Don Giovanni
Tradução minha do conto de E. T. A. Hoffmann
O som de uma campainha e um grito sonoro: “Começa o espetáculo!”, acordaram-me do doce sono no qual estava imerso. Os contrabaixos zumbiam… uma pancada no tímpano… sons de trompetes… um lá límpido sustentado pelo oboé… os violinos se metem de acordo: eu esfrego os olhos. Terei eu caído presa de algum truque diabólico?…. estarei bêbado? Não, estou no quarto do hotel, onde, ontem à noite, hospedei-me morto de cansaço. Sobre o meu nariz pende o cordão do sino; puxo-o violentamente, vem um camareiro.
“Mas, pelo amor de Deus, o que é esta música confusa que fazem aqui do lado?Há então um concerto na casa?”.
“Vossa Excelência, -- no dia anterior, na mesa comum, eu tinha bebido champanhe -- Vossa Excelência talvez ainda não saiba que este hotel fica ao lado do teatro? Esta porta atapetada dá para um pequeno corredor que chega diretamente ao número 23, que é o camarote dos forasteiros”.
“Como?… Teatro?… Camarote dos forasteiros?…”
“Sim, o pequeno camarote dos forasteiros, capaz de comportar duas ou três pessoas no máximo… reservado a gente de qualidade, todo atapetado de verde, com um parapeito com cancela, muito vizinho ao palco. Se interessa a Vossa Excelência… Hoje se representa do Don Giovanni do célebre maestro Mozart de Viena. O preço do ingresso, um táler e oito soldos, o colocamos na conta”.
Ao dizer estas últimas palavras, abria já a porta, porque eu, ouvindo começar o Don Giovanni havia-me precipitado no corredor. A sala era bastante ampla, para uma cidade de média importância; decorada com gosto e brilhantemente iluminada. Os camarotes e a platéia cheios de espectadores. Os primeiros acordes da ouverture convenceram-me que uma egrégia orquestra estava para proporcionar-me a mais deliciosa fruição da obra-prima, caso os cantores tivessem um pouco de valor.
No andante, os frêmitos do terrível regno del pianto infernal se apossaram de mim; pressentimentos de horror encheram-me a alma. A alegra fanfarra que começou no sétimo compasso ressoou em mim como um júbilo sacrílego; vi numa noite profunda demônios de fogo alongarem as garras flamejantes na direção da vida de homens felizes que dançavam alegremente à beira do abismo sem fundo. A luta da natureza humana contra as potências terríveis e ocultas que a circundam, observando sua perda, apresentou-se claramente aos olhos do meu espírito.
Finalmente, a tempestade se acalma; rapidamente abrem-se as cortinas. Tremendo de frio e grosseiro, Leporello avança na noite escura, diante do balcão: “Notte e giorno faticar…” . É em italiano? Em italiano, aqui, em solo alemão? Ah, che piacere! Ouvirei então todos os recitativos e toda a ópera, que o maestro concebeu e sentiu em seu próprio espírito!
Eis que Don Giovanni precipita-se no palco; seguido por Dona Ana, que segura o culpado pelo manto. Que aspecto tem ela! Poderia ser mais esbelta, mas majestosa ao caminhar, mas que rosto! Certos olhos, onde o amor, a cólera, o ódio, o desespero, arrancam, como de uma fornalha luminosa, uma torrente radiante de faíscas e relâmpagos símiles a um fogo grego, que faz queimar inestinguivelmente o mais profundo do Ser. As tranças soltas da seu cabelo lhe caem em cachos flutuantes sobre a nuca. A veste branca noturna traí encantos que não se deixam nunca ver sem perigo. O seu coração, fraquejante diante do terrível delito, palpita com violência… E eis aquela voz! “Non sperar se non m’uccidi”. Através da tempestade dos instrumentos, brilham como raios de fogo os sonos, fundidos num metal etéreo.
Em vão Don Giovanni tenta libertar-se. Mas ele quer realmente? Porque não afasta com um golpe vigoroso aquela mulher e foge? O seu delito lhe tirou as forças, ou é o confronto entre o ódio e o amor em seu ser que lhe tira a coragem e o poder? O velho pai pagou com a vida a loucura que cometeu de desafiar, nas trevas, esse robusto adversário; Don Giovanni e Leporello avançam em direção à ribalta, falando em recitativo. Don Giovanni joga o manto e aparece então magnificamente vestido de veludo vermelho bordado de prata. É de uma estatura nobre e majestosa; sua face tem uma beleza viril: o nariz bem desenhado, dois olhos penetrantes, lábios delicados. Os movimentos singulares dos músculos frontais sobre as sobrancelhas dão à sua fisionomia, por um átimo, algo de mefistofélico, que, sem alterar a beleza de seus contornos, faz passar pelo público um calafrio involuntário. Dir-se-ia que ele pode exercitar a magia de uma cascavel; as mulheres sobre as quais ele deixou cair seu olhar, não podem mais afastar-se dele, enredadas por seu fascínio fatal, e correm à autoimolação.
Alto e magro, em seu traje com listras brancas e vermelhas, com um pequeno manto vermelho e um chapéu branco com plumas vermelhas, Leporello saltita em torno ele. Nos traços de sua face passa uma expressão mista de bonomia, de malícia, de concupiscência e de irônico descaramento; suas sobrancelhas negras contrastam bizarramente com os cabelos grisalhos da cabeça e da barba. Vê-se que esse velho malandro merece ser o servo e o cúmplice de Don Giovanni.
Conseguem fugir, escalando o muro. Surgem algumas tochas… Donna Anna e Don Ottavio aparecem: este último é um homenzinho afetado, magro e escovado, de apenas vinte e um anos. Como noivo de Anna, e para poder ser chamado assim prontamente, é certo que já estivesse na casa; ao primeiro rumor, que certamente entendeu, poderia ter corrido para salvar o pai e a donzela; ,as ele precisa primeiro fazer a própria toilette, e depois, de resto, não gostava muito de aventurar-se à noite ao aberto. “Ma qual mai s’offre, o Dei, spettacolo funesto agli occhi miei!”. Nos acentos terríveis e desoladores do recitativo e do dueto há algo mais que o desespero por um tão cruel delito. Não é somente o atentado de Don Giovanni — que para Anna não fora senão uma ameaça, mas que causou a morte de seu pai — não é aquele atentado que sozinho pode extrair tais tons de um peito angustiado; mas uma luta fatal, uma luta mortal no mais profundo da alma.
Eis que a magra e alta Donna Elvira, que conserva traços visíveis de uma grande beleza que murchara, lança inventivas contra o traidor, contra Don Giovanni: “Tu nido d’inganni”; e eis que o maligno Leporello observa judiciosamente: “Parla come un libro stampato”; e neste momento eu creio notar alguém do meu lado ou atrás de mim. Poderia dar-se que alguém tivesse aberto a porta do camarote e tivesse entrado ali. Para mim foi um golpe de punhal no coração. Estava tão feliz por estar sozinho, para ouvir, sem ser aborrecido por ninguém — e com todas as fibras de minha sensibilidades símiles a tentáculos — aquela obra prima tão perfeitamente executada, e para impregnar dela meu ser! Uma só palavra tosca ou vulgar teria podido arrancar-me dolorosamente àquele delicioso momento de entusiasmo poético e musical!
Resolvi não prestar qualquer atenção ao meu vizinho e, totalmente absorto no espetáculo, evitava trocar com ele qual mínima palavra ou olhar. Apoiando a cabeça sobre a mão, e voltando as costas àquele vizinho, continuo a olhar o para o palco. A seqüência da representação é conforme ao seu excelente início. A pequena, atraente e apaixonada Zerlina consola com incantáveis acentos e melodias àquele pobre e ingênuo Masetto. Don Giovanni exprime livremente, na selvagem ária Fin ch’an del vino, o próprio íntimo ser, aquele seu ser desolado, assim como exprime desprezo pelos miseráveis mortais que o circundam, e que existem apenas para intrometerem-se nas suas insípidas aventuras, a fim de arruiná-las. Neste ponto franze o sobrolho mais que antes. Aparecem as máscaras: seu trio é uma oração que se eleva ao céu em meio a raios fulgentes de pureza. Então a tela de fundo se abre para um lugar onde a alegria conduz a vida; ouve-se um um tim-tim de taças; camponeses e máscaras de todos os tipos, atraídos à vesta de Don Giovanni, turbinam o alegre tumulto. E eis os três parentes que vêm realizar sua vingança. Tudo se faz mais solene, até que a dança se inicia. Zerlina é salva, e em um final de fulgurante potência Don Giovanni avança destemido, com a espada em punho, contra os seus inimigos. Faz saltar o florete de aço que o noivo impunha, e abre para si uma caminho através da plebe ignara, como o resoluto Orlando faz com o exército do tirano Cimosco, de maneira que todos giram confusamente da maneira mais cômica…
Já mais de uma vez eu parecia ter ouvido, muito perto de mim, um hálito leve e quente, e ouvir o roçar de uma roupa de seda: isso me vazia de fato supor a presença de uma mulher, mas, completamente imerso no universo poético que a ópera me tinha revelado, não prestava atenção. Agora que as cortinas se tinham fechado, olhei para o lado de minha vizinha… Não, não existem palavras capazes de exprimir o meu estupor: Donna Anna, vestida como eu a tinha visto em cena, estava em pé, atrás de mim, e me encarava com o penetrante aspecto de seus olhos ardentes… Também eu olhei-a fixamente, sem poder falar; a sua boca, ao que me pareceu, encrespou-se em um leve sorriso de ironia, no qual acreditei ver refletida a patética figura que eu fazia. Dava-me conta da necessidade de falar, mas, no entanto, não podia mover a língua, paralisada do pelo estupor e, devo dizê-lo, por um espécie de espanto.
Enfim, enfim, quase involuntariamente, romperam-me a barreira dos dentes estas palavras: “como é possível que vós estejais aqui?”. Ao que ela respondeu subitamente, no mais puro Toscano, que, se eu não entendesse e não falasse italiano, ela deveria privar-se de conversar comigo, já que não sabia outras línguas. Essas palavras suaves eram como um canto. Enquanto falava, a expressão de seus olhos azuis escuros se fazia mais intensa, e cada raio que saia daqueles olhos versava em meu coração uma chama ardente, que me fazia pulsar mais forte as artérias em todas as fibras.
Era, sem dúvida Donna Anna, não pensei nem ao menos em perguntar-me como pudesse acontecer que ela estivesse ao mesmo tempo no palco e em meu camarote. Como um sonho feliz agrega as coisas mais estranhas, e como uma pia fé compreende aquilo que está para além dos sentidos e o reconecta, sem dificuldade, àquilo que chamamos os fenômenos naturais da vida, assim, eu mesmo, pela proximidade desta maravilhosa mulher, caí em uma espécie de sonambulismo, mediante o qual reconheci as secretas relações pelas quais eu estava ligado a ela; relações tão íntimas que, quando ela estava no palco, podia também estar ao mesmo tempo ao meu lado.
Como gostaria, meu caro Teodoro, de repetir-te palavra por palavra o colóquio que começou então entre a senhora e eu! Mas, ao tentar traduzir em alemão aquilo que ela dizia, percebo que cada palavra é opaca e desajeitada, e cada frase inábil para exprimir aquilo que, em toscano, era tão leve e gracioso.
Enquanto ela falava do Don Giovanni e do próprio papel, eu acreditava ver abrir-se para mim, pela primeira vez, as profundezas da obra-prima, e de podê-la claramente penetrar, e reconhecer distintamente as aparições fantasmagóricas de um mundo que me era novo. Ela me disse que toda a sua vida era música, e que frequentemente, ela acreditava compreender mil coisas escondidas misteriosamente no ser; coisas que nenhuma palavra teria podido exprimir. “Sim, agora o compreendo muito bem — continuou com os olhos ardentes e alçando a voz — mas tudo continua morto e frio ao meu redor, e enquanto se aplaude um difícil gorgheggio, uma variação bem executada, mãos de gelo pousam sobre o meu coração de fogo… Mas tu… tu me compreendes, porque sei que também para ti está aberto o maravilhoso e romântico reino onde habitam os encantos celestes dos sons”.
“Como? Ó mulher graciosa e admirável… Tu… tu me conheces?…”
“Não nasceu então de tua alma o mágico delírio do amor no desejo eterno, naquela parte da… da tua última ópera?… Eu te compreendi: o teu espírito se me revelou no canto… Sim — e aqui pronunciou o meu nome — sim, és tu aquilo que eu cantei, como sou eu as tuas melodias”.
Soou a campainha avisando que o espetáculo estava para começar: uma fugaz palidez descoloriu o rosto sem maquiagem de Donna Anna, que colocou vivamente a mão sobre o peito, como se tivesse sentido uma dor súbita; e enquanto dizia na flor dos lábios: “Desgraçada Anna, eis os teus mais terríveis momentos…”, desapareceu do camarote.
O primeiro ato me havia extasiado, mas depois desse maravilhoso evento, a música começou a agir em mim de um modo totalmente diferente, um modo estranho. Era como se esperanças que carregava por longo tempo no seio dos mais belos sonhos, se pusessem a atuar verdadeiramente na vida. Era como se as mais secretas intuições de minha alma tivessem incarnado nos sons e se resolvessem infalivelmente, por um fenômeno singular, nos mais admiráveis conhecimentos. Durante a cena de Donna Anna senti o calafrio de uma ebriedade voluptuosa, sob um hálito doce e quente que soprava sobre mim; meus olhos se fecharam involuntariamente e um ardente beijo pareceu queimar-me os lábios; mas aquele beijo era um som que se expandia longamente como por um desejo inflamado in eterno.
O final se tinha iniciado com uma corajosa alegria: Già la mensa è preparata! Don Giovanni estava sentado entre duas raparigas que acariciava e fazia saltar uma após a outra as tampas das garrafas, para dar aos espíritos quentes presos no cristal uma livre expansão. Era um cômodo estreito, com uma ampla janela gótica ao fundo, pela qual se via a noite que reinava do lado de fora. Enquanto Elvira recordava ao infiel todos os seus juramentos, via-se brilhar na janela frequentes lampejos, e se ouvia o surdo rugido do próximo furacão. Enfim, a porta é martelada por formidáveis golpes. Elvira e as duas jovens fogem e, entre assustadores acordes vindos do mundo dos espíritos subterrâneos, entra o abominável colosso de mármore, perto de quem Don Giovanni parece um pigmeu. O solo treme sob os fragorosos passos do gigante.
No rumor da tempestade, entre o fulgor dos raios e uivos demoníacos, Don Giovanni grita o seu terrível “No!”. É chegada a hora final. A estátua desaparece, um lento vapor inunda a sala e dele surgem terríveis fantasmas. Don Giovanni se contorce diante dos tormentos do Inferno, e aparece vez por outra entre os demônios. Uma explosão, símile à queda de mil raios: Don Giovanni e os demônios desaparecem, não se sabe como. Leporello jaz desmaiado em um canto da sala…
Que bem-estar nos traz então rever os outros personagens que procuram em vão Don Giovanni, subtraído à vingança terrena pelas potências de além-túmulo! Só então parece possível fugir ao terrível círculo dos espíritos infernais. Donna Anna tinha uma expressão totalmente diversa: uma palidez de morte lhe cobria o rosto, o olho estava apagado, a voz trêmula e despedaçada; mas, por isso mesmo, dava um efeito que rasgava a alma em seu dueto com o doce noivo — o qual, agora que o céu lhe aliviou afortunadamente do perigoso dever da vingança, quer súbito celebrar o casamento.
O coro de fuga tinha magnificamente fechado o espetáculo e eu retornei rapidamente para o meu quarto, tomado da maior exaltação que já prove. O camareiro me chamou para o jantar e segui-o maquinalmente.
A companhia reunida em torno à mesa posta era elegante, e o assunto da conversação era o Don Giovanni representado há pouco. Em geral, exaltava-se os italianos e a intensidade de sua execução; mas uma ou outra observação davam a entender que ninguém ali tinha a mais mínima idéia do profundo significado dessa grande obra entre as óperas. Don Ottavio tinha agradado muito, Donna Anna, no dizer de alguém, tinha sido demasiadamente apaixonada. Precisava, dizia esse alguém, saber dominar-se, quando estamos em cena, e evitar tudo aquilo que pode ser cansativo. A episódio do assalto o deixara verdadeiramente consternado. Fazendo tal observação, o crítico tirou da tabaqueira uma pitada de tabaco e olhou, com um indescritível ar de inteligência tola, o vizinho, o qual, por sua vez, declarou que a italiana era, de resto, uma belíssima mulher, mas demasiado descuidada com suas vestes; precisamente na mencionada cena uma mecha de seus cabelos soltara-se e lançara uma sombra sobre o escorço de seu rosto! Um outro começou a entonar em voz baixa a ária Fin ch’han del vino; e uma senhora declarou que o ator com o qual estivera mais insatisfeita tinha sido aquele que fizera o papel de Don Giovanni; aquele italiano era exageradamente tétrico, demasiado grave, e não tinha dado bastante relevo ao aspecto frívolo e aéreo do personagem. O final foi elogiadíssimo. Cansado daquele falatório, apressei-me a retornar ao meu quarto.
(No camarote dos forasteiros número 23)
Senti-me então aprisionado e inquieto na pesada atmosfera do quarto! À meia-noite, pareceu-me ouvir a tua voz, meu caro Teodoro. Tu pronunciavas distintamente o meu nome e um sibilar parecia vir da portinhola atapetada. “O que me impede de tornar outra vez ao lugar onde se deu minha maravilhosa aventura? Talvez poderei ali rever aquela que ocupa todo o meu ser. Como é fácil levar até ali a escrivaninha, duas velas e material para escrever!”
O camareiro me procura trazendo o ponche que pedi; encontra o quarto vazio, a portinhola aberta: encontra-me no camarote e me olha de um modo interrogativo. Ao meu sinal, colocou a bebida sobre a mesa e vai embora. não sem se ter voltado ainda uma vez em minha direção, tentado a interrogar-me. Voltando-lhe as costas, eu me apoio no parapeito do camarote e olho para a sala deserta, cuja arquitetura, magicamente iluminada por minhas duas velas, é ressaltada, estranha e fantasmagórica, com reflexos maravilhosos. A corrente de ar que passa pela sala agita a cortina: o que aconteceria se ela subisse? Se Donna Anna aparecesse, angustiada por fantasmas horrendos? “Donna Anna!”, gritei sem querer… o grito se perde no espaço deserto, mas os espíritos dos instrumentos da orquestre despertam: um som maravilhoso sobre vibrando; e é como se demorasse nele o murmúrio do nome amado. Não posso vencer um frêmito secreto, mas o tremer dos nervos me faz bem…
Dominei minha emoção, e estou pronto, meu caro Teodoro, a dar-te ao menos uma idéia de como me pareceu, então pela primeira vez, colher exatamente, na profundidade de seu caráter, a magnífica ópera do divino compositor. Somente um poeta pode compreender um poeta; somente uma sensibilidade romântica pode compreender o romântico; só o espírito poeticamente exaltado, e que recebeu a iniciação no tempo, pode compreender aquilo que o iniciado exprime no próprio entusiasmo.
Se se considerasse o libretto (Don Giovanni), sem buscar nele um significado profundo, ou seja, se se levasse em conta apenas os fatos em si mesmos, não se poderia compreender como Mozart pudesse ter concebido e compor sobre aquele assunto uma música assim. Um fanfarrão, que ama desbragadamente o vinho e as mulheres, que temerariamente convida à sua alegre mesa a estátua de pedra que representa o velho pai que assassinara com a espada para salvar a própria vida, verdadeiramente não é aí nada de muito poético; e, digamos francamente, um homem símile não merece de fato que as potências do além-túmulo o vejam como uma aquisição rara para o museu infernal, nem que a estátua de pedra, transfigurada pelo espírito, consinta em descer do cavalo para exortar à penitência o pecador antes da última hora; nem enfim que o diabo mande os seus melhores subalternos para executar, do modo mais assombroso, o transporte do pecador ao seu reino…
Tu mo podes crer, Teodoro; a natureza tinha dotado Don Giovanni, quase como se este fosse o mais caro de seus filhos, de tudo aquilo que eleva o homem -- num íntimo parentesco com o divino  -- acima dos comuns mortais, acima daqueles produtos fabricados em massa, que, quando saem da oficina, são como zeros à frente dos quais é necessário meter uma cifra para que tenham algum valor; a natureza o tinha dotado daquilo que destina ao triunfo e ao domínio. Um corpo robusto e majestoso; uma personalidade da qual irradia a centelha que cai no peito para iluminar os pressentimentos da vida suprema; uma alma profunda, uma inteligência alerta… Mas uma terrível conseqüência do pecado original é que o Maligno conservou o poder de sondar o ser humano, de insinuar nele pérfidas insídias, no esforço que ele faz para elevar-se ao ideal, e com o qual ele exprime a própria natureza divina. É esse conflito entre as potências divinas e aquela demoníaca que cria a noção de vida terrestre, como é a vitória, uma vez conseguida, a criar a noção da vida ultraterrena.
Don Giovanni fora incendiado pelas seduções da vida que fatalmente operavam sobre seu organismo físico e moral; e uma luxúria eternamente acesa, que fazia arder o sangue em suas veias, que o leva a roubar, avidamente e sem trégua, todas as formas do mundo terrestre, esperando em vão poder saciar-se.
Não há nada na terra que como o amor exalte o homem mais intimamente em seu ser; é o amor que, operando assim ocultamente e fortemente, destrói e idealiza os elementos mais profundos da existência; por que então maravilhar-se de que Don Giovanni tenha esperado aplacar no amor o desejo que dilacerava seu peito, e que o Demônio o tenha, por essa via, feito cair em sua teia? Foi a astúcia do inimigo primordial a insinuar na alma de Don Giovanni o pensamento de que, já nesta terra, com o amor, com o possuir a mulher, poderia atualizar-se aquilo que descansa em nosso peito apenas como uma promessa celeste, precisamente aquele desejo infinito que nos coloca em imediata relação com o mundo ultraterreno. Correndo sem trégua de uma bela mulher para outra ainda mais bela; gozando dos seus encantos com a mais ardente paixão, até a saciedade, até a ebriedade destruidora; sempre acreditando ter-se enganado na escolha, sempre esperando encontrar o ideal da completa anulação, Don Giovanni acabaria forçosamente por perceber que toda a vida terrena era rasa e sem cor. E desprezando o ser humano em geral, se insurge contra o ser do qual, enquanto via nele o bem supremo da vida, tinha se desiludido tão amargamente.
Então a posse das mulheres não foi mais para ele a satisfação dos próprios sentidos, mas a ironia sacrílega para com a natureza e o criador. Duas coisas: o soberano desprezo das opiniões comuns às quais se sentia superior e o amargo escárnio pelos homens que podiam esperar ainda, do amor tranqüilo e da união burguesa, o realizar-se das altas aspirações que a natureza, por um desígnio hostil, colocou em nosso peito; estas duas coisas o levaram a rebelar-se e a levantar-se contra o ser desconhecido, senhor do destino, no qual ele viu um monstro maligno que cruelmente deleita-se com as miseráveis criaturas de seu capricho cruel. Cada vez que leva à perdição uma jovem noiva, cada vez que com um golpe para sempre funesto destrói a felicidade de um amante , para Don Giovanni, é um magnífico triunfo que cada vez mais o eleva acima do credor… E, realmente, ele quer sempre sair mais da vida; mas apenas para precipitar-se no Inferno. A sedução de Anna, com as conseqüências que se seguem, é o ponto mais alto ao qual se alça. Donna Anna, como os maiores dons da natureza, é o seu oposto. Como Don Giovanni, no princípio, era um homem de força e beleza admiráveis, assim ela é uma mulher divina, mas em cuja alma o Demônio não pôde tocar. Todos os artifícios infernais não conseguiram senão perdê-la do ponto de vista terreno. Como foi Satanás a causar aquela perdição, assim, por um decreto do céu, é o Inferno que não deve demorar-se na realização da vingança. Don Giovanni convida sarcasticamente ao seu alegre festim a efígie do homem que matou, e o espírito transfigurado, conhecendo então pela primeira vez a alma daquele homem e temendo pelo seu futuro, não deixa de exortá-lo à penitência, com uma assustadora aparição. Mas a sua alma é tão corrupta, tão lacerada, que nem mesmo a beatitude do céu pode lançar um raio de esperança em seu coração e voltá-lo para uma existência melhor.
Certamente estarás surpreso, meu caro Teodoro, por eu ter falado da sedução de Anna; e -- na medida em que me seja possível fazê-lo nesta hora em que os meus pensamentos, saindo das profundezas da alma, são mais rápidos que as palavras -- e te direi brevemente como na música, sem qualquer recurso ao texto, se me revelou a relação entre as duas naturezas (Don Giovanni e Donna Anna) empenhadas em lutar.
Já te disse que Donna Anna fazia ao mesmo tempo o duplo e contraste com Don Giovanni. Não estava acaso Donna Anna destinada pelo céu a revelar a Don Giovanni, no amor que (por artifício de Satanás) o fez perder-se, a natureza divina que lhe era imanente e a dilacerá-lo de tal modo até o desespero de seus vãos esforços? E ele compreendeu demasiado tarde, no momento do mais violento frenesi sacrílego, e assim não pode conceber senão o desejo diabólico de perdê-la.
Ela não foi salva. Quando ele fugiu a ação já tinha sido feita. O fogo de uma sensualidade sobre-humana, o ardor do próprio Inferno tinha penetrado todo o ser de Donna Anna, tornando vã qualquer resistência. Ele apenas, Don Giovanni apenas, era capaz de acender nela o delírio de volúpia com o qual ela o enlaçou, e que devastou o seu ser com o furor destrutivo e onipotente dos espíritos infernais. Quando então, consumado o ato, ele quis fugir, Donna Anna foi tomada, como por um horrível monstro que expelisse o veneno da morte, da idéia da própria perdição, que a atormenta de maneira atroz. A morte do pai pela mão de Don Giovanni, sua relação com o frio, pusilânime e medíocre Don Ottavio, que ela outrora acreditara amar, e também o ardor da paixão que a devora no mais profundo da alma — aquele amor que se acendeu no instante do supremo gozo e que agora queima com o ardor de um ódio que não pensa senão em destruir, tudo isso dilacera-lha o peito. Ela sente que só a aniquilação de Don Giovanni pode dar paz à sua alma angustiada por um martírio moral; mas aquela paz é ao mesmo tempo o seu próprio aniquilamento terreno. Por isso, pressiona incansavelmente seu glacial noivo a vingá-la, segue ela mesma o traidor, e somente quando as potências do subterrâneo o precipitam no inferno, consegue ficar mais calma; mas não pode mais ceder-se ao noivo que espera um rápido matrimônio: “Lascia, o caro, un anno ancora allo sfogo del mio cor!”. Ela não viverá um ano. Don Ottavio não apertará nunca ao peito aquela que foi salva pela própria alma pia de ser e de continuar para sempre a amante consagrada a Satanás.
Ah, com que força senti no mais fundo de minha alma todas essas coisas nos acordes desoladores do primeiro recitativo e na história da surpresa noturna! Também a cena de Donna Anna no segundo ato, Crudele, que, considerada superficialmente, não parece referir-se senão a Don Ottavio, exprime com secretas harmonias e com os acordes mais admiráveis esse íntimo estado de alma que consuma toda felicidade terrena. Que quer dizer, ainda que apegando-se apenas às palavras, aquela estranha frase, deixada talvez inconscientemente pelo poeta,
Forse un giorno il cielo ancora
sentirà pietà di me?
Soam as duas da manhã… um quente sopro elétrico desliza sobre mim… sinto a ligeira presença do delicado perfume italiano que ontem me tinha feito primeiramente descobrir minha vizinha. Um sentimento de felicidade se apossa de mim, somente poderei exprimi-lo com sons harmoniosos. O vento sopra mais forte na sala… As cordas do piano vibram… Deus! Como de uma grande distância, trazida sobre as asas de uma orquestra aérea, parece-me ouvir a voz de Anna: “Non mi dir bell’idol mio!”. Abre-te então, distante e ignoto reino das almas, paraíso pleno de magnificência, onde uma celeste e inefável dor, como uma inexprimível alegria, cumpre até a última todas as promessas que foram feitas sobre a terra à alma imersa no sonho! Deixa que eu adentre o círculo de tuas mágicas visões. Possa o sonho que tu escolheste, tanto para suscitar o terror como para ser um doce mensageiro aos homens da terra, possa este sonho, quando o sono prender meu corpo com amarras de chumbo, conduzir meu espírito nas etéreas regiões!
Apêndice: conversação do meio-dia à mesa
Um homem inteligente, batendo com força os dedos sobre a tampa da tabaqueira: “É então fatal que não se possa ouvir mais uma ópera bem executada! Eis ao que conduz o odioso exagero!”.
Um homem com cara de mulato: “Sim, sim, quantas vezes te disse! O papel de Donna Anna a cansava cada vez mais… Ontem estava realmente obcecada. Parece que durante todo o intermezzo estivera desmaiada; e mesmo durante a cena do segundo ato teve ataques de nervos…”.
Um homem insignificante: “Oh, digam, digam…”.
O cara de mulato: “Sim, sim, ataques de nervos, e não se conseguia fazer com que abandonasse a cena”.
Eu: “Pelo amor de Deus!… espero mesmo que estes acessos não sejam perigosos, e que em breve possamos rever a senhora…”.
O homem inteligente, pegando uma pitada de tabaco: “Será difícil, porque a senhora morreu esta noite, precisamente às duas”.