos sobre seu peito e era impossível enxergar cousa alguma. Uma angústia sufocante apoderou-se dele, o coração disparou dificultaando a respiração, na boca a saliva seca havia se tornado uma pasta rançosa.
Ele tentou se acalmar, mas estava tomado pela certeza de que havia algo errado, então, colocou os óculos, levantou-se com dificuldade desafiando as dores nas suas costas, caminhou até o interruptor e acendeu a luz.
Correu a vista pelo quarto observando tudo com atenção: a colcha de crochê sobre o colchão de molas, a Virgem no criado-mudo, o terço de contas escuras preso ao espaldar da cama.
Deteve-se em cada um dos detalhes por alguns segundos certificando-se de que tudo estava do jeito que ela queria, porém, pareceu-lhe impossível reconhecer o cômodo iluminado pela luz pálida e aquilo o apavorou.
Então seu olhar foi atraído para cima e ele se deu conta de que ela não estava lá. Um tremor frio sacudiu-lhe o corpo. Com passos lentos caminhou até o outro lado da cama e lá estava ela, caída no chão, com os olhos vítreos voltados para cima, olhando em sua direção, como se tivesse sido jogada ali por alguma força estranha.
— Como foi parar aí? — Perguntou-se sem poder compreender o que havia acontecido.
Com o lenço branco, enxugou o suor que brotava em sua testa. Sem coragem de tomá-la nas mãos, apenas a encarou por minutos que se congelaram no tempo enquanto a saudade o consumia. Então se deu conta daquela forte presença e com a alma dolorida, soube que ela estava alli e o que desejava.
Ele moveu a cabeça negando: abrir mão de qualquer detalhe seria aceitar que ela se fora e isso era quase insuportável.
Lágrimas insubmissas escorreram pelo rosto enrugado e após algum tempo imerso naquela presença que havia se expandido por todo o cômodo, como um facho de luz num quarto escuro, ele não pôde mais ignorar o que ela lhe sussurrava.
(...)
— Vó, posso segurar sua boneca? — pergunta a menina de óculos de lentes grossas e pernas tortas.
— Só se for com cuidado. Senta na cama que eu deixo você segurar no colo.
— Tá bom! — ela concorda acomodando-se rapidamente, ansiosa para ter aquele tesouro nas mãos.
A mulher de cabelos brancos retira a boneca de cima do guarda-roupas com cuidado e a coloca com solenidade no colo da menina que a recebe com o mesmo cuidado com que receberia um bebê.
— Vó, quando você morrer posso ficar com ela? — ela pergunta com sua inocência de criança enquanto alisa os cabelos loiros encaracolados com esmero.
A mulher olha para ela com olhos tristes e cansados. Por alguma razão, sabe que lhe resta pouco tempo e sente saudade de tudo aquilo que não verá acontecer, mas depois de alguns instantes, sorri e diz que sim.
— Promete vó?
— Prometo.
(...)
Vencido, o homem suspira e olha mais uma vez para a boneca em suas mãos. A menina corre em sua direção e para à sua frente esperando. Quando ele lhe entrega a boneca, a ausência lhe machuca. Então ele reconhece nos lábios da neta o mesmo sorriso que acompanhou aquela menina que — ao se tornar sua esposa — trouxera consigo para sua nova vida, entre seus poucos pertences, aquela boneca de louça.
(...)
Obrigada Rocheteau, por me ajudar a encontrar o caminho...