AS MULHERES DE JESUS
I
O quadro que temos diante dos nossos olhos destaca, em primeiro plano, três homens pendurados em toscas cruzes feitas de troncos de árvore, de cerca de três metros de altura cada uma, duas delas grosseiramente aparadas e firmemente postadas no solo pedregoso de um morro, cuja geografia tem a grotesca aparência de um crânio humano. Esse detalhe, por si só, já constitui uma visão de tal forma impressionante, que nem precisaríamos invocar a utilização que lhe foi dada – praça de execução de condenados – para que se tenha uma idéia de quão macabro e lúgubre é esse local que os romanos escolheram para executar os condenados à morte. Está situado do lado de fora da muralha ocidental da cidade, cerca de cinco ou seis estádios em direção ao norte, o que, em nossas medidas de hoje, significa uma boa pernada de cerca de setecentos e tantos passos adultos por um caminho pedregoso e íngreme, de sorte que os infelizes sentenciados que para lá são levados para morrer acabam chegando ao alto do monte, tão extenuados que mal sentem as dores da cravação na cruz.
Os soldados que montam guarda na torre de vigia da porta chamada Genath – também conhecida como porta de Jafa –, por onde os condenados saem cambaleando, carregando nos ombros lanhados a barra transversal da cruz, acompanhados geralmente por um séqüito de mofadores e carpideiras, assistem ao macabro espetáculo sem sair dos seus postos. Dessa forma, se preciso for, poderão sem muito esforço prestar ajuda aos seus colegas de ofício em caso de necessidade. Esse talvez seja o motivo pelo qual somente uma pequena força armada está presente no local da execução, o que parece ser indício de pouco caso por parte das autoridades em relação a esse evento, sendo esse um tempo de ebulição política e por isso mesmo muito propenso a motins populares, o que, considerando-se o histórico de pelo menos um dos executados, não é possibilidade que se despreze.
Á primeira vista, o que ali se cumpre é mera rotina e nada parece indicar que algo extraordinário esteja se passando naquele local onde todos os dias algum celerado recebe a paga final pelo incomodo que causou à sociedade. Além disso, a facilidade de acudir os companheiros em caso de necessidade talvez seja a razão de vermos apenas dois soldados no fundo, montados em seus cavalos, armados com suas longas pilas, essas lanças próprias dos legionários de cavalaria, enquanto no chão, agachados aos pés das cruzes, cinco outros, que devem ser de infantaria, matam o tempo jogando uma espécie de jogo, que parece ser dados, cujo prêmio, ao que tudo indica, será os despojos dos executados.
É de praxe, e neste caso não se faz diferente, que os condenados entreguem seus últimos pertences a quem os executou, como paga pelo árduo trabalho que estes últimos tiveram. Essa não é tarefa fácil e nem recebe o devido reconhecimento, seja do Estado, a quem provavelmente os condenados ofenderam, seja do povo, que se viu livre dos larápios que o roubava e do agitador que o procurava desencaminhar com idéias novas e diferentes quereres, o que, por si só, já justifica o fato de eles estarem ali pendurados.
Isso quem disse foram os membros do tribunal que os condenou, já que consta dos assentos lavrados pelo escriba que redigiu as peças de acusação e o veredicto final, que dois deles eram ladrões e o outro um pregador itinerante que andou agitando o povo da cidade nos últimos dias. Essa informação é necessária para que não se pense que foi este cronista que a tais juízos chegou por sua própria conta e logo de início atraia para sua crônica o desprezo de quem tudo julga com a precipitação própria dos preconceituosos. Afinal, a opinião já formada a respeito é de assustar. Quem tem juízo tem medo e é bom que tenhamos esses irmãos siameses sempre em guarda como sensores, para impedir que a mão nos acabe trazendo a perdição que a boca já aprendeu a evitar.
Não poucas cabeças andaram rolando no cadafalso por causa de reportagens desse tipo. Muita carne também já queimou literalmente na fogueira por muito menos do que isso, e mesmo nestes dias em que a liberdade de consciência é protegida por lei, a pira da intolerância ainda conserva brasas muito vivas, razão pela qual nenhuma sabedoria demonstra quem abusa demais da língua ou das letras. Assim, a prudência aconselha que sempre se diga de onde veio a informação que está sendo divulgada, o que faremos, na medida do possível, nesta crônica, pois a conseqüência da quebra de um paradigma é peso que uma alma nunca deve carregar sozinha, especialmente quando se pode dividi-lo com alguém mais.
Dito isso, vamos dar por assentado que quem os fez marginais e agitadores, e por conseqüência, réus de morte, como restou decidido e aplicado, foram os anciãos do Conselho judaico. Isso foi fartamente noticiado por quem tudo presenciou e depois reportou aos escribas que primeiro noticiaram esses fatos. Nós estamos apenas dando crédito a essas informações e passando-as adiante da mesma forma que as recebemos. Nada aqui é novo. Apenas a visão que expomos apresenta diferentes nuances e algumas possibilidades não exploradas nas reportagens anteriormente divulgadas. O que, a esta distância no tempo e no espaço, e depois da sólida moldura que foi posta nos fatos em questão, diga-se, já constitui rematada ousadia.
Voltando ao quadro que nos inspira, digamos que a arte de quem posicionou as cruzes na crista do monte mostra que o autor é muito experiente na tarefa de executar essas sentenças. Isso se pode perceber sem muita dificuldade, pois uma vez pendurados os condenados, nenhuma delas arriou com seus pesos. E ali ficaram, e ficarão, por todo o tempo que for necessário, ainda que seja a eternidade – como parece que virá a ser –, a suportar os corpos nelas suspensos. O problema imediato, que deve estar a preocupar as autoridades do país, é que amanhã será o sétimo dia da semana, segundo o calendário judeu, e nessa, em especial, está a se comemorar a maior de suas datas festivas, o Pessach. Essa é a razão pela qual nenhum condenado poderá passar da hora véspera na cruz, pois se assim ocorrer, o Sabbat sagrado será contaminado; e de certo, Jeová, que o instituiu para que todos os filhos de Israel possam descansar dos seus labores, como Ele mesmo descansou depois de ter criado o mundo, não gostará nem um pouco dessa desobediência a um dos seus mais caros preceitos. Assim, bom é que morram logo, para que seus infames corpos sejam imediatamente arriados do madeiro e jogados nas valas comuns que os esperam.
Salvo o indigitado agitador, que foi crucificado no meio dos dois ladrões, pois deste, segundo se diz à boca pequena, um importante figurão do Conselho judaico já requisitou o corpo e destinou para ele uma bonita sepultura num jardim ali por perto. Por que mereceu tal prerrogativa, conferida apenas a pessoas de relativa importância, não é tempo de revelar, mas cuida-se que foi o próprio Pôncio Pilatos, o prefeito nomeado por Roma para governar a Judéia, a Iduméia e a Samaria, que autorizou a remoção do corpo desse condenado, assim que rendesse o espírito. E o tal figurão, que não se vê em primeiro plano nesse quadro que estamos descrevendo, por certo deve ter se postado em algum lugar afastado, para evitar ser visto – como aconselha a prudência –, e ali se conserva, esperando pelo desenlace que não tarda a acontecer. Consumado esse, virá ele com alguns serviçais para descer o corpo da cruz e prepará-lo com os óleos da unção, para depois sepultá-lo conforme manda o costume da terra.
Temos informação, embora não confirmada, que essa providência custou ao referido personagem a sua expulsão dos quadros da seita a qual pertencia, a renomada confraria dos fariseus, pois foi justamente essa Irmandade a responsável pela prisão e condenação desse homem; e como sempre acontece nesses casos, saiu ele pelo mundo a fundar uma nova Ordem, com base na doutrina inaugurada por esse condenado, de quem ele era discípulo e parente muito próximo. Suas atividades como missionário e propagador das idéias pregadas pelo condenado são ainda hoje muito lembradas em terras gaulesas e britânicas, onde, dizem, ele concentrou seu magistério depois da morte do seu líder.
Essa, porém, é outra história, da qual não nos ocuparemos nesta crônica por se tratar de uma saga muito controversa. Por ora, apenas para que não nos seja imputada a leviandade de estar a prometer pães sem ao menos mostrar que já temos a farinha, diremos que esse personagem não arriscaria nome e posição fazendo o que fez, não tivesse ele, de fato, relações de superior interesse com esse condenado. Que o tenha feito por piedade ou respeito, como se deixou entrever nas crônicas oficiais, é coisa difícil de acreditar, pois tais providências custam muito caro nessa terra e mesmo sendo ele homem de fartos cabedais, de certo a elas não se aventuraria não fossem relevantes motivos a movê-lo.
Voltando ao assunto que aqui se cuida, veremos que nas barras verticais das cruzes foram encaixadas, em mal cortadas cavilhas, as traves horizontais. Isso indica terem sido as mesmas feitas às pressas, a golpes de machado ou formão, e não se sabe por que cargas d’água, somente a que está no meio das outras duas parece ter sido cuidadosamente lavrada e aplainada por quem dessa ocupação – lidar com madeiras – tem alguma arte. A coincidência merece o devido registro, porquanto o condenado que dela pende é um carpinteiro que chegou da Galiléia recentemente e acabou sendo preso e condenado à morte pelas autoridades, acusado de atividades subversivas, asseveram uns, ou blasfêmia e ofensa capital contra as leis religiosas do país, dizem outros; o que, de qualquer modo, se considerarmos o contexto no qual as coisas aconteceram, é tudo a mesma coisa.
Seja como for, é bem provável que ambas as assertivas estejam corretas, pois é justamente no alto desta cruz, por cima da cabeça do condenado, que se vê uma tabuleta com uma inscrição, declinando o nome do infeliz e o crime pelo qual ele foi posto nela para morrer. Mandou-a fazer e pregar ali o chefe de prefeitura romano, não tanto para identificá-lo e denunciar o seu crime, mas muito mais para acicatar os anciãos do Conselho judaico, que o pressionaram e acabaram por obrigá-lo a fazer o que não queria, ou seja, condenar esse homem à morte.
Isso é certo, porquanto todos os que escreveram sobre o assunto foram unânimes em informar que ele não encontrou no condenado crime algum que merecesse tal sorte. E passou pela sua cabeça libertá-lo, depois de severo castigo, que seria aplicado somente para contentar os anciãos. E isso foi o que ele fez, esperando que á vista do corpo mutilado, sangrando por todos os poros, a fúria dos anciãos se aplacasse. Mas estes, feitos chacais sedentos de sangue, fizeram tamanho escândalo e proferiram contra ele tantas ameaças, inclusive de denunciá-lo ao Imperador, acusando-o de reconhecer outros reis além dele, que o cuidadoso funcionário, no fim, bastante contrariado, mas nem um pouco convencido, assentiu que o homem fosse crucificado.
Mas não antes de lavar as mãos e dizer aos exaltados cidadãos que exigiam a sua morte que ele estava inocente do sangue daquele homem. Pois que as coisas que ele disse em praça pública, e que tanto incomodou os anciãos do Conselho judaico, em nada ofendia a soberania de Roma.
Isso ele fez e também foi registrado. Certo que tal ato não irá livrá-lo do ódio e do vitupério que contra ele serão assacados pelas próximas gerações de seguidores desse condenado, nem o livrará dos inevitáveis horrores que por ele esperam no mundo do além túmulo. Isso é o que dizem aqueles que acreditam que tudo que fazemos de injusto neste mundo, ainda que compelidos por força maior, como no caso em questão, nos será cobrado nessa outra etapa da vida, que foi criada justamente para purgarmos os erros que cometemos nesta. Há quem diga também que essa idéia nada mais é do que uma curiosa forma de vingança que foi urdida por quem não tinha força nos braços nem poder político para cobrar de outra maneira o agravo feito a sua fé, no caso, os perseguidos seguidores desse condenado, que por mais de trezentos anos tiveram que professar seu credo na clandestinidade. Todavia, ainda que a crítica possa ser procedente, o fato é que há mesmo quem já tenha visto, com todas as tintas da sua imaginação, o constrangido praefectus romano pagando a sua pena no inferno, com centenas de diabos a atormentá-lo, na mesma medida em que ele consentiu que seus soldados fizessem com esse condenado. E para dar foros de testemunho á sua visão, o poeta que a teve transformou-a num magnífico e inspirador poema, que é hoje um dos maiores clássicos da nossa literatura.
Mas quanto ao polêmico procurador romano, justo é reconhecer-lhe essa circunstância; não foi ele quem proferiu contra o dito condenado a sentença de morte. Ele apenas a homologou, já que outra coisa não lhe seria politicamente correto fazer. Política à parte, as iniciais que o lupino prefeito mandou gravar na tabuleta que encima a cabeça do condenado dão conta que ali está cravado um homem que se disse rei dos judeus e pertencia à seita dos nazarenos. Em aramaico, latim e grego, para que a coisa ficasse bem assentada, a inscrição não deixa dúvida sobre a querela que o levou à cruz. Conta-se que ele se deu por rei e santo, o que, por si só, já é uma clara indicação dos motivos de sua condenação. Afinal é sabido que reis, no império que os romanos construíram, quando não morrem na defesa de seus títulos, terminam suas vidas na humilhação do exílio ou no horror do cadafalso. E quanto aos santos, somente ao Deus do país, por sua livre escolha, cabe consagrar.
Na terra dos judeus, política e religião tanto podem elevar um homem aos píncaros da glória quanto fazê-lo baixar aos mais íntimos círculos do inferno. Isso nos faz pensar que bastante fundamento tem a informação que levou a digna autoridade a escrever a dita tabuleta, por que, se rei for o condenado, morre ele por força de injunções políticas; se apenas santo é, morre por conta de questões religiosas, porquanto se sabe que os oráculos da vontade divina são pessoas que já nascem revestidas de especial comenda e são consagradas desde o ventre materno ao serviço do Deus do país. E este condenado, em especial, segundo dizem, arrogou-se no direito de reivindicar filiação direta com a Majestade Divina, o que fazia dele o seu herdeiro universal, em contraste e contradição com as reivindicações do Sumo Sacerdote.
Isso é coisa que os anciãos do Conselho judaico não podiam mesmo tolerar. Sabemos quão ciosos de suas prerrogativas são os senhores que vestem os paramentos sacerdotais e não queremos tirar-lhes as razões, principalmente neste caso, em que a própria lei do país já dispôs, com meridiana clareza, que somente o Sumo Sacerdote pode manter relação direta com o Deus local, não podendo essa comenda ser objeto de delegação em hipótese nenhuma. Esse é um direito milenar, que se observa desde os dias de Moisés, e ainda que os tempos sejam outros, continua sendo regra de estrita observância que deve ser mantida a qualquer custo. Afinal, há em todo ordenamento legal, ou religioso, cláusulas pétreas que não podem ser removidas, sob pena de cancelamento do próprio ordenamento; e no caso dos judeus a hierarquia sacerdotal é a coluna mestra sob a qual se apóia todo o seu edifício religioso e político.
Nada há de estranho nisso, porquanto essa é uma virtude que se observa em toda religião e reflete em qualquer legislação que se apóia nos preceitos legados por um Deus, ao invés das regras deduzidas em razão do convívio social. E nesse caso, como em qualquer outro que envolva questões de autoridade, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Afinal, ainda que seja difícil saber qual é a vontade dos deuses, já que, ordinariamente eles não vêm a terra para nos dizer o que têm em mente, não há mal nenhum em pensar que a vontade divina tudo justifica, pois mesmo nas democracias, onde, por suposto, o desejo do povo justifica a lei, é comum dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Isso mostra que, em qualquer caso, não basta a simples lógica do bem estar social para dar suporte ao ordenamento jurídico. Sempre há uma vontade divina na base dos mandos e desmandos que se cometem na vida pública e tudo fica mais justificável quando se pode dizer que é Deus quem quer que assim seja.
Destarte, nenhuma crítica se pode fazer aos bons senhores que ostentam essa investidura, seja ela concedida por unilateral escolha de quem tem autoridade para fazê-la, no caso, o próprio Deus, ou por mérito de conquista, o que às vezes acontece; ou ainda por usurpação – que geralmente é o caso –, mas não é isso que importa discutir aqui, já que este não é o objetivo da nossa crônica. De qualquer forma, fica aqui o registro, para que não se pense que são apenas os sacerdotes judeus que se arrogam nesse direito e de repente se passe a tê-los em mau conceito. Bastante difamados já foram depois que os fatos que aqui se cuida aconteceram. Não precisam agora que se lhes lancem mais culpas sobre os ombros, embora neste caso eles mesmos tenham assumido plena responsabilidade pela condenação desse homem ao afirmar ao prefeito romano que seria de somenos importância que a responsabilidade pela sua morte lhes fosse imputada. Essa é notícia confirmada por todos quantos já escreveram sobre esses fatos e o registro que aqui se faz só corrobora tais informações: “ caia o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos”, disseram eles, e nenhum vaticínio foi tão acertado quanto esse, pois até hoje ele está sendo cumprido.
As outras duas cruzes (de onde pendem dois corpos que importância nenhuma parece ter no quadro, já que nenhuma inscrição dá conta de quem sejam, nem que crimes cometeram) são toscos troncos de árvores, aos quais foram encaixadas, de forma bem descuidada, as barras horizontais. E estas, parecem que ali foram postas somente para acomodar os braços dos condenados, um dos quais, o que está à direita, não se sabe por que forças ou direitos de moribundo, descansa a cabeça sobre a trave horizontal da cruz como estivesse se acomodando em um travesseiro e ali se quedasse no melhor dos sonos. Imagem que lhe cai bem, diga-se, já que o sono que experimenta, o da morte, é o que existe de mais completo entre os descansos que a tarefa de viver nos proporciona. O outro, à esquerda, aparenta estar contemplado da mesma sorte, porquanto sua postura é de quem também está dormindo sobre a trave vertical, com a cabeça descansando sobre o ombro direito e o braço esquerdo esticado sobre a trave horizontal; posição que indica que este também se despediu das humanas lidas sem mais resistências do que reclamar, quem sabe, da sorte madrasta que o levou a terminar a vida daquela forma tão degradante. Mais tarde alguém viria a recensear-lhes os nomes e Dimas, ou Dumachus, disseram que se chamava o condenado crucificado à direita e Titus o da esquerda. Isso não nos custa acreditar, ainda que esses nomes não tenham sido registrados em nenhuma ata de tribunal, nem tenham sido marcados nas cruzes, como foi feito com o condenado pregado na cruz do meio, sobre suas cabeças, os seus nomes e os crimes pelos quais eles foram supliciados. Registre-se ainda o fato de ostentarem nomes latinos dois condenados que são, obviamente, judeus, mas neste, como em todo o caso, existem contradições incontornáveis que não devem ser demasiadamente expostas para não comprometer o objetivo da informação. Se não o fez quem primeiro a registrou, não o faremos também nós, que estamos apenas repassando-a.
Descontando essas incongruências (que não são da lavra deste cronista, mas de quem, muito antes dele fez uso por demais licencioso da imaginação, ou então possuía informações que ninguém mais compartilhava), demos por certo que são eles, o bom e o mau ladrão, que ali estão suspensos. Essas também são informações que foram recuperadas muito tempo depois que esses fatos ocorreram, pois naquele momento ninguém se deu ao trabalho de indagar nomes e profissão dos tais condenados, providência essa que certamente foi considerada de nenhum interesse para a História e que também pouco colaboraria para enriquecer a jurisprudência forense. Assim, mesmo que se quisesse hoje encetar uma pesquisa a esse respeito ela estaria fadada ao fracasso por falta de registros confiáveis. Agora, pessoas de má conduta devem realmente ser, porque passados tantos séculos desde que esses fatos ocorreram, ninguém, até hoje, se dignou a tentar lavar-lhes a honra, como já aconteceu com tantos injustiçados da justiça, que às vezes têm a sorte de encontrar um tardio advogado, com habilidades de historiador, para redimir-lhes a memória. Fica-se, portanto, com a informação de que morrem como ladrões esses dois condenados; e cuida-se que suas sentenças não tenham sido contestadas de nenhuma forma, como aconteceu com o condenado da cruz do meio que, segundo se conta, teve alguns defensores no tribunal que o condenou, embora a maioria dos repórteres que andaram escrevendo sobre o fato tenha silenciado sobre esse detalhe. Mas sendo esse julgamento processado perante um magistrado latino, forçoso é que algum advogado dativo, ainda que somente para dar foros de legalidade à sentença ali proferida, tivesse sido nomeado para defendê-lo.
Agora, sabemos que sentenças dessa ordem, quando são proferidas, não contra quem pratica crimes comuns, mas contra quem comete delitos de opinião, são sempre contraditórias. Ainda que na morte se venham a equiparar uns e outros, cuidam os vivos de fazer distinções entre eles; e se acontece de ocorrer viradas, dessas que fazem com que os executores se tornem candidatos à execução, aquele que morreu como criminoso pode muito bem passar a ser visto como herói. Tais são as vicissitudes dessa arte chamada Política. Quem a cultiva deve cercar-se dos devidos cuidados e ficar preparado para essas inversões de papéis.
Como se chegou à constatação de que eram ladrões os condenados da direita e esquerda, também é informação já perdida. O fato é que é dessa notícia ficou a crença de que o indivíduo da esquerda era tão mau, que nem com o bafo da morte a esquentar-lhe a nuca se arrependeu da vida torta que levou; e o da direita, pelo menos nessa hora extrema, conta-se que demonstrou ser capaz de algum remorso. Tanto que se arrependeu dos crimes que praticou e reconheceu a qualificação atribuída ao condenado do meio. Não sabemos se a que lhe imputaram os romanos, de rei dos judeus, ou a de que o acusaram os anciãos do Conselho, de reivindicar a condição de filho legítimo e direto do Deus do país. Mas o fato é que isso lhe valeu um bilhete de entrada no paraíso para aquela mesma tarde, logo depois que entregasse o turvo espírito. Isso também é verdade, porque não foram poucos os que ouviram a promessa que o carpinteiro agitador lhe fez, de que o citado ladrão, nessa mesma tarde, estaria com ele nesse balneário de delícias que foi criado especialmente para premiar com uma eterna vida de prazeres as almas que fazem bem o seu trabalho na terra, e também aquelas que a tempo se arrependem de seus pecados, como no caso desse bom ladrão. Descontada a possível injustiça que poderia estar embutida nesse último critério de julgamento – já que ele equipara os sempre virtuosos com aqueles que chegam á ultima hora à senda da virtude –, demos por certo que tal diálogo tenha realmente se passado, ainda que seja difícil acreditar que alguém, no estertor da agonia, pudesse ainda estar a cuidar de tais sutilezas.
Com exceção das palmas das mãos e dos dorsos dos pés, por onde lhes foram enfiados rombudos cravos para prendê-los no madeiro, em outras partes do corpo não sangram esses dois e nem aparentam ter sofrido a tradicional mutilação que se aplica aos condenados dessa sorte, que é o flagelo com vara ou flagus, esse chicote feito de tiras de couro com bolinhas de aço nas pontas, que tanto estrago causa nas carnes dos desgraçados submetidos a esse suplício. Essa é razão pela qual os dois infelizes, parece, irão demorar muito para morrer. Daí por que, entediado com o mofino trabalho, que é diário e já não lhe causa a menor excitação, o centurião que comandava a operação mandou que as pernas lhes fossem esmigalhadas com um martelo para que a morte sobreviesse com mais rapidez. Geralmente é o que acontece quando o peso do corpo desaba sobre as pernas quebradas do condenado. Sem poder sustentar a moribunda carcaça, o pobre diabo fica impedido de respirar e a morte vai consumindo a vida dele com a presteza que uma hiena faminta devora a sua presa. Por isso lá estão os dois corpos, arriados como tendas das quais se cortaram as cordas, e a postura que apresentam nesse momento extremo não é coisa bonita de se ver.
Já ao condenado do meio não foi preciso aplicar tal expediente, o que faz supor que rendeu seu espírito mais cedo do que se esperava. Assim, escapou ele de mais essa mutilação, que numa primeira análise pode até parecer cruel, mas do ponto de vista de quem a aplica não deixa de ser um ato de piedade, praticado no cumprimento de um dever legal. É que essa medida, além de abreviar o sofrimento do condenado, também atende aos sábios preceitos prescritos pela lei da terra, que proíbem que uma carcaça fique exposta de um dia para o outro, principalmente numa época, que segundo já se disse, é de festa.
Aliás, não são poucos os que defendem a utilidade dessa medida, que além de atender a humanos reclamos de dignidade, evitando a exposição prolongada da miséria humana, ainda serve a profiláticos cuidados sanitários. Isso, para os judeus, mais do que para qualquer outro povo, é assunto de especial relevância, porquanto nessas questões de profilaxia e vigilância sanitária são eles os pioneiros entre os povos da terra. De muito longe no tempo já as praticam, e não é a toa que fazem parte do seu ordenamento legal medidas dessa ordem e outras, que se referem de forma especial aos defuntos, proibindo de forma taxativa que eles permaneçam entre os vivos mais que o tempo necessário para as devidas exéquias. Assim, a sociedade dos judeus, que já tem suas salvaguardas contra os leprosos, os sarnentos, os portadores de doenças sexuais e outras imundícies detestáveis, também se previne contra o espírito que já não tem uma carne para hospedá-lo, pois que, depois de liberto do corpo, sabe-se lá o que se torna essa etérea parte da nossa substância.
Mas deixemos de lado os dois ladrões, porquanto é o homem que foi pregado na cruz do centro que deve merecer a nossa atenção. Se não fosse pelo detalhe do madeiro em que ele está cravado, de lavra profissional, como já foi dito, como a distingui-lo dos outros dois que estão pendurados à sua direita e esquerda, é de considerar que a sua postura se apresenta diversamente oposta à deles. Não se mostra retorcido e abandonado como os dois que pendem ao seu lado, mas conserva o esqueleto ereto e firme, como se o seu corpo, mesmo depois de morto, não tivesse perdido o viço que nos faz parecer, de acordo com a visão de um renomado filósofo, um caniço pensante.
Claro que esse detalhe pode ser explicado pelo fato de não lhe terem quebrado as pernas, como foi feito com os outros, mas por razões outras, menos anatômicas e mais transcendentes, queremos acreditar que essa postura esteja sendo mantida. Somente a sua cabeça pende para a frente, caída sobre o ombro direito, enquanto os braços, esticados em forma de Vê, parecem querer se amoldar à cruz em que foi posto para morrer. Praticamente desnudo, como os seus companheiros de infortúnio, apenas uma sumária tanga lhe cobre as vergonhas, detalhe que acreditamos nós, deve ser acrescentado para atender a humanos reclamos de pudor, pois de sobejo se sabe que os condenados dessa sorte sobem ao madeiro para sair da vida da mesma forma que nela entraram, ou seja, completamente nus.
Diferentemente dos dois outros, entretanto, este mostra marcas de muitas mutilações, o que se percebe claramente nas costas lanhadas a azorrague e no nariz quebrado a punhadas, além das inúmeras equimoses que se observa no rosto e no resto do corpo, a mostrar que foi castigado de todas as formas que a crueldade humana foi capaz de inventar até aquele momento. O pobre homem é uma ferida só, uma massa quase informe de carne sangrenta, e ainda por cima tem um dos flancos perfurado por lança. Essa incisão provavelmente lhe foi feita em razão da decepção do legionário incumbido de quebrar-lhes as pernas, o qual se viu privado desse prazer ao ver que o condenado já estava praticamente morto e daí sapecou-lhe mais essa mutilação por conta da outra que a morte lhe havia roubado. Nada há de estranho nisso porquanto se sabe que os romanos não dão ponto sem nó e odeiam perder viagem. Se já encontram a ovelha tosquiada quando a capturam, cuidam eles de fazer com ela um bom assado para não sair sem lucro. Essa praticidade é que fez deles os senhores do mundo e eles sabem que no dia em que a perderem, o seu império começará a ruir.
Na cabeça pendida do condenado pouca coisa se pode ver do que já foi um humano rosto, já que este, além do nariz quebrado, ainda mostra lábios e olhos de tal forma intumescidos, por conta das tantas pancadas que levou e talvez também em conseqüência das inúmeras quedas que sofreu no trajeto entre o tribunal e o alto desse monte. Nela se pode ver que foi posta uma espécie de tiara, feita de cipó espinhoso, tecida a guisa de coroa. Veio-lhe ela de certo por conta da mofa dos soldados romanos, que estes, cujos espíritos ainda estão na pré-civilidade, não perdem oportunidade para uma boa chacota, especialmente quando se trata de espicaçar um yaudi. Destarte, foi somente para zombar dos judeus, a quem conferem tanto desprezo, de tal forma que só se poderia admitir mesmo um rei como aquele, que os soldados puseram-lhe sobre as costas um manto escarlate e aquela coroa de espinhos e depois saíram com ele em picaresco cortejo pelas ruas da cidade, a zombar, a cuspir e a bater no mofino candidato a soberano. A improvisada coroa feriu-lhe a testa e o couro cabeludo de tal forma, que a cabeça assim coroada parece um lagar fendido em vários pontos, por onde filetes de um rubro vinho vertem. O sangue, escorrido e coagulado pelas faces, como borrões de tinta jogados a esmo sobre as negras barbas do condenado, confere à caput mortuum do infeliz uma visão aterradora e fascinante ao mesmo tempo, de tal modo que as pessoas que assistem à execução não conseguem dela afastar os olhares, horrorizados alguns, hipnotizados outros.
II
Coisa interessante de se ver nos três condenados é a expressão do rosto deles. Enquanto os crucificados da direita e da esquerda parecem que dormem, pois que a morte lhes foi definitiva, acabando com todas as suas dores, o condenado do centro ainda conserva no rosto massacrado uma expressão de dor tão grande que, dir-se-ia, nele a morte não completou seu trabalho, levando-lhe as dores junto com a vida. Como se as primeiras pudessem sobreviver numa carne que já não hospeda a última, elas ali estão, como que a provar que muita razão tem quem acredita que entre o céu e a terra há muita coisa mais do que pode supor a nossa vã sabedoria.
Descontando a falta de originalidade da frase, o que se quer aqui dizer é que o morto, ainda que morto, parece reter na última expressão todas as angústias do mundo – não fossem elas menores do que aquelas que lhe foram infligidas nas últimas horas – ; e o seu rosto, já dito que de todo descomposto em suas feições, é uma máscara de agonia e sofrimento que não arrefeceu nem deixou de compungir-se até mesmo depois que o espírito abandonou-lhe o corpo e privou os nervos das cinestesias próprias dos seres vivos. Considerando-se o desenrolar futuro da história desse condenado, esse é um detalhe não pouco relevante, que ninguém deveria desprezar.
Agora, falando em detalhes, é preciso que se considere outro, não menos importante, neste quadro que contemplamos. Trata-se da platéia que assiste ao macabro espetáculo. É composta, em primeiro plano, por quatro mulheres e um rapaz, este de compleições tão finas, que se fosse dito que mulher é também, ninguém ousaria contestar. No entanto, olhando-se mais de perto, vê-se que é um rapazola, em seus quinze ou dezesseis anos, que os cabelos encaracolados e compridos, emoldurando a face jovem e quase feminil, e o fato de estar ali, como única presença masculina em meio a uma maioria feminina, faz com que, em princípio, se pense ser também ele uma mulher.
Desfeita essa primeira impressão, no entanto, recupera-se a informação correta e podemos ver que se trata, realmente, de um menino. E tal, por todas as evidências possíveis e comprováveis, só pode ser aquele discípulo amado, único dos doze que parece ter estado presente nas horas mais amargas e difíceis pelas quais ele passou, especialmente na sua última noite.
Não fosse essa uma informação assaz inoportuna, que pode provocar especulações indevidas e até maldosas, poder-se-ia dizer também que esse garoto é o mesmo que na noite anterior, quando o condenado foi preso no Horto de Getsêmani, deitou a correr nu, pelo jardim, depois que um soldado betusiano puxou-lhe o lençol no qual se envolvia. O que fazia ele vestido nessas condições, ou desvestido, melhor se poderia dizer, é assunto que poderia suscitar muita especulação. E também por que se registrou tal fato é coisa que ainda causa muita celeuma, já que ele parece estar despregado de todo contexto e nenhuma relação guarda com qualquer objetivo, estratégia ou compromisso que alguém pudesse ter assumido em relação á vida e obra desse condenado. Destarte, se a história desse homem não constituísse um verdadeiro repertório de enigmas e significados ocultos a revelar, uma ocorrência desse tipo sequer mereceria uma citação; mas se pelo um cronista a registrou é porque alguma relevância deve ter, senão não se gastaria papel e tinta com ela, ainda que fosse apenas para excitar a imaginação dos leitores. Dito isso, registremo-la nós também, porque essa é uma das poucas referências que faremos em relação a esse moço, que segundo uma tradição firmada a partir de uma fala atribuída ao condenado, ainda estaria vivendo entre nós, e neste mundo ficará até que ele volte – não se sabe quando nem de onde – para recolher os frutos da sua missão. Eis aí uma esfinge que conserva o seu segredo até os dias de hoje e quem conseguir dar a ela uma resposta condigna, certamente se elevará às alturas daquele Édipo que igual charada um dia decifrou.
Enigmas á parte – que a vida desse condenado já os possui em demasia –, as outras figuras que aparecem em primeiro plano, sem nenhuma dúvida, são mulheres. Mais não fosse pelos formatos dos rostos e pela roupa que vestem, os contornos femininos nelas se notam perfeitamente. E das que se apresentam em perfil, nestas se pode perceber as salientes elevações que tanto atraem os olhares masculinos para seus corpetes.
A primeira delas, bem em frente ao condenado da direita, na visão de quem olha o quadro de frente, tem a expressão de quem perdeu alguém muito querido, mas malgrado a tristeza que parece sentir, dá-nos a impressão de estar conformada. Talvez esteja pensando que a vida continua e tudo que ficará da magnífica aventura espiritual vivida com aquele homem será uma crença que irá acompanhá-la pelo resto do tempo que lhe cabe viver. Essa crença lhe servirá de suporte para tudo que vier a fazer e pensar daí em diante. E ela, que compartilhou e ajudou com seu envolvimento espiritual e ajuda material esse empreendimento que não termina agora, com a morte do seu protagonista principal, mas começa com ela, sabe que onde essa história for contada, seu nome será também lembrado, e essa será a sua recompensa.
Talvez não seja mais do que isso o que almeja essa Joana – pois esse é o seu nome –, mulher de fartos cabedais e cabeça muito bem feita, esposa de um procurador do rei Herodes. Essa informação sobre a identidade e a qualificação dela nos leva a desconfiar que o condenado não tinha, realmente, como deu a entender o praefectus Pilatos, qualquer intenção hostil contra as autoridades constituídas e foram mesmo os enciumados anciãos do Conselho judaico, por motivos particulares e temores coletivos, que perpetraram a sua condenação.
De qualquer modo, para Joana, o dinheiro que despendeu nesse projeto, ajudando a sustentar com as suas posses o homem que acabou de render o seu espírito na cruz, foi bem empregado. Não teria ela feito melhor investimento se o tivesse gasto com um professor de filosofia, desses que os abastados cidadãos do império gostam de contratar para preceptores dos filhos e conselheiros próprios, pois o que ouviu da boca do condenado será a sabedoria que encantará as próximas gerações e feliz dela que a ouviu de primeira mão. E para que tal informação não venha a criar nenhum constrangimento aos que se derem ao trabalho de ler esta crônica, é preciso que se diga que essa prática – de mulher ajudar com suas posses um homem que faz trabalho semelhante ao desse condenado – era coisa muito natural nos tempos dos quais se fala. Isso não é este cronista que sustenta, mas um dos quatro que tiveram seus relatos avaliados como confiáveis. Há, portanto, que se dar crédito á essa informação, já que a sua reportagem (dizem) foi uma das quatro que saíram voando sozinhas do meio de uma pilha de um milhar ou mais, quando os doutores da Igreja que se formou em seu nome, reunidos em Nicéia, trezentos e tantos anos depois para avaliar o que era real e o que era fantasia em relação à história desse condenado, estavam fazendo a seleção dos textos. Disse esse cronista (que era doutor, e foi dos primeiros a fazer um relato acerca da experiência singular desse homem), que muitas mulheres o seguiam e o serviam, e isso, não raras vezes, acabou sendo motivo de escândalo até entre os seus próprios discípulos, pois tal comportamento não era de uso comum entre eles.
Mas quanto à questão em si, não é de se espantar. Afinal de contas, professor ele era, e lícito é também que suas aulas dessa forma se pagassem, já que digno é o operário do seu salário. Isso foi o próprio quem disse. E ele, mais que ninguém, deu provas da maior decência nessa questão, pois não quis viver como aqueles indignos kions, discípulos daquele Diógenes de Tiana, que receberam a alcunha de cínicos porque desdenhavam das pessoas que se preocupavam com os bens da terra, mas viviam das esmolas que elas lhes davam, como se umas e outras não saíssem do mesmo tesouro.
Conhecemos a hipocrisia daqueles cínicos, que semelhantes aos fariseus e saduceus que o condenaram, pregavam uma coisa e faziam outra; mas quanto a esse homem que pende da cruz, dessa falta não pode ser acusado. Segundo aqueles que o conheceram e com ele andaram em sua peripatética vida missionária, esse condenado era um sujeito simples e folgazão, que bebia e comia com todos que se propusessem a dividir com ele a mesa, sem fazer distinção de classe, sexo ou fortuna. Da sua comensalidade participavam gentios, prostitutas, publicanos, pecadores de todo tipo e padrão, e muito por isso também, atraiu ele o ódio dos bem nascidos da terra, estirpe altiva e orgulhosa de suas ancestralidades – que assim chamamos para não dizer preconceitos – que evita, a todo custo, qualquer interação com a gentalha desclassificada, como se esta fosse toda constituída de leprosos e não apenas de pobres excluídos que eles mesmos ajudaram a fabricar.
E como aquele Sócrates que bebeu cicuta e renunciou à vida para não ter que contradizer a si mesmo, ele também nada recebia pelas lições que ministrava, salvo os estipêndios que espontaneamente lhe davam os seus ouvintes. E morreu tão pobre quanto o filósofo grego, que ele certamente conhecia, pois não é possível que duas experiências tão semelhantes aconteçam apenas no terreno das coincidências.
Entretanto, como informação nunca é demais, diga-se que esse carpinteiro, que se tornou um rabi dos bons, recebia as contribuições que a ele e a seus discípulos eram dadas por quem as quisesse dar, como pagamento pelas preciosas lições de vida que ele lhes proporcionava. E quem as comprava não tinha nenhum constrangimento de dizer que bem valiam o preço que pagavam. Dessa maneira viveu ele durante todo o tempo do seu ministério; e assim também os que deram seguimento á sua missão.
E dessa forma continuam vivendo ainda hoje os que dizem seguir pela mesma senda. Certo é que essa se tornou profissão das mais rentáveis, mas que não se lhe impute mais esse agravo, pois ele foi muito claro em suas lições a esse respeito, e se alguém as desvirtuou a culpa não lhe cabe. “Não queirais possuir nem ouro ou prata, nem tragais dinheiro em vossas cintas; não leveis alforjes nem duas túnicas, nem bordão; ficai na casa de quem é digno, dando de graça o que de graça eles vos derem”, disse ele aos seus seguidores. Lição de desapego mais clara do que essa, de ninguém se pode exigir.
Segundo se noticiou também, foi muito por causa das aulas que deu que ele está ali pendurado. Mas deixemos de lado essas informações, por enquanto, para que a nossa atenção não se desvie do quadro que estamos descrevendo. Registremos, no entanto, apenas por uma questão de justiça, que da mesma forma que encômios se devem ao inventor de geniais aparatos, ou ao criador de grandes obras de espírito, é justo também que se reconheça a importância dos que as financiam, porquanto sem esse profano, mas necessário suporte, não há gênio nem santo que obre de tal sorte. Façamos, destarte, a essa Joana, esposa de Cuza, o procurador de Herodes em Cafarnaum, e aos demais mecenas que o suportaram em sua obra, essa justiça. E que ela fique aos pés da cruz sem mais referências, porquanto isso é tudo que ela espera, embora muito mais que isso certamente mereça essa mulher. Pois ela seguiu o homem que acaba de expirar, por todo o tempo em que ele realizou a sua missão e não o abandonou, como fizeram aqueles que se diziam seus discípulos e lhe juraram fidelidade até a morte, mas nas primeiras dificuldades que surgiram se dispersaram como um bando de covardes, havendo até quem negasse que o conhecia.
Diga-se, a bem da verdade, que mais tarde se arrependeram e recuperaram a coragem perdida nessa hora, dando continuidade á sua missão – alguns deles até morrendo de morte igual á do seu líder –, mas nesse momento nada se pode dizer que os abone. Eles fugiram e o abandonaram á própria sorte. Isso é que está reportado por todos quantos escreveram sobre esse assunto e nós aqui só estamos corroborando esse fato.
Em frente à piedosa Joana podemos ver uma jovem sustentando o corpo de uma mulher desfalecida. Essa, que se apresenta com a cabeça descoberta, mostrando os louros cabelos enrolados e presos no alto da cabeça é Maria de Betânia, jovem donzela das cercanias de Jerusalém, irmã de Marta e Lázaro, pessoas que faziam parte do círculo de amizades do condenado.
Na casa deles passou os derradeiros dias da sua vida e conta-se que foi com esse mesmo Lázaro que ele praticou a maior de suas façanhas. Dizem que esse era um amigo a quem ele muito amava, o que damos por acertado, porquanto, como veremos, havia laços muitos fortes a ligá-los. Lázaro havia morrido de morte natural e ele o resgatou para o mundo dos vivos, quatro dias após o mesmo ter sido encerrado em seu túmulo. Considerando a tradição mantida pelos judeus com relação aos defuntos, é possível imaginar a comoção que esse condenado deve ter provocado nos seus conterrâneos com esse ato. Pois se até o simples toque em um cadáver já era considerado ato impuro, imagine-se o que pensar de quem levanta do túmulo um corpo que para lá já havia sido despachado com todas as formalidades exigidas pela tradição. Certo que há quem sustente que esse foi um ato puramente ritual, ou de mera simbologia iniciática, semelhante aos que os praticantes dos Antigos Mistérios costumavam fazer no exercício das suas misteriosas liturgias, ou seja, uma ressurreição simbólica, em nível de espírito, aplicável a quem morre para uma vida anterior e renasce para outra, como será prometido com muita ênfase pelos seguidores desse condenado aos que adotarem a doutrina que ele andou pregando pela terra.
E muitos há que simplesmente negam que tal acontecimento tenha realmente se passado. Alegam ser muito estranho que apenas um dos cronistas tidos como sérios o tenha registrado, e os outros que mereceram igual distinção sequer o tivessem mencionado, dada a importância de um prodígio dessa ordem. A objeção merece a devida consideração, mas desse condenado, em especial, nada que se diga pode ser desprezado e tudo que se possa dizer jamais será bastante. Assim, se ele podia mesmo ressuscitar os mortos, essa é uma dessas questões cujo entendimento jamais poderá ser dado como pacificado. Aqui cabe o velho ditado, que foi criado justamente para evitar a proliferação dessas especulações inoportunas, que diz: para quem não acredita nessas coisas nenhuma explicação é possível; para quem acredita nenhuma explicação se faz necessária.
Mas dessa Maria de Betânia, o que ninguém ainda contou é que essa bonita moça amou, com amor de mulher, amiga e irmã, o homem crucificado no meio dos dois outros; só não teve a felicidade de consumar seu amor, porquanto o destino – ou quem quer que o controle – assim não quis que acontecesse. Entretanto, para quem quiser saber, diremos á boca pequena ( por que esta é informação que pouca gente possui ), que houve um tempo, na vida desse sentenciado, que ela foi sua noiva prometida e certamente com ele teria se casado não fossem os acontecimentos que sobrevieram. Eles fizeram com que ele se afastasse dela, mas de forma alguma essa separação afetou o amor que ela sentia por ele. Só a guisa de informação, para que não se precise voltar a esse assunto depois, reportamos que aos vinte e cinco anos, quando o condenado obteve sua licença de rabino, ele precisava casar-se para assumir um posto em uma sinagoga qualquer como professor ou ministro. Essa era a lei do país – que seus pastores fossem casados –, e a ela não podiam se furtar aqueles que almejassem tais empregos públicos, por sinal os mais prestigiados e rendosos numa terra onde a religião e a lei se fundem numa única autoridade. Maria de Betânia, então com tenros dezesseis anos, foi a noiva escolhida, mas por razões que agora não vêm ao caso, o condenado preferiu renunciar à concorrida carreira de rabino para tornar-se um professor itinerante, desses que andam pela terra dos judeus ensinando o que pensam ser a vontade do Deus local. Isso não é fato incomum, pois desde tempos já perdidos na memória essa tradição se cumpre entre os judeus. Sempre que as coisas não andam bem na sua sociedade, alguém há que se levante como oráculo para lembrar aos rebeldes descendentes do patriarca Abraão as suas obrigações para com a Divindade que os escolheu para ser o seu povo preferido. E dizem que ninguém, melhor que ele, deu conta dessa tarefa inglória de alertar os desgarrados filhos de Israel para voltarem para o aprisco do seu pastor antes que a tempestade fosse desencadeada. Sucesso não teve nessa missão em particular, mas não sendo essa a sua missão principal, não há que se lhe imputar nenhum agravo por conta disso, por que resultado muito mais importante do que esse ele obteve em sua obra.
Quanto à Maria de Betânia, muito sofreu ela com essa decisão, mas, ao final, compreendeu que havia coisas maiores a serem atendidas. E que o seu amado precisava obedecer a um chamado, cuja voz falava mais alto do que aquela que saia do seu coração. E assim ele se foi. Por mais de cinco anos ela não o viu, embora ouvisse falar que ele esteve vivendo alguns anos como discípulo de um pregador conhecido como “João, o Batista,” anacoreta irascível e mordaz crítico das licenciosidades que o povo de Israel havia adotado, por conta de tantos anos de interação com estrangeiros. E que depois abandonara o círculo do Batista e montara escola própria, percorrendo a Galiléia e arredores, ensinando uma doutrina nova e fazendo prodígios de espantar quem os presenciava.
Foi assim que ela perdeu seu casamento e seu amor de homem. O casamento, ela o perdeu para a missão que ele se propôs cumprir; o amor perdeu-o para outra mulher, mas segundo se sabe, Maria de Betânia nunca deixou de amá-lo por uma coisa ou por outra, como seria de esperar se o seu fosse um amor qualquer e ela uma mulher comum. Preterida como esposa, tornou-se sua discípula, como tantas outras mulheres que o seguiam. Ao amor romântico somou a veneração da discípula pelo mestre, da irmã pelo irmão, da amiga pelo amigo, e assim pode-se dizer que se houve alguém que um dia experimentou todos os tipos de amor – que enfim é o verdadeiro Amor –, essa criatura foi a jovem donzela de Betânia.
Destarte, a preterição não lhe fez nascer a mágoa nem o ciúme. Isso é tão verdadeiro, que quando ele voltou a Jerusalém para dar cumprimento final à sua missão foi na casa dela e de seus irmãos que preferiu ficar, enquanto os preparativos para o desenlace final da sua estratégia eram feitos. Sintomático e revelador é esse comportamento, porquanto muitos outros discípulos e correligionários o condenado tinha em Jerusalém, bem mais ricos e importantes que a família dessa moça, mas o coração tem as suas razões, e estas, nos momentos de extrema sensibilidade é que norteiam as nossas ações. Disso sabemos por que seus passos na cidade santuário, nesses últimos dias, foram melhores reportados do que toda a sua vida anterior. Se das coisas que fez e disse não se encontra concordância entre os repórteres oficiais, dessas suas aventuras em Jerusalém, nessa semana consagrada ao Pessach, todos eles praticamente escreveram as mesmas coisas, o que nos dá uma indiscutível confirmação de fontes para sustentar a veracidade dessas informações.
Com o que hoje temos à mão é possível entender por que ele preferiu ficar hospedado na casa de Maria, Marta e Lázaro, na fatídica semana que antecedeu sua entrada triunfal em Jerusalém, quando poderia ter se homiziado entre os seus próprios parentes e amigos, cujos haveres e patentes eram bem mais fartos e importantes do que os dos seus amigos de Betânia. Mas não o fez, e dessa forma se explicam muitas coisas que estavam pendentes nessa história.
Nesse quadro que estamos descrevendo, Maria de Betânia parece estar a dividir com uma mulher desfalecida uma dor sem remissão. Seu olhar é de quem vê a esperança de consumar um grande amor se esvair sem a mínima chance de realização. Sabemos que dor maior não existe do que a certeza da perda irrecuperável; e a desesperança que acompanha quem a sofre, na certeza de que nada poderá substituir o que foi perdido, é um tormento que nem a mais estóica das criaturas consegue esconder. Talvez por isso a jovem tenha desviado o olhar da cruz e procure ocupar-se com a mulher desfalecida, quem sabe buscando no amparo ao próximo o consolo prometido no conhecido adágio que diz que o coração não sente o que os olhos não vêem. Nas crônicas que se escreverão mais tarde sobre a vida desse homem, cuja morte todas elas chorarão, essa jovem de cabelos louros e delicadas feições será citada apenas como aquela que escolheu a melhor parte. E essa parte será entendida aqui como a que cabe à discípula que se apaixonou pelo seu mestre e carregará pela vida inteira um amor que sabe jamais passará de contemplação e êxtase, mas que nunca deixará de ser verdadeiro amor, ainda que apenas no espírito receba as compensações que na carne lhe foram negadas.
No caso desta moça, sabemos, no entanto, que esse sentimento representa muito mais, e se não exploramos com maior profundidade essa informação é pelo respeito que temos para com a sua dor. Por isso, mesmo tardio, justo reconhecimento lhe faremos se reportarmos que ela se manteve fiel até a morte a esse amor, e nenhum outro homem jamais lhe veio disputar o coração com a lembrança do condenado. Adiantando-nos um pouco nos fatos, para que não precisemos voltar a eles em outros momentos desta crônica, informaremos que ela, Lázaro e Marta, seu irmão e irmã, respectivamente, deixaram a aldeia de Betânia. Isso ocorreu logo após a alvissareira notícia – que depois de três dias se apregoou por toda Jerusalém e adjacências – de que aquele condenado que pendia na cruz, morto, estava, na verdade, bem vivo. E isso, dizem, ela e as outras mulheres que estavam com ela naquele momento crucial viram com os próprios olhos e testemunharam a quem as quisesse ouvir. Certo é que os anciãos do Conselho judaico logo se puseram a campo para desmentir a bizarra notícia, mas o fato é que não tiveram nenhum sucesso nessa empreitada e a coisa tomou um vulto que nenhum deles jamais teria previsto. E esse foi o começo de tudo.
Mas essa também é outra história que um dia poderá ser contada com mais pormenores. E quando o for certamente contribuirá para aclarar muitos fatos, cujos contornos ainda não puderam ser definidos até agora em razão dos interesses que se desenvolveram em volta desse evento. Fiquemos, por enquanto, com a imagem dessa moça que, segundo se conta, foi uma das primeiras a vê-lo com vida depois de morto. Nunca mais se falou dela nem de seus irmãos depois disso, conquanto uma crônica, apócrifa, diga-se de passagem, escrita muito tempo depois desse fato, afirmasse que as autoridades judias, furibundas com a história da ressurreição desse condenado, despacharam de vez para o mundo dos mortos o seu irmão Lázaro, com a justificativa de que ele estava vivendo uma vida ilegítima, uma vez que a sua alma havia sido resgatada dos porões da morte por via obliqua, através de uma reencarnação não muito ortodoxa. Decerto que os mortos podem reencarnar, segundo se admite nas crenças dos judeus, mas não com o mesmo corpo, como ele fez com Lázaro; e aceitar uma possibilidade dessas seria uma quebra de padrão que os defensores da teoria da reencarnação jamais poderiam admitir, a não ser que o propalado fim do mundo, com o conseqüente julgamento dos vivos e mortos, como pregava João Batista, já estivesse à porta. Pois se dizia, através desse nervoso e ascético profeta essênio, que no último dia do mundo os mortos de todos os tempos e lugares se levantariam de seus túmulos, portando seus próprios corpos e consciências, como réus em um tribunal, para ouvir as sentenças a que cada um faz jus. Mas enquanto isso não ocorre, nossas almas ficarão pulando de corpo em corpo, vezes sem conta, até que esse julgamento seja marcado. E nesse ínterim, entre uma reencarnação e outra, teremos a chance de pagar os nossos pecados e conquistar um lugar no paraíso.
A reencarnação é o único meio segundo o qual se admite que um morto possa voltar a viver, segundo a crença dos judeus. Não o morto, propriamente dito, mas a sua alma. Fora desse encaminhamento, que é o único permitido pela lei que regula essa controvertida matéria, ressuscitar um defunto constitui uma usurpação pura e simples dos poderes de Jeová, a quem compete gerir esse processo. Assim, depois de matarem devidamente o ex-defunto e se certificarem de que ele estava realmente bem morto, os anciãos expulsaram do país as duas irmãs, acusando-as de fazer parte de uma seita maldita que havia roubado o corpo do carpinteiro e depois espalhado a infame notícia da sua ressurreição. Para onde foram ninguém registrou nem se fez recenseamento posterior, de sorte que essa informação também está perdida até os dias de hoje. Dizem que elas, depois de passarem por várias cidades do Império, dando testemunho das maravilhas que presenciaram, desembarcaram nas ilhas britânicas e fizeram lá um belo trabalho de evangelização. Depois acabaram terminando suas vidas em terras lusitanas, onde até hoje seus nomes são muito venerados.
Essas também são informações cuja veracidade não se pode mais confirmar, o que não impede, no entanto, que mais uma vênia se faça à meiga donzela de Betânia antes de encerrar o seu papel nesse drama. Registre-se que ela foi protagonista da mais bela e terna cena de amor, e talvez a mais tocante de todas quantas forem evocadas pelos séculos sem fim em que a história desse condenado for contada. Pois foi essa meiga donzela que lavou com suas lágrimas e enxugou com seus loiros cabelos aqueles pés que agora pendem, dilacerados, da cruz. Isso ocorreu em uma das últimas noites em que ele passou em sua casa, em Betânia, após um dos mais belos e significativos discursos que ele fez a um grupo de ouvintes que lá se reuniu para a sua palestra. Dizem até que Marta, a irmã dela, ficou tremendamente enciumada e reclamou com ele pelo fato de Maria ficar aos seus pés enquanto ela era obrigada a fazer as tarefas mais pesadas, que consistia em servir a mesa e cuidar para que os presentes tivessem o devido conforto. “ Não se aborreça com sua irmã,” disse ele à Marta, “pois Maria escolheu a melhor parte”. Com isso quis dizer que o serviço que sua ex-noiva lhe prestava, cuidando dele e ouvindo suas lições, era muito mais importante do que qualquer outro cuidado naquele momento.
Pode alguém imaginar cena mais bonita e marcante do que essa, que foi protagonizada por Maria de Betânia? Ainda que, mais tarde, algum mal informado cronista tenha dito que esse ato foi praticado por uma não identificada pecadora, que apareceu subitamente no local em que ele dava a sua palestra, afiançamos que tal cena, na verdade, pertence à ela e a nenhuma outra mulher, pois ninguém, a não ser, talvez, aquela a quem ele efetivamente amou como a mulher da sua vida, poderia ter assumido esse papel. Essa é a glória que a jovem donzela de Betânia levará para sempre e ninguém poderá tirar dela.
III
Á direita, para quem olha esse quadro de frente, outra mulher pode ser vista apertando contra os seios quase desnudos o manto inconsútil que o condenado usou até ser despido e cravado na cruz. Bela figura é a dessa mulher! Tão importante na vida desse homem foi ela, que até hoje se discute qual o verdadeiro papel que desempenhou nela. A ser verdade o que agora se anda dizendo a respeito da relação deles, então toda a história do drama que nesse quadro se representa precisaria ser reescrita.
De qualquer modo, se oficialmente dela não se falou mais após a morte dele foi por causa do ciúme e da inveja que os seguidores do condenado tinham dessa mulher. Afinal, misógenos todos, como eram os discípulos desse homem, não há nada de estranho no fato de eles terem procurado afastar da vida dele e da herança que ele deixou as mulheres que fizeram parte da sua extraordinária experiência. Entretanto, uma verdade eles não conseguiram esconder nem refutar: foram elas que o acompanharam até o seu último momento entre os vivos e também o saudaram no primeiro instante da sua propalada epifania.
Tão verdadeiro é o fato que as mulheres lhe foram mais fiéis, que podemos ver nesse quadro a prova definitiva dessa assertiva: além do jovem já citado, nenhum outro discípulo masculino está presente nos momentos finais da sua agonia. Isso porque, desde a noite anterior, quando ele foi preso e levado perante as autoridades, eles estão escondidos, como coelhos assustados, enquanto elas não saíram do seu lado um momento sequer, nem demonstraram qualquer receio de vir a sofrer da mesma sorte que o atingiu.
Deixemos para a sensibilidade do leitor o julgamento do que isso significa e voltemos à figura dessa extraordinária mulher que se apresenta em postura tão ousada, em momento e lugar tão incomum. Que não está vestida para o decoro e a gravidade que a cena exige é fácil perceber. Estranho mesmo é que ela se apresente assim em um momento tão crucial. Sua figura contrasta violentamente com as das outras mulheres ali representadas e parece mesmo pertencer a outro tempo. Cabeça descoberta, com os cabelos longos e negros a cair, revoltos, sobre os ombros, como uma cascata rebelde e sem freios que se precipita de alturas insondáveis, os fartos seios, quase desnudos, a saltar do corpete, e as coxas cujas formas se percebem nas dobras do vestido vaporoso, ela parece uma ousada e desafiadora presença, em local tão impróprio e em hora mais desusada, a lançar um mudo repto ao ambiente que a cerca. Ou, se quisermos ir mais longe nessa visão, diríamos que sua atitude é um marco que divide eras e anuncia mudanças no curso da História. Se a postura dela diante da cruz quer dar-nos recados outros, além do despudor que lhe atribuíram os antigos cronistas, ela certamente conseguiu, pois o que vemos nela não é a tristeza e a desesperança de uma pessoa que assiste a maior aventura da sua vida terminar em desgraça, mas a sobranceria de uma vitória conquistada, vitória essa que não transparece na representação visual que nos é posta para exame, mas pode ser percebida na serenidade do rosto que ela ostenta, pois se resume na consecução de um objetivo. Por isso sua postura, diríamos, assemelha-se à de um guerreiro vencedor, com os pés sobre um inimigo vencido, como nas antigas pinturas murais que no Egito e Babilônia se faziam para registrar para a posteridade as vitórias obtidas pelos seus grandes reis.
E talvez não seja sem razão que ela foi assim representada, porquanto dela, aqueles que não tiverem compromisso com mentiras e dogmas de indiscutível parcialidade, dirão que é exatamente isso que ela foi: uma guerreira, que abraçou as doutrinas heterodoxas desse condenado e realmente as compreendeu, ao contrário de muitos que se disseram seus verdadeiros discípulos, mas, por ignorância ou comprometimento com antigas idéias e tradições, a deturparam.
O nome dela também é Maria, como a lourinha da esquerda, já nomeada e reconhecida como sendo a de Betânia, mas esta, por ter nascido na aldeia galiléia de Magdala, ficou conhecida como Magdalena. Mais tarde, alguém viria a recensear-lhe o verdadeiro nome e Mariamne ficamos sabendo que se chamava, e que foi ela uma das mais aguerridas e eficientes propagadoras da doutrina inaugurada por esse condenado.
É morena, como de ordinário são as mulheres nascidas nas terras galiléias. Bonita também deve ser, e de corpo muito bem feito, porquanto os olhos lúgubres dos soldados, dirigidos ora para os seios redondos e fartos, que parecem querer saltar do ousado decote, ora para o contorno das bem torneadas coxas, cujas formas sobressaem-se nas dobras do vestido, não deixam dúvidas sobre o que estão dizendo uns aos outros. “Essa é a mulher do condenado que se disse rei dos judeus. Olhem como é bela. De certo vai precisar de muito consolo.”
Houve quem dissesse que ele a encontrou em condições assaz dramáticas, em pleno julgamento que dela faziam em praça pública por um delito de adultério. O que de certo é também uma deslavada calúnia, porquanto ela nunca foi casada antes e mesmo que fosse uma profissional do amor – circunstância que também nunca se provou –, não se poderia a ela imputar um crime que só é passível de ser cometido por quem é casado ou deve fidelidade a alguém a quem se ligou por livre vontade. A verdade, nunca aceita e reconhecida por quem desse condenado esperava e queria mais do que ele se propôs a ser, é que ela foi a companheira que ele escolheu, entre as muitas mulheres que o acompanhavam e o serviam em sua missão. E amor maior, entre homem e mulher, poucas vezes se viu. Tanto que se disse que ele a amava mais que aos seus discípulos e a beijava na boca muitas vezes, para escândalo deles, que tais posturas tinham como gentias e pecaminosas.
Desta que, mais ousada que as outras, parece estar sofrendo um sofrimento diferente, não nos ocuparemos além do necessário. A ela ainda cabe um largo desempenho na continuação da história desse condenado, que não acaba, como já se disse, na sua morte, mas começa de verdade a partir dela. Sua participação na história da vida e na obra desse homem é tão rica, que ela mesma mereceria ser a personagem principal em qualquer romance que se quisesse escrever a respeito. Como não é o escopo da nossa crônica a reportagem dos feitos dessa extraordinária mulher, diremos apenas para informação a quem interessar possa, que foi a ela que o condenado entregou o verdadeiro legado da sua herança, representado por um entendimento novo das verdades mais antigas do mundo. Esse legado, não só por conta do direito positivo lhe caberia, sendo ela sua legítima consorte, mas também em razão do mérito conquistado como discípula, embora – como em todas as sucessões em que muitos são os herdeiros presuntivos – lhe fossem negados tais direitos na partilha que se fez depois que ele partiu em definitivo para tomar posse do reino que conquistou pelo mérito que adquiriu no cumprimento da sua missão: um reino no coração e no espírito das pessoas.
Mas como o tempo é o senhor da razão, deixaremos a seu cargo fazer justiça a essa valorosa mulher, e o nosso desejo é que um dia ela seja recomposta nos quinhões que lhe foram usurpados. A nós, simples cronista de imaginárias relações, a quem não foi atribuída competência para julgar tais questões, só cabe lamentar que a misoginia de uma geração tenha escamoteado a verdade dos fatos, atribuindo-lhe mesmo uma injusta fama de prostituta, profissão que lhe foi dada por alguns cronistas, ou de endemoninhada, roupagem que lhe foi cozida por outros, sem que se dissesse de que fonte proveio essas informações, embora com o que foi dito acima possamos já inferir de onde teriam partido tais calúnias. Ainda bem que para salvaguarda dos direitos que lhe cabe, pelo menos um cronista – que de perto afirmou ter visto todas essas coisas e convivido com os personagens em questão – registrou de próprio punho que esta Maria de Magdala, que abraça o manto do homem crucificado na cruz do meio como se estivesse abraçando a ele próprio, foi sua leal e fiel companheira, que o amou com o amor de esposa e amante; e que ele também a amava, ainda mais do que aos seus próprios discípulos, os quais, por isso mesmo, tinham tanto ciúmes dela que a difamaram o quanto puderam e depois a relegaram a um conveniente ostracismo.
Dito isso, para que se recupere a verdade dos fatos, iremos deixá-la também ao pé da cruz, registrando apenas que ela não chora porque o sentimento que faz verter a lágrima pressupõe a existência de um coração trabalhando com a plena carga dos seus humores, e o dela acabou de perder a sua mais importante função com a morte do seu amado. Dir-se-á mais tarde ( mas esta é informação que não afiançamos como verdadeira, pois que as provas, se existiam, também foram destruídas ou bem ocultadas por quem temia a sua revelação ), que o coração dessa mulher foi recompensado com outro coração, esse o de um menino, ou menina, pois nesse particular não há concordância de informação, que já nesse momento de extrema angústia e tristeza ela leva no ventre. Talvez por isso ela não chore. Antes, o seu olhar parece ser de enlevamento e ternura; e quem tiver a capacidade de enxergar além da mera imagem que lhe é posta diante dos olhos poderá vislumbrar, na mística expressão da sua face, um simulacro daquele sorriso matreiro que sempre se nota no rosto de quem parece encobrir um explosivo segredo. Quando os espíritos despirem as armaduras dos seus dogmas, e a verdadeira história desse drama puder ser revelada, então a realidade dos fatos será também recuperada. Nesse dia, poderemos ver que há muito mais beleza e novidade na doutrina desse condenado do que as que foram divulgadas por aqueles que dela se apoderam e a transformaram num obscuro conjunto de postulados, desenvolvidos somente para defesa dos seus próprios interesses.
A última das mulheres que aparece nesse quadro é a senhora que está desmaiada aos pés da cruz. Sustentada por Maria de Betânia e pelo jovem discípulo amado, sua aparência é de quem já esgotou todas as reservas físicas e psíquicas e desfaleceu no momento em que percebeu que tudo estava consumado.
“ É a mãe dele”, dizem os soldados. “Coitada”, murmuram, entre si, os expectadores. Heróica, seria mais próprio o adjetivo que se deveria dar a essa mulher que vemos desfalecida entre os braços de Maria de Betânia e do jovem discípulo. Heróica, dizemos, porque suportou estoicamente a brutal cerimônia de escarmento e flagelação praticada com seu filho e não chorou nem carpiu, como outras mulheres que acompanharam o cortejo, que o fizeram mais por hábito do que por pena do condenado.
Seguiu, junto com o povo, a dolorosa procissão que o levou ao monte da execução; viu quando ele foi cravado no macabro poste. Ouviu, consternada e aflita, quando ele pediu ao Deus, pelo qual fazia aquele sacrifício, para perdoar os algozes que o puseram ali para morrer, porque eles não sabiam o que estavam fazendo. Com ternura, escutou quando ele a recomendou aos cuidados do jovem discípulo amado e lhe pediu que fosse uma mãe também para ele; escutou igualmente, sem entender porque, ele se queixar do abandono em que foi deixado naquela hora. Eli, Eli, Lamma sabachtani, foi o que ele disse, e os expectadores que ali estavam, ao pé da cruz, não entendendo bem o sotaque galileu do condenado, julgaram estar ele clamando por Elias, um antigo e conhecido profeta que viveu há mais de oitocentos anos atrás, mas que segundo se disse mais tarde, voltou a andar pela Judéia algum tempo antes desses fatos na pele daquele já citado anacoreta chamado João, O Batista, a anunciar e preparar a missão que o seu filho deveria cumprir. Estranha e trágica coincidência essa, diga-se, porquanto esse precursor, se assim o era, não teve destino melhor que o do seu filho, pois morreu ele de morte igualmente violenta, degolado pelos soldados de Herodes Antipas numa cela da Fortaleza de Maqueronte, cerca de dois anos antes destes fatos que estamos comentando.
Quanto a Maria Mãe, dizíamos, essa admirável mulher assistiu também, sem nada poder fazer, aos insultos e zombarias que os soldados romanos e os esbirros do Sumo Sacerdote fizeram ao seu indefeso filho. Viu igualmente, com a alma em frangalhos, um dos verdugos molhar os secos e intumescidos lábios dele com uma esponja ensopada com vinagre; acompanhou, minuto a minuto, a sua agonia, desde a hora terça, quando a cruz foi içada, até a hora nona, quando ele exalou o último suspiro.
É no exato momento em que ele rende o seu espírito que a consciência também a abandona. Parece que seu próprio espírito, por um momento, se descola de seu corpo para percorrer com seu filho os primeiros trechos do caminho que ele começa a trilhar no outro mundo.
Uma estranha escuridão toma conta do local no mesmo instante em que as trevas apagam a luz que mantém acesa a sua mente. Ela escuta, na penumbra que a envolve, as vozes das pessoas, assustadas e aflitas com as sombras que começam a cobrir a terra, com os trovões que ribombam, com os relâmpagos que começam a cortar os ares, com o prenúncio da terrível tempestade que se avizinha, embora até a poucos instantes nenhuma nuvem negra tivesse sido vista no céu.
Maria Mãe sabe que delira, mas esse delírio lhe faz bem. Estranhamente seu coração está leve. A dor aguda e insuportável que sentia antes, como por milagre, desapareceu. Uma luz atravessa as trevas e pousa, como um halo dourado, sobre a cruz onde seu filho já não mais se encontra. Pergunta onde terá ido o seu menino, para onde terão levado o seu corpo? Ela viu que morreu, mas sabe que ele não está morto. Ela o vê empunhando o martelo e o formão em sua oficina em Nazaré, a trabalhar a madeira; ela o vê, menino, correndo atrás das cabras e dos carneiros pelos outeiros nas cercanias de Belém; ela o vê em meio à turba que grita o seu nome; ela o vê, em pé, sobre a proa de um barco, no lago da Galiléia, onde os cardumes, como golfinhos a seguir um navio, se juntam para acompanhá-lo; ela o vê, em pé sobre uma colina, a falar para uma grande multidão, que depois do discurso o segue por toda parte em que ele vai; ela o vê a beijar Maria de Magdala nos lábios e fica zangada com ele, pois esse não é o costume do seu povo; mas em seguida ri e se conforma, porque ele está amando, é amado e está feliz; e ela chora porque ele está morto; e depois se alegra também, por- que, em seu coração, sabe que ele está vivo.
A copiosa chuva que cai sobre o monte vem tirá-la do seu delírio. Somente as três mulheres que não saíram do seu lado nestes últimos três dias e o jovem discípulo amado, que daí em diante ela chamará de filho, permanecem com ela no local. A turba que acompanhava o macabro espetáculo, desde a noite anterior quando seu filho fora preso, manietado e conduzido perante os sacerdotes primeiro e diante do prefeito romano depois, após uma breve, penosa e inútil entrevista com Herodes Antipas, havia se dispersado.
De olhos agora abertos, Maria olha para as cruzes, como que a confirmar se delírio ou realidade fora as visões que tivera. Percebe que nenhum halo de luz cai sobre o madeiro onde o corpo do seu filho ainda se encontra dependurado. O fulgor dos relâmpagos ilumina o rosto dele, onde o rigor mortis já se espalha. Fora apenas um sonho, um delírio, uma turbação da sua sofrida e cansada mente. Tudo ainda é horror e escuridão sobre aquele monte que se assemelha a um crânio humano, mas isso já não lhe causa nenhuma dor, nenhuma angústia, nenhum desespero, como antes sentia.
A visão é aterradora e o resultado parece terrível. Mas ela o ouvira claramente dizer, antes de expirar, que tudo estava consumado; e isso havia sido dito com a intenção e a certeza de quem parecia saber muito bem o que estava fazendo, e mais que isso, que o resultado que ele buscava era exatamente esse mesmo.
Coisa estranha, mas isso era o que ela também sentia agora, como se tudo que vivera somente naquele instante fizesse algum sentido. Ela levara muito tempo tentando entender a incompreensível cinestesia que a dominava toda vez que pensava no seu filho e rememorava os sucessos passados. Desde que ele nascera, fruto de uma relação complicada, dificilmente explicável no tempo e no contexto em que vivia, sua mente perseguia uma explicação para aquele sentimento de angústia e esperança que conviviam em seu coração, sem nunca a ter alcançado. Depois, com todos os acontecimentos que permearam sua vida, até chegar naquele fatídico instante, tudo fora obscuro, estranho, incoerente.
Um relâmpago rasga o céu e ilumina as trevas que envolvem a terra. Um prolongado estrondo de trovão ecoa nos ares. As cruzes, firmemente fincadas no solo pedregoso do Gólgota, parecem balançar pela primeira vez. O sangue já coagulado, que brotou das feridas que cobrem o corpo do seu filho, escorre pela madeira e tinge de um rubro pálido as pequenas poças de água que a chuva forma no chão. Depois é levado pela torrente, como tinta sem fixador, que se dissolve com a chuva. Alguém, que parece ser um dos soldados que o cravou ali, se aproxima da cruz e diz: “ verdadeiramente, esse homem deve ser amado pelos deuses, pois nunca vi o céu chorar assim a morte de alguém.”
Ela ouve essa tardia confirmação das suas cismas, vinda de lábios insuspeitos e pela primeira vez, depois de muito tempo, seu coração experimenta uma sensação de paz.
I
O quadro que temos diante dos nossos olhos destaca, em primeiro plano, três homens pendurados em toscas cruzes feitas de troncos de árvore, de cerca de três metros de altura cada uma, duas delas grosseiramente aparadas e firmemente postadas no solo pedregoso de um morro, cuja geografia tem a grotesca aparência de um crânio humano. Esse detalhe, por si só, já constitui uma visão de tal forma impressionante, que nem precisaríamos invocar a utilização que lhe foi dada – praça de execução de condenados – para que se tenha uma idéia de quão macabro e lúgubre é esse local que os romanos escolheram para executar os condenados à morte. Está situado do lado de fora da muralha ocidental da cidade, cerca de cinco ou seis estádios em direção ao norte, o que, em nossas medidas de hoje, significa uma boa pernada de cerca de setecentos e tantos passos adultos por um caminho pedregoso e íngreme, de sorte que os infelizes sentenciados que para lá são levados para morrer acabam chegando ao alto do monte, tão extenuados que mal sentem as dores da cravação na cruz.
Os soldados que montam guarda na torre de vigia da porta chamada Genath – também conhecida como porta de Jafa –, por onde os condenados saem cambaleando, carregando nos ombros lanhados a barra transversal da cruz, acompanhados geralmente por um séqüito de mofadores e carpideiras, assistem ao macabro espetáculo sem sair dos seus postos. Dessa forma, se preciso for, poderão sem muito esforço prestar ajuda aos seus colegas de ofício em caso de necessidade. Esse talvez seja o motivo pelo qual somente uma pequena força armada está presente no local da execução, o que parece ser indício de pouco caso por parte das autoridades em relação a esse evento, sendo esse um tempo de ebulição política e por isso mesmo muito propenso a motins populares, o que, considerando-se o histórico de pelo menos um dos executados, não é possibilidade que se despreze.
Á primeira vista, o que ali se cumpre é mera rotina e nada parece indicar que algo extraordinário esteja se passando naquele local onde todos os dias algum celerado recebe a paga final pelo incomodo que causou à sociedade. Além disso, a facilidade de acudir os companheiros em caso de necessidade talvez seja a razão de vermos apenas dois soldados no fundo, montados em seus cavalos, armados com suas longas pilas, essas lanças próprias dos legionários de cavalaria, enquanto no chão, agachados aos pés das cruzes, cinco outros, que devem ser de infantaria, matam o tempo jogando uma espécie de jogo, que parece ser dados, cujo prêmio, ao que tudo indica, será os despojos dos executados.
É de praxe, e neste caso não se faz diferente, que os condenados entreguem seus últimos pertences a quem os executou, como paga pelo árduo trabalho que estes últimos tiveram. Essa não é tarefa fácil e nem recebe o devido reconhecimento, seja do Estado, a quem provavelmente os condenados ofenderam, seja do povo, que se viu livre dos larápios que o roubava e do agitador que o procurava desencaminhar com idéias novas e diferentes quereres, o que, por si só, já justifica o fato de eles estarem ali pendurados.
Isso quem disse foram os membros do tribunal que os condenou, já que consta dos assentos lavrados pelo escriba que redigiu as peças de acusação e o veredicto final, que dois deles eram ladrões e o outro um pregador itinerante que andou agitando o povo da cidade nos últimos dias. Essa informação é necessária para que não se pense que foi este cronista que a tais juízos chegou por sua própria conta e logo de início atraia para sua crônica o desprezo de quem tudo julga com a precipitação própria dos preconceituosos. Afinal, a opinião já formada a respeito é de assustar. Quem tem juízo tem medo e é bom que tenhamos esses irmãos siameses sempre em guarda como sensores, para impedir que a mão nos acabe trazendo a perdição que a boca já aprendeu a evitar.
Não poucas cabeças andaram rolando no cadafalso por causa de reportagens desse tipo. Muita carne também já queimou literalmente na fogueira por muito menos do que isso, e mesmo nestes dias em que a liberdade de consciência é protegida por lei, a pira da intolerância ainda conserva brasas muito vivas, razão pela qual nenhuma sabedoria demonstra quem abusa demais da língua ou das letras. Assim, a prudência aconselha que sempre se diga de onde veio a informação que está sendo divulgada, o que faremos, na medida do possível, nesta crônica, pois a conseqüência da quebra de um paradigma é peso que uma alma nunca deve carregar sozinha, especialmente quando se pode dividi-lo com alguém mais.
Dito isso, vamos dar por assentado que quem os fez marginais e agitadores, e por conseqüência, réus de morte, como restou decidido e aplicado, foram os anciãos do Conselho judaico. Isso foi fartamente noticiado por quem tudo presenciou e depois reportou aos escribas que primeiro noticiaram esses fatos. Nós estamos apenas dando crédito a essas informações e passando-as adiante da mesma forma que as recebemos. Nada aqui é novo. Apenas a visão que expomos apresenta diferentes nuances e algumas possibilidades não exploradas nas reportagens anteriormente divulgadas. O que, a esta distância no tempo e no espaço, e depois da sólida moldura que foi posta nos fatos em questão, diga-se, já constitui rematada ousadia.
Voltando ao quadro que nos inspira, digamos que a arte de quem posicionou as cruzes na crista do monte mostra que o autor é muito experiente na tarefa de executar essas sentenças. Isso se pode perceber sem muita dificuldade, pois uma vez pendurados os condenados, nenhuma delas arriou com seus pesos. E ali ficaram, e ficarão, por todo o tempo que for necessário, ainda que seja a eternidade – como parece que virá a ser –, a suportar os corpos nelas suspensos. O problema imediato, que deve estar a preocupar as autoridades do país, é que amanhã será o sétimo dia da semana, segundo o calendário judeu, e nessa, em especial, está a se comemorar a maior de suas datas festivas, o Pessach. Essa é a razão pela qual nenhum condenado poderá passar da hora véspera na cruz, pois se assim ocorrer, o Sabbat sagrado será contaminado; e de certo, Jeová, que o instituiu para que todos os filhos de Israel possam descansar dos seus labores, como Ele mesmo descansou depois de ter criado o mundo, não gostará nem um pouco dessa desobediência a um dos seus mais caros preceitos. Assim, bom é que morram logo, para que seus infames corpos sejam imediatamente arriados do madeiro e jogados nas valas comuns que os esperam.
Salvo o indigitado agitador, que foi crucificado no meio dos dois ladrões, pois deste, segundo se diz à boca pequena, um importante figurão do Conselho judaico já requisitou o corpo e destinou para ele uma bonita sepultura num jardim ali por perto. Por que mereceu tal prerrogativa, conferida apenas a pessoas de relativa importância, não é tempo de revelar, mas cuida-se que foi o próprio Pôncio Pilatos, o prefeito nomeado por Roma para governar a Judéia, a Iduméia e a Samaria, que autorizou a remoção do corpo desse condenado, assim que rendesse o espírito. E o tal figurão, que não se vê em primeiro plano nesse quadro que estamos descrevendo, por certo deve ter se postado em algum lugar afastado, para evitar ser visto – como aconselha a prudência –, e ali se conserva, esperando pelo desenlace que não tarda a acontecer. Consumado esse, virá ele com alguns serviçais para descer o corpo da cruz e prepará-lo com os óleos da unção, para depois sepultá-lo conforme manda o costume da terra.
Temos informação, embora não confirmada, que essa providência custou ao referido personagem a sua expulsão dos quadros da seita a qual pertencia, a renomada confraria dos fariseus, pois foi justamente essa Irmandade a responsável pela prisão e condenação desse homem; e como sempre acontece nesses casos, saiu ele pelo mundo a fundar uma nova Ordem, com base na doutrina inaugurada por esse condenado, de quem ele era discípulo e parente muito próximo. Suas atividades como missionário e propagador das idéias pregadas pelo condenado são ainda hoje muito lembradas em terras gaulesas e britânicas, onde, dizem, ele concentrou seu magistério depois da morte do seu líder.
Essa, porém, é outra história, da qual não nos ocuparemos nesta crônica por se tratar de uma saga muito controversa. Por ora, apenas para que não nos seja imputada a leviandade de estar a prometer pães sem ao menos mostrar que já temos a farinha, diremos que esse personagem não arriscaria nome e posição fazendo o que fez, não tivesse ele, de fato, relações de superior interesse com esse condenado. Que o tenha feito por piedade ou respeito, como se deixou entrever nas crônicas oficiais, é coisa difícil de acreditar, pois tais providências custam muito caro nessa terra e mesmo sendo ele homem de fartos cabedais, de certo a elas não se aventuraria não fossem relevantes motivos a movê-lo.
Voltando ao assunto que aqui se cuida, veremos que nas barras verticais das cruzes foram encaixadas, em mal cortadas cavilhas, as traves horizontais. Isso indica terem sido as mesmas feitas às pressas, a golpes de machado ou formão, e não se sabe por que cargas d’água, somente a que está no meio das outras duas parece ter sido cuidadosamente lavrada e aplainada por quem dessa ocupação – lidar com madeiras – tem alguma arte. A coincidência merece o devido registro, porquanto o condenado que dela pende é um carpinteiro que chegou da Galiléia recentemente e acabou sendo preso e condenado à morte pelas autoridades, acusado de atividades subversivas, asseveram uns, ou blasfêmia e ofensa capital contra as leis religiosas do país, dizem outros; o que, de qualquer modo, se considerarmos o contexto no qual as coisas aconteceram, é tudo a mesma coisa.
Seja como for, é bem provável que ambas as assertivas estejam corretas, pois é justamente no alto desta cruz, por cima da cabeça do condenado, que se vê uma tabuleta com uma inscrição, declinando o nome do infeliz e o crime pelo qual ele foi posto nela para morrer. Mandou-a fazer e pregar ali o chefe de prefeitura romano, não tanto para identificá-lo e denunciar o seu crime, mas muito mais para acicatar os anciãos do Conselho judaico, que o pressionaram e acabaram por obrigá-lo a fazer o que não queria, ou seja, condenar esse homem à morte.
Isso é certo, porquanto todos os que escreveram sobre o assunto foram unânimes em informar que ele não encontrou no condenado crime algum que merecesse tal sorte. E passou pela sua cabeça libertá-lo, depois de severo castigo, que seria aplicado somente para contentar os anciãos. E isso foi o que ele fez, esperando que á vista do corpo mutilado, sangrando por todos os poros, a fúria dos anciãos se aplacasse. Mas estes, feitos chacais sedentos de sangue, fizeram tamanho escândalo e proferiram contra ele tantas ameaças, inclusive de denunciá-lo ao Imperador, acusando-o de reconhecer outros reis além dele, que o cuidadoso funcionário, no fim, bastante contrariado, mas nem um pouco convencido, assentiu que o homem fosse crucificado.
Mas não antes de lavar as mãos e dizer aos exaltados cidadãos que exigiam a sua morte que ele estava inocente do sangue daquele homem. Pois que as coisas que ele disse em praça pública, e que tanto incomodou os anciãos do Conselho judaico, em nada ofendia a soberania de Roma.
Isso ele fez e também foi registrado. Certo que tal ato não irá livrá-lo do ódio e do vitupério que contra ele serão assacados pelas próximas gerações de seguidores desse condenado, nem o livrará dos inevitáveis horrores que por ele esperam no mundo do além túmulo. Isso é o que dizem aqueles que acreditam que tudo que fazemos de injusto neste mundo, ainda que compelidos por força maior, como no caso em questão, nos será cobrado nessa outra etapa da vida, que foi criada justamente para purgarmos os erros que cometemos nesta. Há quem diga também que essa idéia nada mais é do que uma curiosa forma de vingança que foi urdida por quem não tinha força nos braços nem poder político para cobrar de outra maneira o agravo feito a sua fé, no caso, os perseguidos seguidores desse condenado, que por mais de trezentos anos tiveram que professar seu credo na clandestinidade. Todavia, ainda que a crítica possa ser procedente, o fato é que há mesmo quem já tenha visto, com todas as tintas da sua imaginação, o constrangido praefectus romano pagando a sua pena no inferno, com centenas de diabos a atormentá-lo, na mesma medida em que ele consentiu que seus soldados fizessem com esse condenado. E para dar foros de testemunho á sua visão, o poeta que a teve transformou-a num magnífico e inspirador poema, que é hoje um dos maiores clássicos da nossa literatura.
Mas quanto ao polêmico procurador romano, justo é reconhecer-lhe essa circunstância; não foi ele quem proferiu contra o dito condenado a sentença de morte. Ele apenas a homologou, já que outra coisa não lhe seria politicamente correto fazer. Política à parte, as iniciais que o lupino prefeito mandou gravar na tabuleta que encima a cabeça do condenado dão conta que ali está cravado um homem que se disse rei dos judeus e pertencia à seita dos nazarenos. Em aramaico, latim e grego, para que a coisa ficasse bem assentada, a inscrição não deixa dúvida sobre a querela que o levou à cruz. Conta-se que ele se deu por rei e santo, o que, por si só, já é uma clara indicação dos motivos de sua condenação. Afinal é sabido que reis, no império que os romanos construíram, quando não morrem na defesa de seus títulos, terminam suas vidas na humilhação do exílio ou no horror do cadafalso. E quanto aos santos, somente ao Deus do país, por sua livre escolha, cabe consagrar.
Na terra dos judeus, política e religião tanto podem elevar um homem aos píncaros da glória quanto fazê-lo baixar aos mais íntimos círculos do inferno. Isso nos faz pensar que bastante fundamento tem a informação que levou a digna autoridade a escrever a dita tabuleta, por que, se rei for o condenado, morre ele por força de injunções políticas; se apenas santo é, morre por conta de questões religiosas, porquanto se sabe que os oráculos da vontade divina são pessoas que já nascem revestidas de especial comenda e são consagradas desde o ventre materno ao serviço do Deus do país. E este condenado, em especial, segundo dizem, arrogou-se no direito de reivindicar filiação direta com a Majestade Divina, o que fazia dele o seu herdeiro universal, em contraste e contradição com as reivindicações do Sumo Sacerdote.
Isso é coisa que os anciãos do Conselho judaico não podiam mesmo tolerar. Sabemos quão ciosos de suas prerrogativas são os senhores que vestem os paramentos sacerdotais e não queremos tirar-lhes as razões, principalmente neste caso, em que a própria lei do país já dispôs, com meridiana clareza, que somente o Sumo Sacerdote pode manter relação direta com o Deus local, não podendo essa comenda ser objeto de delegação em hipótese nenhuma. Esse é um direito milenar, que se observa desde os dias de Moisés, e ainda que os tempos sejam outros, continua sendo regra de estrita observância que deve ser mantida a qualquer custo. Afinal, há em todo ordenamento legal, ou religioso, cláusulas pétreas que não podem ser removidas, sob pena de cancelamento do próprio ordenamento; e no caso dos judeus a hierarquia sacerdotal é a coluna mestra sob a qual se apóia todo o seu edifício religioso e político.
Nada há de estranho nisso, porquanto essa é uma virtude que se observa em toda religião e reflete em qualquer legislação que se apóia nos preceitos legados por um Deus, ao invés das regras deduzidas em razão do convívio social. E nesse caso, como em qualquer outro que envolva questões de autoridade, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Afinal, ainda que seja difícil saber qual é a vontade dos deuses, já que, ordinariamente eles não vêm a terra para nos dizer o que têm em mente, não há mal nenhum em pensar que a vontade divina tudo justifica, pois mesmo nas democracias, onde, por suposto, o desejo do povo justifica a lei, é comum dizer que a voz do povo é a voz de Deus. Isso mostra que, em qualquer caso, não basta a simples lógica do bem estar social para dar suporte ao ordenamento jurídico. Sempre há uma vontade divina na base dos mandos e desmandos que se cometem na vida pública e tudo fica mais justificável quando se pode dizer que é Deus quem quer que assim seja.
Destarte, nenhuma crítica se pode fazer aos bons senhores que ostentam essa investidura, seja ela concedida por unilateral escolha de quem tem autoridade para fazê-la, no caso, o próprio Deus, ou por mérito de conquista, o que às vezes acontece; ou ainda por usurpação – que geralmente é o caso –, mas não é isso que importa discutir aqui, já que este não é o objetivo da nossa crônica. De qualquer forma, fica aqui o registro, para que não se pense que são apenas os sacerdotes judeus que se arrogam nesse direito e de repente se passe a tê-los em mau conceito. Bastante difamados já foram depois que os fatos que aqui se cuida aconteceram. Não precisam agora que se lhes lancem mais culpas sobre os ombros, embora neste caso eles mesmos tenham assumido plena responsabilidade pela condenação desse homem ao afirmar ao prefeito romano que seria de somenos importância que a responsabilidade pela sua morte lhes fosse imputada. Essa é notícia confirmada por todos quantos já escreveram sobre esses fatos e o registro que aqui se faz só corrobora tais informações: “ caia o seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos”, disseram eles, e nenhum vaticínio foi tão acertado quanto esse, pois até hoje ele está sendo cumprido.
As outras duas cruzes (de onde pendem dois corpos que importância nenhuma parece ter no quadro, já que nenhuma inscrição dá conta de quem sejam, nem que crimes cometeram) são toscos troncos de árvores, aos quais foram encaixadas, de forma bem descuidada, as barras horizontais. E estas, parecem que ali foram postas somente para acomodar os braços dos condenados, um dos quais, o que está à direita, não se sabe por que forças ou direitos de moribundo, descansa a cabeça sobre a trave horizontal da cruz como estivesse se acomodando em um travesseiro e ali se quedasse no melhor dos sonos. Imagem que lhe cai bem, diga-se, já que o sono que experimenta, o da morte, é o que existe de mais completo entre os descansos que a tarefa de viver nos proporciona. O outro, à esquerda, aparenta estar contemplado da mesma sorte, porquanto sua postura é de quem também está dormindo sobre a trave vertical, com a cabeça descansando sobre o ombro direito e o braço esquerdo esticado sobre a trave horizontal; posição que indica que este também se despediu das humanas lidas sem mais resistências do que reclamar, quem sabe, da sorte madrasta que o levou a terminar a vida daquela forma tão degradante. Mais tarde alguém viria a recensear-lhes os nomes e Dimas, ou Dumachus, disseram que se chamava o condenado crucificado à direita e Titus o da esquerda. Isso não nos custa acreditar, ainda que esses nomes não tenham sido registrados em nenhuma ata de tribunal, nem tenham sido marcados nas cruzes, como foi feito com o condenado pregado na cruz do meio, sobre suas cabeças, os seus nomes e os crimes pelos quais eles foram supliciados. Registre-se ainda o fato de ostentarem nomes latinos dois condenados que são, obviamente, judeus, mas neste, como em todo o caso, existem contradições incontornáveis que não devem ser demasiadamente expostas para não comprometer o objetivo da informação. Se não o fez quem primeiro a registrou, não o faremos também nós, que estamos apenas repassando-a.
Descontando essas incongruências (que não são da lavra deste cronista, mas de quem, muito antes dele fez uso por demais licencioso da imaginação, ou então possuía informações que ninguém mais compartilhava), demos por certo que são eles, o bom e o mau ladrão, que ali estão suspensos. Essas também são informações que foram recuperadas muito tempo depois que esses fatos ocorreram, pois naquele momento ninguém se deu ao trabalho de indagar nomes e profissão dos tais condenados, providência essa que certamente foi considerada de nenhum interesse para a História e que também pouco colaboraria para enriquecer a jurisprudência forense. Assim, mesmo que se quisesse hoje encetar uma pesquisa a esse respeito ela estaria fadada ao fracasso por falta de registros confiáveis. Agora, pessoas de má conduta devem realmente ser, porque passados tantos séculos desde que esses fatos ocorreram, ninguém, até hoje, se dignou a tentar lavar-lhes a honra, como já aconteceu com tantos injustiçados da justiça, que às vezes têm a sorte de encontrar um tardio advogado, com habilidades de historiador, para redimir-lhes a memória. Fica-se, portanto, com a informação de que morrem como ladrões esses dois condenados; e cuida-se que suas sentenças não tenham sido contestadas de nenhuma forma, como aconteceu com o condenado da cruz do meio que, segundo se conta, teve alguns defensores no tribunal que o condenou, embora a maioria dos repórteres que andaram escrevendo sobre o fato tenha silenciado sobre esse detalhe. Mas sendo esse julgamento processado perante um magistrado latino, forçoso é que algum advogado dativo, ainda que somente para dar foros de legalidade à sentença ali proferida, tivesse sido nomeado para defendê-lo.
Agora, sabemos que sentenças dessa ordem, quando são proferidas, não contra quem pratica crimes comuns, mas contra quem comete delitos de opinião, são sempre contraditórias. Ainda que na morte se venham a equiparar uns e outros, cuidam os vivos de fazer distinções entre eles; e se acontece de ocorrer viradas, dessas que fazem com que os executores se tornem candidatos à execução, aquele que morreu como criminoso pode muito bem passar a ser visto como herói. Tais são as vicissitudes dessa arte chamada Política. Quem a cultiva deve cercar-se dos devidos cuidados e ficar preparado para essas inversões de papéis.
Como se chegou à constatação de que eram ladrões os condenados da direita e esquerda, também é informação já perdida. O fato é que é dessa notícia ficou a crença de que o indivíduo da esquerda era tão mau, que nem com o bafo da morte a esquentar-lhe a nuca se arrependeu da vida torta que levou; e o da direita, pelo menos nessa hora extrema, conta-se que demonstrou ser capaz de algum remorso. Tanto que se arrependeu dos crimes que praticou e reconheceu a qualificação atribuída ao condenado do meio. Não sabemos se a que lhe imputaram os romanos, de rei dos judeus, ou a de que o acusaram os anciãos do Conselho, de reivindicar a condição de filho legítimo e direto do Deus do país. Mas o fato é que isso lhe valeu um bilhete de entrada no paraíso para aquela mesma tarde, logo depois que entregasse o turvo espírito. Isso também é verdade, porque não foram poucos os que ouviram a promessa que o carpinteiro agitador lhe fez, de que o citado ladrão, nessa mesma tarde, estaria com ele nesse balneário de delícias que foi criado especialmente para premiar com uma eterna vida de prazeres as almas que fazem bem o seu trabalho na terra, e também aquelas que a tempo se arrependem de seus pecados, como no caso desse bom ladrão. Descontada a possível injustiça que poderia estar embutida nesse último critério de julgamento – já que ele equipara os sempre virtuosos com aqueles que chegam á ultima hora à senda da virtude –, demos por certo que tal diálogo tenha realmente se passado, ainda que seja difícil acreditar que alguém, no estertor da agonia, pudesse ainda estar a cuidar de tais sutilezas.
Com exceção das palmas das mãos e dos dorsos dos pés, por onde lhes foram enfiados rombudos cravos para prendê-los no madeiro, em outras partes do corpo não sangram esses dois e nem aparentam ter sofrido a tradicional mutilação que se aplica aos condenados dessa sorte, que é o flagelo com vara ou flagus, esse chicote feito de tiras de couro com bolinhas de aço nas pontas, que tanto estrago causa nas carnes dos desgraçados submetidos a esse suplício. Essa é razão pela qual os dois infelizes, parece, irão demorar muito para morrer. Daí por que, entediado com o mofino trabalho, que é diário e já não lhe causa a menor excitação, o centurião que comandava a operação mandou que as pernas lhes fossem esmigalhadas com um martelo para que a morte sobreviesse com mais rapidez. Geralmente é o que acontece quando o peso do corpo desaba sobre as pernas quebradas do condenado. Sem poder sustentar a moribunda carcaça, o pobre diabo fica impedido de respirar e a morte vai consumindo a vida dele com a presteza que uma hiena faminta devora a sua presa. Por isso lá estão os dois corpos, arriados como tendas das quais se cortaram as cordas, e a postura que apresentam nesse momento extremo não é coisa bonita de se ver.
Já ao condenado do meio não foi preciso aplicar tal expediente, o que faz supor que rendeu seu espírito mais cedo do que se esperava. Assim, escapou ele de mais essa mutilação, que numa primeira análise pode até parecer cruel, mas do ponto de vista de quem a aplica não deixa de ser um ato de piedade, praticado no cumprimento de um dever legal. É que essa medida, além de abreviar o sofrimento do condenado, também atende aos sábios preceitos prescritos pela lei da terra, que proíbem que uma carcaça fique exposta de um dia para o outro, principalmente numa época, que segundo já se disse, é de festa.
Aliás, não são poucos os que defendem a utilidade dessa medida, que além de atender a humanos reclamos de dignidade, evitando a exposição prolongada da miséria humana, ainda serve a profiláticos cuidados sanitários. Isso, para os judeus, mais do que para qualquer outro povo, é assunto de especial relevância, porquanto nessas questões de profilaxia e vigilância sanitária são eles os pioneiros entre os povos da terra. De muito longe no tempo já as praticam, e não é a toa que fazem parte do seu ordenamento legal medidas dessa ordem e outras, que se referem de forma especial aos defuntos, proibindo de forma taxativa que eles permaneçam entre os vivos mais que o tempo necessário para as devidas exéquias. Assim, a sociedade dos judeus, que já tem suas salvaguardas contra os leprosos, os sarnentos, os portadores de doenças sexuais e outras imundícies detestáveis, também se previne contra o espírito que já não tem uma carne para hospedá-lo, pois que, depois de liberto do corpo, sabe-se lá o que se torna essa etérea parte da nossa substância.
Mas deixemos de lado os dois ladrões, porquanto é o homem que foi pregado na cruz do centro que deve merecer a nossa atenção. Se não fosse pelo detalhe do madeiro em que ele está cravado, de lavra profissional, como já foi dito, como a distingui-lo dos outros dois que estão pendurados à sua direita e esquerda, é de considerar que a sua postura se apresenta diversamente oposta à deles. Não se mostra retorcido e abandonado como os dois que pendem ao seu lado, mas conserva o esqueleto ereto e firme, como se o seu corpo, mesmo depois de morto, não tivesse perdido o viço que nos faz parecer, de acordo com a visão de um renomado filósofo, um caniço pensante.
Claro que esse detalhe pode ser explicado pelo fato de não lhe terem quebrado as pernas, como foi feito com os outros, mas por razões outras, menos anatômicas e mais transcendentes, queremos acreditar que essa postura esteja sendo mantida. Somente a sua cabeça pende para a frente, caída sobre o ombro direito, enquanto os braços, esticados em forma de Vê, parecem querer se amoldar à cruz em que foi posto para morrer. Praticamente desnudo, como os seus companheiros de infortúnio, apenas uma sumária tanga lhe cobre as vergonhas, detalhe que acreditamos nós, deve ser acrescentado para atender a humanos reclamos de pudor, pois de sobejo se sabe que os condenados dessa sorte sobem ao madeiro para sair da vida da mesma forma que nela entraram, ou seja, completamente nus.
Diferentemente dos dois outros, entretanto, este mostra marcas de muitas mutilações, o que se percebe claramente nas costas lanhadas a azorrague e no nariz quebrado a punhadas, além das inúmeras equimoses que se observa no rosto e no resto do corpo, a mostrar que foi castigado de todas as formas que a crueldade humana foi capaz de inventar até aquele momento. O pobre homem é uma ferida só, uma massa quase informe de carne sangrenta, e ainda por cima tem um dos flancos perfurado por lança. Essa incisão provavelmente lhe foi feita em razão da decepção do legionário incumbido de quebrar-lhes as pernas, o qual se viu privado desse prazer ao ver que o condenado já estava praticamente morto e daí sapecou-lhe mais essa mutilação por conta da outra que a morte lhe havia roubado. Nada há de estranho nisso porquanto se sabe que os romanos não dão ponto sem nó e odeiam perder viagem. Se já encontram a ovelha tosquiada quando a capturam, cuidam eles de fazer com ela um bom assado para não sair sem lucro. Essa praticidade é que fez deles os senhores do mundo e eles sabem que no dia em que a perderem, o seu império começará a ruir.
Na cabeça pendida do condenado pouca coisa se pode ver do que já foi um humano rosto, já que este, além do nariz quebrado, ainda mostra lábios e olhos de tal forma intumescidos, por conta das tantas pancadas que levou e talvez também em conseqüência das inúmeras quedas que sofreu no trajeto entre o tribunal e o alto desse monte. Nela se pode ver que foi posta uma espécie de tiara, feita de cipó espinhoso, tecida a guisa de coroa. Veio-lhe ela de certo por conta da mofa dos soldados romanos, que estes, cujos espíritos ainda estão na pré-civilidade, não perdem oportunidade para uma boa chacota, especialmente quando se trata de espicaçar um yaudi. Destarte, foi somente para zombar dos judeus, a quem conferem tanto desprezo, de tal forma que só se poderia admitir mesmo um rei como aquele, que os soldados puseram-lhe sobre as costas um manto escarlate e aquela coroa de espinhos e depois saíram com ele em picaresco cortejo pelas ruas da cidade, a zombar, a cuspir e a bater no mofino candidato a soberano. A improvisada coroa feriu-lhe a testa e o couro cabeludo de tal forma, que a cabeça assim coroada parece um lagar fendido em vários pontos, por onde filetes de um rubro vinho vertem. O sangue, escorrido e coagulado pelas faces, como borrões de tinta jogados a esmo sobre as negras barbas do condenado, confere à caput mortuum do infeliz uma visão aterradora e fascinante ao mesmo tempo, de tal modo que as pessoas que assistem à execução não conseguem dela afastar os olhares, horrorizados alguns, hipnotizados outros.
II
Coisa interessante de se ver nos três condenados é a expressão do rosto deles. Enquanto os crucificados da direita e da esquerda parecem que dormem, pois que a morte lhes foi definitiva, acabando com todas as suas dores, o condenado do centro ainda conserva no rosto massacrado uma expressão de dor tão grande que, dir-se-ia, nele a morte não completou seu trabalho, levando-lhe as dores junto com a vida. Como se as primeiras pudessem sobreviver numa carne que já não hospeda a última, elas ali estão, como que a provar que muita razão tem quem acredita que entre o céu e a terra há muita coisa mais do que pode supor a nossa vã sabedoria.
Descontando a falta de originalidade da frase, o que se quer aqui dizer é que o morto, ainda que morto, parece reter na última expressão todas as angústias do mundo – não fossem elas menores do que aquelas que lhe foram infligidas nas últimas horas – ; e o seu rosto, já dito que de todo descomposto em suas feições, é uma máscara de agonia e sofrimento que não arrefeceu nem deixou de compungir-se até mesmo depois que o espírito abandonou-lhe o corpo e privou os nervos das cinestesias próprias dos seres vivos. Considerando-se o desenrolar futuro da história desse condenado, esse é um detalhe não pouco relevante, que ninguém deveria desprezar.
Agora, falando em detalhes, é preciso que se considere outro, não menos importante, neste quadro que contemplamos. Trata-se da platéia que assiste ao macabro espetáculo. É composta, em primeiro plano, por quatro mulheres e um rapaz, este de compleições tão finas, que se fosse dito que mulher é também, ninguém ousaria contestar. No entanto, olhando-se mais de perto, vê-se que é um rapazola, em seus quinze ou dezesseis anos, que os cabelos encaracolados e compridos, emoldurando a face jovem e quase feminil, e o fato de estar ali, como única presença masculina em meio a uma maioria feminina, faz com que, em princípio, se pense ser também ele uma mulher.
Desfeita essa primeira impressão, no entanto, recupera-se a informação correta e podemos ver que se trata, realmente, de um menino. E tal, por todas as evidências possíveis e comprováveis, só pode ser aquele discípulo amado, único dos doze que parece ter estado presente nas horas mais amargas e difíceis pelas quais ele passou, especialmente na sua última noite.
Não fosse essa uma informação assaz inoportuna, que pode provocar especulações indevidas e até maldosas, poder-se-ia dizer também que esse garoto é o mesmo que na noite anterior, quando o condenado foi preso no Horto de Getsêmani, deitou a correr nu, pelo jardim, depois que um soldado betusiano puxou-lhe o lençol no qual se envolvia. O que fazia ele vestido nessas condições, ou desvestido, melhor se poderia dizer, é assunto que poderia suscitar muita especulação. E também por que se registrou tal fato é coisa que ainda causa muita celeuma, já que ele parece estar despregado de todo contexto e nenhuma relação guarda com qualquer objetivo, estratégia ou compromisso que alguém pudesse ter assumido em relação á vida e obra desse condenado. Destarte, se a história desse homem não constituísse um verdadeiro repertório de enigmas e significados ocultos a revelar, uma ocorrência desse tipo sequer mereceria uma citação; mas se pelo um cronista a registrou é porque alguma relevância deve ter, senão não se gastaria papel e tinta com ela, ainda que fosse apenas para excitar a imaginação dos leitores. Dito isso, registremo-la nós também, porque essa é uma das poucas referências que faremos em relação a esse moço, que segundo uma tradição firmada a partir de uma fala atribuída ao condenado, ainda estaria vivendo entre nós, e neste mundo ficará até que ele volte – não se sabe quando nem de onde – para recolher os frutos da sua missão. Eis aí uma esfinge que conserva o seu segredo até os dias de hoje e quem conseguir dar a ela uma resposta condigna, certamente se elevará às alturas daquele Édipo que igual charada um dia decifrou.
Enigmas á parte – que a vida desse condenado já os possui em demasia –, as outras figuras que aparecem em primeiro plano, sem nenhuma dúvida, são mulheres. Mais não fosse pelos formatos dos rostos e pela roupa que vestem, os contornos femininos nelas se notam perfeitamente. E das que se apresentam em perfil, nestas se pode perceber as salientes elevações que tanto atraem os olhares masculinos para seus corpetes.
A primeira delas, bem em frente ao condenado da direita, na visão de quem olha o quadro de frente, tem a expressão de quem perdeu alguém muito querido, mas malgrado a tristeza que parece sentir, dá-nos a impressão de estar conformada. Talvez esteja pensando que a vida continua e tudo que ficará da magnífica aventura espiritual vivida com aquele homem será uma crença que irá acompanhá-la pelo resto do tempo que lhe cabe viver. Essa crença lhe servirá de suporte para tudo que vier a fazer e pensar daí em diante. E ela, que compartilhou e ajudou com seu envolvimento espiritual e ajuda material esse empreendimento que não termina agora, com a morte do seu protagonista principal, mas começa com ela, sabe que onde essa história for contada, seu nome será também lembrado, e essa será a sua recompensa.
Talvez não seja mais do que isso o que almeja essa Joana – pois esse é o seu nome –, mulher de fartos cabedais e cabeça muito bem feita, esposa de um procurador do rei Herodes. Essa informação sobre a identidade e a qualificação dela nos leva a desconfiar que o condenado não tinha, realmente, como deu a entender o praefectus Pilatos, qualquer intenção hostil contra as autoridades constituídas e foram mesmo os enciumados anciãos do Conselho judaico, por motivos particulares e temores coletivos, que perpetraram a sua condenação.
De qualquer modo, para Joana, o dinheiro que despendeu nesse projeto, ajudando a sustentar com as suas posses o homem que acabou de render o seu espírito na cruz, foi bem empregado. Não teria ela feito melhor investimento se o tivesse gasto com um professor de filosofia, desses que os abastados cidadãos do império gostam de contratar para preceptores dos filhos e conselheiros próprios, pois o que ouviu da boca do condenado será a sabedoria que encantará as próximas gerações e feliz dela que a ouviu de primeira mão. E para que tal informação não venha a criar nenhum constrangimento aos que se derem ao trabalho de ler esta crônica, é preciso que se diga que essa prática – de mulher ajudar com suas posses um homem que faz trabalho semelhante ao desse condenado – era coisa muito natural nos tempos dos quais se fala. Isso não é este cronista que sustenta, mas um dos quatro que tiveram seus relatos avaliados como confiáveis. Há, portanto, que se dar crédito á essa informação, já que a sua reportagem (dizem) foi uma das quatro que saíram voando sozinhas do meio de uma pilha de um milhar ou mais, quando os doutores da Igreja que se formou em seu nome, reunidos em Nicéia, trezentos e tantos anos depois para avaliar o que era real e o que era fantasia em relação à história desse condenado, estavam fazendo a seleção dos textos. Disse esse cronista (que era doutor, e foi dos primeiros a fazer um relato acerca da experiência singular desse homem), que muitas mulheres o seguiam e o serviam, e isso, não raras vezes, acabou sendo motivo de escândalo até entre os seus próprios discípulos, pois tal comportamento não era de uso comum entre eles.
Mas quanto à questão em si, não é de se espantar. Afinal de contas, professor ele era, e lícito é também que suas aulas dessa forma se pagassem, já que digno é o operário do seu salário. Isso foi o próprio quem disse. E ele, mais que ninguém, deu provas da maior decência nessa questão, pois não quis viver como aqueles indignos kions, discípulos daquele Diógenes de Tiana, que receberam a alcunha de cínicos porque desdenhavam das pessoas que se preocupavam com os bens da terra, mas viviam das esmolas que elas lhes davam, como se umas e outras não saíssem do mesmo tesouro.
Conhecemos a hipocrisia daqueles cínicos, que semelhantes aos fariseus e saduceus que o condenaram, pregavam uma coisa e faziam outra; mas quanto a esse homem que pende da cruz, dessa falta não pode ser acusado. Segundo aqueles que o conheceram e com ele andaram em sua peripatética vida missionária, esse condenado era um sujeito simples e folgazão, que bebia e comia com todos que se propusessem a dividir com ele a mesa, sem fazer distinção de classe, sexo ou fortuna. Da sua comensalidade participavam gentios, prostitutas, publicanos, pecadores de todo tipo e padrão, e muito por isso também, atraiu ele o ódio dos bem nascidos da terra, estirpe altiva e orgulhosa de suas ancestralidades – que assim chamamos para não dizer preconceitos – que evita, a todo custo, qualquer interação com a gentalha desclassificada, como se esta fosse toda constituída de leprosos e não apenas de pobres excluídos que eles mesmos ajudaram a fabricar.
E como aquele Sócrates que bebeu cicuta e renunciou à vida para não ter que contradizer a si mesmo, ele também nada recebia pelas lições que ministrava, salvo os estipêndios que espontaneamente lhe davam os seus ouvintes. E morreu tão pobre quanto o filósofo grego, que ele certamente conhecia, pois não é possível que duas experiências tão semelhantes aconteçam apenas no terreno das coincidências.
Entretanto, como informação nunca é demais, diga-se que esse carpinteiro, que se tornou um rabi dos bons, recebia as contribuições que a ele e a seus discípulos eram dadas por quem as quisesse dar, como pagamento pelas preciosas lições de vida que ele lhes proporcionava. E quem as comprava não tinha nenhum constrangimento de dizer que bem valiam o preço que pagavam. Dessa maneira viveu ele durante todo o tempo do seu ministério; e assim também os que deram seguimento á sua missão.
E dessa forma continuam vivendo ainda hoje os que dizem seguir pela mesma senda. Certo é que essa se tornou profissão das mais rentáveis, mas que não se lhe impute mais esse agravo, pois ele foi muito claro em suas lições a esse respeito, e se alguém as desvirtuou a culpa não lhe cabe. “Não queirais possuir nem ouro ou prata, nem tragais dinheiro em vossas cintas; não leveis alforjes nem duas túnicas, nem bordão; ficai na casa de quem é digno, dando de graça o que de graça eles vos derem”, disse ele aos seus seguidores. Lição de desapego mais clara do que essa, de ninguém se pode exigir.
Segundo se noticiou também, foi muito por causa das aulas que deu que ele está ali pendurado. Mas deixemos de lado essas informações, por enquanto, para que a nossa atenção não se desvie do quadro que estamos descrevendo. Registremos, no entanto, apenas por uma questão de justiça, que da mesma forma que encômios se devem ao inventor de geniais aparatos, ou ao criador de grandes obras de espírito, é justo também que se reconheça a importância dos que as financiam, porquanto sem esse profano, mas necessário suporte, não há gênio nem santo que obre de tal sorte. Façamos, destarte, a essa Joana, esposa de Cuza, o procurador de Herodes em Cafarnaum, e aos demais mecenas que o suportaram em sua obra, essa justiça. E que ela fique aos pés da cruz sem mais referências, porquanto isso é tudo que ela espera, embora muito mais que isso certamente mereça essa mulher. Pois ela seguiu o homem que acaba de expirar, por todo o tempo em que ele realizou a sua missão e não o abandonou, como fizeram aqueles que se diziam seus discípulos e lhe juraram fidelidade até a morte, mas nas primeiras dificuldades que surgiram se dispersaram como um bando de covardes, havendo até quem negasse que o conhecia.
Diga-se, a bem da verdade, que mais tarde se arrependeram e recuperaram a coragem perdida nessa hora, dando continuidade á sua missão – alguns deles até morrendo de morte igual á do seu líder –, mas nesse momento nada se pode dizer que os abone. Eles fugiram e o abandonaram á própria sorte. Isso é que está reportado por todos quantos escreveram sobre esse assunto e nós aqui só estamos corroborando esse fato.
Em frente à piedosa Joana podemos ver uma jovem sustentando o corpo de uma mulher desfalecida. Essa, que se apresenta com a cabeça descoberta, mostrando os louros cabelos enrolados e presos no alto da cabeça é Maria de Betânia, jovem donzela das cercanias de Jerusalém, irmã de Marta e Lázaro, pessoas que faziam parte do círculo de amizades do condenado.
Na casa deles passou os derradeiros dias da sua vida e conta-se que foi com esse mesmo Lázaro que ele praticou a maior de suas façanhas. Dizem que esse era um amigo a quem ele muito amava, o que damos por acertado, porquanto, como veremos, havia laços muitos fortes a ligá-los. Lázaro havia morrido de morte natural e ele o resgatou para o mundo dos vivos, quatro dias após o mesmo ter sido encerrado em seu túmulo. Considerando a tradição mantida pelos judeus com relação aos defuntos, é possível imaginar a comoção que esse condenado deve ter provocado nos seus conterrâneos com esse ato. Pois se até o simples toque em um cadáver já era considerado ato impuro, imagine-se o que pensar de quem levanta do túmulo um corpo que para lá já havia sido despachado com todas as formalidades exigidas pela tradição. Certo que há quem sustente que esse foi um ato puramente ritual, ou de mera simbologia iniciática, semelhante aos que os praticantes dos Antigos Mistérios costumavam fazer no exercício das suas misteriosas liturgias, ou seja, uma ressurreição simbólica, em nível de espírito, aplicável a quem morre para uma vida anterior e renasce para outra, como será prometido com muita ênfase pelos seguidores desse condenado aos que adotarem a doutrina que ele andou pregando pela terra.
E muitos há que simplesmente negam que tal acontecimento tenha realmente se passado. Alegam ser muito estranho que apenas um dos cronistas tidos como sérios o tenha registrado, e os outros que mereceram igual distinção sequer o tivessem mencionado, dada a importância de um prodígio dessa ordem. A objeção merece a devida consideração, mas desse condenado, em especial, nada que se diga pode ser desprezado e tudo que se possa dizer jamais será bastante. Assim, se ele podia mesmo ressuscitar os mortos, essa é uma dessas questões cujo entendimento jamais poderá ser dado como pacificado. Aqui cabe o velho ditado, que foi criado justamente para evitar a proliferação dessas especulações inoportunas, que diz: para quem não acredita nessas coisas nenhuma explicação é possível; para quem acredita nenhuma explicação se faz necessária.
Mas dessa Maria de Betânia, o que ninguém ainda contou é que essa bonita moça amou, com amor de mulher, amiga e irmã, o homem crucificado no meio dos dois outros; só não teve a felicidade de consumar seu amor, porquanto o destino – ou quem quer que o controle – assim não quis que acontecesse. Entretanto, para quem quiser saber, diremos á boca pequena ( por que esta é informação que pouca gente possui ), que houve um tempo, na vida desse sentenciado, que ela foi sua noiva prometida e certamente com ele teria se casado não fossem os acontecimentos que sobrevieram. Eles fizeram com que ele se afastasse dela, mas de forma alguma essa separação afetou o amor que ela sentia por ele. Só a guisa de informação, para que não se precise voltar a esse assunto depois, reportamos que aos vinte e cinco anos, quando o condenado obteve sua licença de rabino, ele precisava casar-se para assumir um posto em uma sinagoga qualquer como professor ou ministro. Essa era a lei do país – que seus pastores fossem casados –, e a ela não podiam se furtar aqueles que almejassem tais empregos públicos, por sinal os mais prestigiados e rendosos numa terra onde a religião e a lei se fundem numa única autoridade. Maria de Betânia, então com tenros dezesseis anos, foi a noiva escolhida, mas por razões que agora não vêm ao caso, o condenado preferiu renunciar à concorrida carreira de rabino para tornar-se um professor itinerante, desses que andam pela terra dos judeus ensinando o que pensam ser a vontade do Deus local. Isso não é fato incomum, pois desde tempos já perdidos na memória essa tradição se cumpre entre os judeus. Sempre que as coisas não andam bem na sua sociedade, alguém há que se levante como oráculo para lembrar aos rebeldes descendentes do patriarca Abraão as suas obrigações para com a Divindade que os escolheu para ser o seu povo preferido. E dizem que ninguém, melhor que ele, deu conta dessa tarefa inglória de alertar os desgarrados filhos de Israel para voltarem para o aprisco do seu pastor antes que a tempestade fosse desencadeada. Sucesso não teve nessa missão em particular, mas não sendo essa a sua missão principal, não há que se lhe imputar nenhum agravo por conta disso, por que resultado muito mais importante do que esse ele obteve em sua obra.
Quanto à Maria de Betânia, muito sofreu ela com essa decisão, mas, ao final, compreendeu que havia coisas maiores a serem atendidas. E que o seu amado precisava obedecer a um chamado, cuja voz falava mais alto do que aquela que saia do seu coração. E assim ele se foi. Por mais de cinco anos ela não o viu, embora ouvisse falar que ele esteve vivendo alguns anos como discípulo de um pregador conhecido como “João, o Batista,” anacoreta irascível e mordaz crítico das licenciosidades que o povo de Israel havia adotado, por conta de tantos anos de interação com estrangeiros. E que depois abandonara o círculo do Batista e montara escola própria, percorrendo a Galiléia e arredores, ensinando uma doutrina nova e fazendo prodígios de espantar quem os presenciava.
Foi assim que ela perdeu seu casamento e seu amor de homem. O casamento, ela o perdeu para a missão que ele se propôs cumprir; o amor perdeu-o para outra mulher, mas segundo se sabe, Maria de Betânia nunca deixou de amá-lo por uma coisa ou por outra, como seria de esperar se o seu fosse um amor qualquer e ela uma mulher comum. Preterida como esposa, tornou-se sua discípula, como tantas outras mulheres que o seguiam. Ao amor romântico somou a veneração da discípula pelo mestre, da irmã pelo irmão, da amiga pelo amigo, e assim pode-se dizer que se houve alguém que um dia experimentou todos os tipos de amor – que enfim é o verdadeiro Amor –, essa criatura foi a jovem donzela de Betânia.
Destarte, a preterição não lhe fez nascer a mágoa nem o ciúme. Isso é tão verdadeiro, que quando ele voltou a Jerusalém para dar cumprimento final à sua missão foi na casa dela e de seus irmãos que preferiu ficar, enquanto os preparativos para o desenlace final da sua estratégia eram feitos. Sintomático e revelador é esse comportamento, porquanto muitos outros discípulos e correligionários o condenado tinha em Jerusalém, bem mais ricos e importantes que a família dessa moça, mas o coração tem as suas razões, e estas, nos momentos de extrema sensibilidade é que norteiam as nossas ações. Disso sabemos por que seus passos na cidade santuário, nesses últimos dias, foram melhores reportados do que toda a sua vida anterior. Se das coisas que fez e disse não se encontra concordância entre os repórteres oficiais, dessas suas aventuras em Jerusalém, nessa semana consagrada ao Pessach, todos eles praticamente escreveram as mesmas coisas, o que nos dá uma indiscutível confirmação de fontes para sustentar a veracidade dessas informações.
Com o que hoje temos à mão é possível entender por que ele preferiu ficar hospedado na casa de Maria, Marta e Lázaro, na fatídica semana que antecedeu sua entrada triunfal em Jerusalém, quando poderia ter se homiziado entre os seus próprios parentes e amigos, cujos haveres e patentes eram bem mais fartos e importantes do que os dos seus amigos de Betânia. Mas não o fez, e dessa forma se explicam muitas coisas que estavam pendentes nessa história.
Nesse quadro que estamos descrevendo, Maria de Betânia parece estar a dividir com uma mulher desfalecida uma dor sem remissão. Seu olhar é de quem vê a esperança de consumar um grande amor se esvair sem a mínima chance de realização. Sabemos que dor maior não existe do que a certeza da perda irrecuperável; e a desesperança que acompanha quem a sofre, na certeza de que nada poderá substituir o que foi perdido, é um tormento que nem a mais estóica das criaturas consegue esconder. Talvez por isso a jovem tenha desviado o olhar da cruz e procure ocupar-se com a mulher desfalecida, quem sabe buscando no amparo ao próximo o consolo prometido no conhecido adágio que diz que o coração não sente o que os olhos não vêem. Nas crônicas que se escreverão mais tarde sobre a vida desse homem, cuja morte todas elas chorarão, essa jovem de cabelos louros e delicadas feições será citada apenas como aquela que escolheu a melhor parte. E essa parte será entendida aqui como a que cabe à discípula que se apaixonou pelo seu mestre e carregará pela vida inteira um amor que sabe jamais passará de contemplação e êxtase, mas que nunca deixará de ser verdadeiro amor, ainda que apenas no espírito receba as compensações que na carne lhe foram negadas.
No caso desta moça, sabemos, no entanto, que esse sentimento representa muito mais, e se não exploramos com maior profundidade essa informação é pelo respeito que temos para com a sua dor. Por isso, mesmo tardio, justo reconhecimento lhe faremos se reportarmos que ela se manteve fiel até a morte a esse amor, e nenhum outro homem jamais lhe veio disputar o coração com a lembrança do condenado. Adiantando-nos um pouco nos fatos, para que não precisemos voltar a eles em outros momentos desta crônica, informaremos que ela, Lázaro e Marta, seu irmão e irmã, respectivamente, deixaram a aldeia de Betânia. Isso ocorreu logo após a alvissareira notícia – que depois de três dias se apregoou por toda Jerusalém e adjacências – de que aquele condenado que pendia na cruz, morto, estava, na verdade, bem vivo. E isso, dizem, ela e as outras mulheres que estavam com ela naquele momento crucial viram com os próprios olhos e testemunharam a quem as quisesse ouvir. Certo é que os anciãos do Conselho judaico logo se puseram a campo para desmentir a bizarra notícia, mas o fato é que não tiveram nenhum sucesso nessa empreitada e a coisa tomou um vulto que nenhum deles jamais teria previsto. E esse foi o começo de tudo.
Mas essa também é outra história que um dia poderá ser contada com mais pormenores. E quando o for certamente contribuirá para aclarar muitos fatos, cujos contornos ainda não puderam ser definidos até agora em razão dos interesses que se desenvolveram em volta desse evento. Fiquemos, por enquanto, com a imagem dessa moça que, segundo se conta, foi uma das primeiras a vê-lo com vida depois de morto. Nunca mais se falou dela nem de seus irmãos depois disso, conquanto uma crônica, apócrifa, diga-se de passagem, escrita muito tempo depois desse fato, afirmasse que as autoridades judias, furibundas com a história da ressurreição desse condenado, despacharam de vez para o mundo dos mortos o seu irmão Lázaro, com a justificativa de que ele estava vivendo uma vida ilegítima, uma vez que a sua alma havia sido resgatada dos porões da morte por via obliqua, através de uma reencarnação não muito ortodoxa. Decerto que os mortos podem reencarnar, segundo se admite nas crenças dos judeus, mas não com o mesmo corpo, como ele fez com Lázaro; e aceitar uma possibilidade dessas seria uma quebra de padrão que os defensores da teoria da reencarnação jamais poderiam admitir, a não ser que o propalado fim do mundo, com o conseqüente julgamento dos vivos e mortos, como pregava João Batista, já estivesse à porta. Pois se dizia, através desse nervoso e ascético profeta essênio, que no último dia do mundo os mortos de todos os tempos e lugares se levantariam de seus túmulos, portando seus próprios corpos e consciências, como réus em um tribunal, para ouvir as sentenças a que cada um faz jus. Mas enquanto isso não ocorre, nossas almas ficarão pulando de corpo em corpo, vezes sem conta, até que esse julgamento seja marcado. E nesse ínterim, entre uma reencarnação e outra, teremos a chance de pagar os nossos pecados e conquistar um lugar no paraíso.
A reencarnação é o único meio segundo o qual se admite que um morto possa voltar a viver, segundo a crença dos judeus. Não o morto, propriamente dito, mas a sua alma. Fora desse encaminhamento, que é o único permitido pela lei que regula essa controvertida matéria, ressuscitar um defunto constitui uma usurpação pura e simples dos poderes de Jeová, a quem compete gerir esse processo. Assim, depois de matarem devidamente o ex-defunto e se certificarem de que ele estava realmente bem morto, os anciãos expulsaram do país as duas irmãs, acusando-as de fazer parte de uma seita maldita que havia roubado o corpo do carpinteiro e depois espalhado a infame notícia da sua ressurreição. Para onde foram ninguém registrou nem se fez recenseamento posterior, de sorte que essa informação também está perdida até os dias de hoje. Dizem que elas, depois de passarem por várias cidades do Império, dando testemunho das maravilhas que presenciaram, desembarcaram nas ilhas britânicas e fizeram lá um belo trabalho de evangelização. Depois acabaram terminando suas vidas em terras lusitanas, onde até hoje seus nomes são muito venerados.
Essas também são informações cuja veracidade não se pode mais confirmar, o que não impede, no entanto, que mais uma vênia se faça à meiga donzela de Betânia antes de encerrar o seu papel nesse drama. Registre-se que ela foi protagonista da mais bela e terna cena de amor, e talvez a mais tocante de todas quantas forem evocadas pelos séculos sem fim em que a história desse condenado for contada. Pois foi essa meiga donzela que lavou com suas lágrimas e enxugou com seus loiros cabelos aqueles pés que agora pendem, dilacerados, da cruz. Isso ocorreu em uma das últimas noites em que ele passou em sua casa, em Betânia, após um dos mais belos e significativos discursos que ele fez a um grupo de ouvintes que lá se reuniu para a sua palestra. Dizem até que Marta, a irmã dela, ficou tremendamente enciumada e reclamou com ele pelo fato de Maria ficar aos seus pés enquanto ela era obrigada a fazer as tarefas mais pesadas, que consistia em servir a mesa e cuidar para que os presentes tivessem o devido conforto. “ Não se aborreça com sua irmã,” disse ele à Marta, “pois Maria escolheu a melhor parte”. Com isso quis dizer que o serviço que sua ex-noiva lhe prestava, cuidando dele e ouvindo suas lições, era muito mais importante do que qualquer outro cuidado naquele momento.
Pode alguém imaginar cena mais bonita e marcante do que essa, que foi protagonizada por Maria de Betânia? Ainda que, mais tarde, algum mal informado cronista tenha dito que esse ato foi praticado por uma não identificada pecadora, que apareceu subitamente no local em que ele dava a sua palestra, afiançamos que tal cena, na verdade, pertence à ela e a nenhuma outra mulher, pois ninguém, a não ser, talvez, aquela a quem ele efetivamente amou como a mulher da sua vida, poderia ter assumido esse papel. Essa é a glória que a jovem donzela de Betânia levará para sempre e ninguém poderá tirar dela.
III
Á direita, para quem olha esse quadro de frente, outra mulher pode ser vista apertando contra os seios quase desnudos o manto inconsútil que o condenado usou até ser despido e cravado na cruz. Bela figura é a dessa mulher! Tão importante na vida desse homem foi ela, que até hoje se discute qual o verdadeiro papel que desempenhou nela. A ser verdade o que agora se anda dizendo a respeito da relação deles, então toda a história do drama que nesse quadro se representa precisaria ser reescrita.
De qualquer modo, se oficialmente dela não se falou mais após a morte dele foi por causa do ciúme e da inveja que os seguidores do condenado tinham dessa mulher. Afinal, misógenos todos, como eram os discípulos desse homem, não há nada de estranho no fato de eles terem procurado afastar da vida dele e da herança que ele deixou as mulheres que fizeram parte da sua extraordinária experiência. Entretanto, uma verdade eles não conseguiram esconder nem refutar: foram elas que o acompanharam até o seu último momento entre os vivos e também o saudaram no primeiro instante da sua propalada epifania.
Tão verdadeiro é o fato que as mulheres lhe foram mais fiéis, que podemos ver nesse quadro a prova definitiva dessa assertiva: além do jovem já citado, nenhum outro discípulo masculino está presente nos momentos finais da sua agonia. Isso porque, desde a noite anterior, quando ele foi preso e levado perante as autoridades, eles estão escondidos, como coelhos assustados, enquanto elas não saíram do seu lado um momento sequer, nem demonstraram qualquer receio de vir a sofrer da mesma sorte que o atingiu.
Deixemos para a sensibilidade do leitor o julgamento do que isso significa e voltemos à figura dessa extraordinária mulher que se apresenta em postura tão ousada, em momento e lugar tão incomum. Que não está vestida para o decoro e a gravidade que a cena exige é fácil perceber. Estranho mesmo é que ela se apresente assim em um momento tão crucial. Sua figura contrasta violentamente com as das outras mulheres ali representadas e parece mesmo pertencer a outro tempo. Cabeça descoberta, com os cabelos longos e negros a cair, revoltos, sobre os ombros, como uma cascata rebelde e sem freios que se precipita de alturas insondáveis, os fartos seios, quase desnudos, a saltar do corpete, e as coxas cujas formas se percebem nas dobras do vestido vaporoso, ela parece uma ousada e desafiadora presença, em local tão impróprio e em hora mais desusada, a lançar um mudo repto ao ambiente que a cerca. Ou, se quisermos ir mais longe nessa visão, diríamos que sua atitude é um marco que divide eras e anuncia mudanças no curso da História. Se a postura dela diante da cruz quer dar-nos recados outros, além do despudor que lhe atribuíram os antigos cronistas, ela certamente conseguiu, pois o que vemos nela não é a tristeza e a desesperança de uma pessoa que assiste a maior aventura da sua vida terminar em desgraça, mas a sobranceria de uma vitória conquistada, vitória essa que não transparece na representação visual que nos é posta para exame, mas pode ser percebida na serenidade do rosto que ela ostenta, pois se resume na consecução de um objetivo. Por isso sua postura, diríamos, assemelha-se à de um guerreiro vencedor, com os pés sobre um inimigo vencido, como nas antigas pinturas murais que no Egito e Babilônia se faziam para registrar para a posteridade as vitórias obtidas pelos seus grandes reis.
E talvez não seja sem razão que ela foi assim representada, porquanto dela, aqueles que não tiverem compromisso com mentiras e dogmas de indiscutível parcialidade, dirão que é exatamente isso que ela foi: uma guerreira, que abraçou as doutrinas heterodoxas desse condenado e realmente as compreendeu, ao contrário de muitos que se disseram seus verdadeiros discípulos, mas, por ignorância ou comprometimento com antigas idéias e tradições, a deturparam.
O nome dela também é Maria, como a lourinha da esquerda, já nomeada e reconhecida como sendo a de Betânia, mas esta, por ter nascido na aldeia galiléia de Magdala, ficou conhecida como Magdalena. Mais tarde, alguém viria a recensear-lhe o verdadeiro nome e Mariamne ficamos sabendo que se chamava, e que foi ela uma das mais aguerridas e eficientes propagadoras da doutrina inaugurada por esse condenado.
É morena, como de ordinário são as mulheres nascidas nas terras galiléias. Bonita também deve ser, e de corpo muito bem feito, porquanto os olhos lúgubres dos soldados, dirigidos ora para os seios redondos e fartos, que parecem querer saltar do ousado decote, ora para o contorno das bem torneadas coxas, cujas formas sobressaem-se nas dobras do vestido, não deixam dúvidas sobre o que estão dizendo uns aos outros. “Essa é a mulher do condenado que se disse rei dos judeus. Olhem como é bela. De certo vai precisar de muito consolo.”
Houve quem dissesse que ele a encontrou em condições assaz dramáticas, em pleno julgamento que dela faziam em praça pública por um delito de adultério. O que de certo é também uma deslavada calúnia, porquanto ela nunca foi casada antes e mesmo que fosse uma profissional do amor – circunstância que também nunca se provou –, não se poderia a ela imputar um crime que só é passível de ser cometido por quem é casado ou deve fidelidade a alguém a quem se ligou por livre vontade. A verdade, nunca aceita e reconhecida por quem desse condenado esperava e queria mais do que ele se propôs a ser, é que ela foi a companheira que ele escolheu, entre as muitas mulheres que o acompanhavam e o serviam em sua missão. E amor maior, entre homem e mulher, poucas vezes se viu. Tanto que se disse que ele a amava mais que aos seus discípulos e a beijava na boca muitas vezes, para escândalo deles, que tais posturas tinham como gentias e pecaminosas.
Desta que, mais ousada que as outras, parece estar sofrendo um sofrimento diferente, não nos ocuparemos além do necessário. A ela ainda cabe um largo desempenho na continuação da história desse condenado, que não acaba, como já se disse, na sua morte, mas começa de verdade a partir dela. Sua participação na história da vida e na obra desse homem é tão rica, que ela mesma mereceria ser a personagem principal em qualquer romance que se quisesse escrever a respeito. Como não é o escopo da nossa crônica a reportagem dos feitos dessa extraordinária mulher, diremos apenas para informação a quem interessar possa, que foi a ela que o condenado entregou o verdadeiro legado da sua herança, representado por um entendimento novo das verdades mais antigas do mundo. Esse legado, não só por conta do direito positivo lhe caberia, sendo ela sua legítima consorte, mas também em razão do mérito conquistado como discípula, embora – como em todas as sucessões em que muitos são os herdeiros presuntivos – lhe fossem negados tais direitos na partilha que se fez depois que ele partiu em definitivo para tomar posse do reino que conquistou pelo mérito que adquiriu no cumprimento da sua missão: um reino no coração e no espírito das pessoas.
Mas como o tempo é o senhor da razão, deixaremos a seu cargo fazer justiça a essa valorosa mulher, e o nosso desejo é que um dia ela seja recomposta nos quinhões que lhe foram usurpados. A nós, simples cronista de imaginárias relações, a quem não foi atribuída competência para julgar tais questões, só cabe lamentar que a misoginia de uma geração tenha escamoteado a verdade dos fatos, atribuindo-lhe mesmo uma injusta fama de prostituta, profissão que lhe foi dada por alguns cronistas, ou de endemoninhada, roupagem que lhe foi cozida por outros, sem que se dissesse de que fonte proveio essas informações, embora com o que foi dito acima possamos já inferir de onde teriam partido tais calúnias. Ainda bem que para salvaguarda dos direitos que lhe cabe, pelo menos um cronista – que de perto afirmou ter visto todas essas coisas e convivido com os personagens em questão – registrou de próprio punho que esta Maria de Magdala, que abraça o manto do homem crucificado na cruz do meio como se estivesse abraçando a ele próprio, foi sua leal e fiel companheira, que o amou com o amor de esposa e amante; e que ele também a amava, ainda mais do que aos seus próprios discípulos, os quais, por isso mesmo, tinham tanto ciúmes dela que a difamaram o quanto puderam e depois a relegaram a um conveniente ostracismo.
Dito isso, para que se recupere a verdade dos fatos, iremos deixá-la também ao pé da cruz, registrando apenas que ela não chora porque o sentimento que faz verter a lágrima pressupõe a existência de um coração trabalhando com a plena carga dos seus humores, e o dela acabou de perder a sua mais importante função com a morte do seu amado. Dir-se-á mais tarde ( mas esta é informação que não afiançamos como verdadeira, pois que as provas, se existiam, também foram destruídas ou bem ocultadas por quem temia a sua revelação ), que o coração dessa mulher foi recompensado com outro coração, esse o de um menino, ou menina, pois nesse particular não há concordância de informação, que já nesse momento de extrema angústia e tristeza ela leva no ventre. Talvez por isso ela não chore. Antes, o seu olhar parece ser de enlevamento e ternura; e quem tiver a capacidade de enxergar além da mera imagem que lhe é posta diante dos olhos poderá vislumbrar, na mística expressão da sua face, um simulacro daquele sorriso matreiro que sempre se nota no rosto de quem parece encobrir um explosivo segredo. Quando os espíritos despirem as armaduras dos seus dogmas, e a verdadeira história desse drama puder ser revelada, então a realidade dos fatos será também recuperada. Nesse dia, poderemos ver que há muito mais beleza e novidade na doutrina desse condenado do que as que foram divulgadas por aqueles que dela se apoderam e a transformaram num obscuro conjunto de postulados, desenvolvidos somente para defesa dos seus próprios interesses.
A última das mulheres que aparece nesse quadro é a senhora que está desmaiada aos pés da cruz. Sustentada por Maria de Betânia e pelo jovem discípulo amado, sua aparência é de quem já esgotou todas as reservas físicas e psíquicas e desfaleceu no momento em que percebeu que tudo estava consumado.
“ É a mãe dele”, dizem os soldados. “Coitada”, murmuram, entre si, os expectadores. Heróica, seria mais próprio o adjetivo que se deveria dar a essa mulher que vemos desfalecida entre os braços de Maria de Betânia e do jovem discípulo. Heróica, dizemos, porque suportou estoicamente a brutal cerimônia de escarmento e flagelação praticada com seu filho e não chorou nem carpiu, como outras mulheres que acompanharam o cortejo, que o fizeram mais por hábito do que por pena do condenado.
Seguiu, junto com o povo, a dolorosa procissão que o levou ao monte da execução; viu quando ele foi cravado no macabro poste. Ouviu, consternada e aflita, quando ele pediu ao Deus, pelo qual fazia aquele sacrifício, para perdoar os algozes que o puseram ali para morrer, porque eles não sabiam o que estavam fazendo. Com ternura, escutou quando ele a recomendou aos cuidados do jovem discípulo amado e lhe pediu que fosse uma mãe também para ele; escutou igualmente, sem entender porque, ele se queixar do abandono em que foi deixado naquela hora. Eli, Eli, Lamma sabachtani, foi o que ele disse, e os expectadores que ali estavam, ao pé da cruz, não entendendo bem o sotaque galileu do condenado, julgaram estar ele clamando por Elias, um antigo e conhecido profeta que viveu há mais de oitocentos anos atrás, mas que segundo se disse mais tarde, voltou a andar pela Judéia algum tempo antes desses fatos na pele daquele já citado anacoreta chamado João, O Batista, a anunciar e preparar a missão que o seu filho deveria cumprir. Estranha e trágica coincidência essa, diga-se, porquanto esse precursor, se assim o era, não teve destino melhor que o do seu filho, pois morreu ele de morte igualmente violenta, degolado pelos soldados de Herodes Antipas numa cela da Fortaleza de Maqueronte, cerca de dois anos antes destes fatos que estamos comentando.
Quanto a Maria Mãe, dizíamos, essa admirável mulher assistiu também, sem nada poder fazer, aos insultos e zombarias que os soldados romanos e os esbirros do Sumo Sacerdote fizeram ao seu indefeso filho. Viu igualmente, com a alma em frangalhos, um dos verdugos molhar os secos e intumescidos lábios dele com uma esponja ensopada com vinagre; acompanhou, minuto a minuto, a sua agonia, desde a hora terça, quando a cruz foi içada, até a hora nona, quando ele exalou o último suspiro.
É no exato momento em que ele rende o seu espírito que a consciência também a abandona. Parece que seu próprio espírito, por um momento, se descola de seu corpo para percorrer com seu filho os primeiros trechos do caminho que ele começa a trilhar no outro mundo.
Uma estranha escuridão toma conta do local no mesmo instante em que as trevas apagam a luz que mantém acesa a sua mente. Ela escuta, na penumbra que a envolve, as vozes das pessoas, assustadas e aflitas com as sombras que começam a cobrir a terra, com os trovões que ribombam, com os relâmpagos que começam a cortar os ares, com o prenúncio da terrível tempestade que se avizinha, embora até a poucos instantes nenhuma nuvem negra tivesse sido vista no céu.
Maria Mãe sabe que delira, mas esse delírio lhe faz bem. Estranhamente seu coração está leve. A dor aguda e insuportável que sentia antes, como por milagre, desapareceu. Uma luz atravessa as trevas e pousa, como um halo dourado, sobre a cruz onde seu filho já não mais se encontra. Pergunta onde terá ido o seu menino, para onde terão levado o seu corpo? Ela viu que morreu, mas sabe que ele não está morto. Ela o vê empunhando o martelo e o formão em sua oficina em Nazaré, a trabalhar a madeira; ela o vê, menino, correndo atrás das cabras e dos carneiros pelos outeiros nas cercanias de Belém; ela o vê em meio à turba que grita o seu nome; ela o vê, em pé, sobre a proa de um barco, no lago da Galiléia, onde os cardumes, como golfinhos a seguir um navio, se juntam para acompanhá-lo; ela o vê, em pé sobre uma colina, a falar para uma grande multidão, que depois do discurso o segue por toda parte em que ele vai; ela o vê a beijar Maria de Magdala nos lábios e fica zangada com ele, pois esse não é o costume do seu povo; mas em seguida ri e se conforma, porque ele está amando, é amado e está feliz; e ela chora porque ele está morto; e depois se alegra também, por- que, em seu coração, sabe que ele está vivo.
A copiosa chuva que cai sobre o monte vem tirá-la do seu delírio. Somente as três mulheres que não saíram do seu lado nestes últimos três dias e o jovem discípulo amado, que daí em diante ela chamará de filho, permanecem com ela no local. A turba que acompanhava o macabro espetáculo, desde a noite anterior quando seu filho fora preso, manietado e conduzido perante os sacerdotes primeiro e diante do prefeito romano depois, após uma breve, penosa e inútil entrevista com Herodes Antipas, havia se dispersado.
De olhos agora abertos, Maria olha para as cruzes, como que a confirmar se delírio ou realidade fora as visões que tivera. Percebe que nenhum halo de luz cai sobre o madeiro onde o corpo do seu filho ainda se encontra dependurado. O fulgor dos relâmpagos ilumina o rosto dele, onde o rigor mortis já se espalha. Fora apenas um sonho, um delírio, uma turbação da sua sofrida e cansada mente. Tudo ainda é horror e escuridão sobre aquele monte que se assemelha a um crânio humano, mas isso já não lhe causa nenhuma dor, nenhuma angústia, nenhum desespero, como antes sentia.
A visão é aterradora e o resultado parece terrível. Mas ela o ouvira claramente dizer, antes de expirar, que tudo estava consumado; e isso havia sido dito com a intenção e a certeza de quem parecia saber muito bem o que estava fazendo, e mais que isso, que o resultado que ele buscava era exatamente esse mesmo.
Coisa estranha, mas isso era o que ela também sentia agora, como se tudo que vivera somente naquele instante fizesse algum sentido. Ela levara muito tempo tentando entender a incompreensível cinestesia que a dominava toda vez que pensava no seu filho e rememorava os sucessos passados. Desde que ele nascera, fruto de uma relação complicada, dificilmente explicável no tempo e no contexto em que vivia, sua mente perseguia uma explicação para aquele sentimento de angústia e esperança que conviviam em seu coração, sem nunca a ter alcançado. Depois, com todos os acontecimentos que permearam sua vida, até chegar naquele fatídico instante, tudo fora obscuro, estranho, incoerente.
Um relâmpago rasga o céu e ilumina as trevas que envolvem a terra. Um prolongado estrondo de trovão ecoa nos ares. As cruzes, firmemente fincadas no solo pedregoso do Gólgota, parecem balançar pela primeira vez. O sangue já coagulado, que brotou das feridas que cobrem o corpo do seu filho, escorre pela madeira e tinge de um rubro pálido as pequenas poças de água que a chuva forma no chão. Depois é levado pela torrente, como tinta sem fixador, que se dissolve com a chuva. Alguém, que parece ser um dos soldados que o cravou ali, se aproxima da cruz e diz: “ verdadeiramente, esse homem deve ser amado pelos deuses, pois nunca vi o céu chorar assim a morte de alguém.”
Ela ouve essa tardia confirmação das suas cismas, vinda de lábios insuspeitos e pela primeira vez, depois de muito tempo, seu coração experimenta uma sensação de paz.