O mistério do par de muletas
Queria ter podido imaginar a história desse par de muletas. Como será que veio parar aqui? Não a imaginei nem imagino. É que, só por bobagem, queria ter visto meu nome no jornal. E seria por causa de uma história, uma crônica... Uma rápida, envolvente, apaixonante e sintética crônica sobre o par de muletas abandonado.
Pra começar, me malhariam. Não é história, sô, é Estória. Sei que há diferença, têm muita razão em fazê-la, mas... Sei lá! Não consegui me acostumar ainda. Acaba sempre história. Mas vamos ao que faria eu.
Não faria nada. Quanto muito raciocinaria um pouco e escreveria às pressas, pois o faço escondido e com papel surrupiado. Jamais ia sair uma boa história. Perdão, “estória”. O que haveria de misterioso no par de muletas? De dramático? Só um par de muletas abandonado, colocado uma peça por cima da outra, demonstrando cuidado, senso de organização. Como se houvesse uma só, se olhássemos de cima. Esse cima poderia ser do passeio, ao lado da lanchonete, da banca de revistas e do tabuleiro do vendedor de limões. O par de muletas foi abandonado ao lado do caixote que estava sozinho. Havia um vendedor de limões mais embaixo, mas ele estava já perto do seu tabuleiro. Se fosse tudo seu, para que dois caixotes?
Havia um par de muletas simetricamente ajustado e um tabuleiro de limões sem dono. Seria o caso de perguntar se o tabuleiro vinha de muletas para o serviço ou o se par de muletas deixara descansando o aleijado aquele dia. Escolham! Se eu fosse vocês, escolhia. A pior coisa do mundo é ficar num impasse. Principalmente, se há probabilidade de caixotes andarem de muletas e pares de muletas trabalharem de camelô. Prefiro a última, vou logo dizendo. Me parece mais simpática a hipótese. Além do mais, adoro ver irmãos combinando tanto. Quanto aos que me leem, não sei o que lhes agrada. E por quem vibram os sinos de sua simpatia? Uma e outra saída é boa. Não terão problemas com os órgãos políticos, civis e militares. Nem com os musicais e... Bem, mudemos a frequência.
A tal história – ou Estória – do par de muletas só poderia sair um fracasso. Quereria eu imitar o Machado de Assis, fazer uma apologia, escrever uma espécie de parábola. No entanto, escrevo tão mal e nem sei perfeitamente o que seja uma apologia ou uma parábola. Vergonha, mas não sei mesmo. Posso até aprender hoje, mas não sei agora. Ainda, agora.
Esqueçamo-la, a história. Esqueçamo-los, o par e as muletas. Olhemos para fora. Está chuvoso, não muito frio, mas muito frio para uma tarde de setembro. Está bem escuro, tanto quanto estará pelas seis horas da tarde. As janelas dos edifícios estão acesas. As janelas? Acho que as janelas. As luzes? Podem ser as luzes, se quiserem. Quero as janelas. Quero-as acesas. Os ônibus ainda não levam gente do centro, mas passam roncando em frente do andar térreo. Eu os vejo cá de cima. E daí? Daí... Daí... nada. Só vejo.
Enquanto isso, o resto dessa tarde vai passando, vou acreditando que faço alguma coisa importante. Deixem-me! É bom que me engane. Que me engane a mim mesmo. O tempo vai passar e duas coisas, só duas coisas, poderão acontecer: ou todos me leem e me aplaudem ou só leio eu e me abomino. Na primeira hipótese, bem. Na segunda, bem também. Tão bem quanto a primeira. Vou morrer pensando em ser o gênio incompreendido, desperdiçado, etc. Aquelas baboseiras. E vou ser feliz na mesma. E, de noite, noite aqui é eternidade, na eternidade da noite ou na noite da eternidade, vou ficar sorrindo e recebendo vocês. Mesmo que vocês não existam. E mesmo que os considere a todos estúpidos. Ignorantes, burros... Só eu o gênio, o ...
Ainda não Ave-Marias. Ainda não. Ainda não meu romance. Não ainda, ainda não. Não é hora, dizem-me a mim os sinos. Os sinos e os signos de vida interior. De razão. Ainda não. Enquanto penso, os inspetores de trânsito e chefes de secção vão sorrindo e esperando baterem as seis horas. As seis, e a casa cheia. Porque, às seis, está sempre cheia a casa. Estão sempre cheios os pratos. E agasalhos e poltronas e programas na televisão. E mulher e filhos. Cachaça e frio. Setembro, chuva e frio. Apitos na rua, sorrisos de ofício. E mais... E muito mais.
- A couve, sô Zé!
- Agora não. Não tem dinheiro nem vontade. A patroa tá de cama.
O bairro vive. Então viva o bairro. A couve é o símbolo. A comunicação. A couve e o balaio do couveiro. Do sô Juca. Sô Juca, o couveiro. O couveiro-mor.
E afinal de contas, como terá vindo parar aqui esse par de muletas?
(Belo Horizonte, MG, 1970)