O piano fantasma
Ricardo é um magnânimo professor universitário aposentado. Apesar de sua idade meio avançada, ele gosta de deliciar-se compondo e tocando suas músicas ao velho e amigo piano da fazenda dos pais já falecidos. Casou-se duas vezes, mas vieram as duas separações e nenhum dos dois casamentos teve filhos. Por incrível que pareça, as duas descasadas morreram depois de um ano após as separações. Um pouco deprimido, retornou para a fazenda dos pais e jamais voltou à Capital. Ia somente para resolver questões burocráticas no departamento pessoal da universidade onde lecionava.
A fazenda era muito feia. Muito matagal a cercava e pouco se via o quintal. Uma casa muito antiga, mas preservada e tombada pelo patrimônio cultural da cidade, a fazia um cartão postal. No município, todos comentavam sobre o velho casarão e alguns diziam que lá era muito estranho. As janelas ficavam sempre fechadas e pouco se via o que estava dentro da casa. Somente os dois empregados da casa, um caseiro e uma faxineira, eram as pessoas que conheciam completamente aquele lugar. Diziam eles que até mesmo as moscas e mosquitos tinham medo daquele lugar.
Ricardo tocava a vida como podia. Escolheu um quarto, perto da sala, e lá se acomodou. Em uma cama de solteiro, com roupas limpas e cobertas chinesas, ele passava a noite. Nas quatro paredes do quarto grande, ele montou as prateleiras e colocou todos os livros que possuía. Eram muitos. Várias coleções, obras importadas, jornais antigos, coleções modernas, livros de sua própria autoria, enfim uma biblioteca de dar inveja a quem ali passasse. Uma escrivaninha antiga, mas adaptada para a era moderna e vários pontos de locais de internet. Antena de aparelho celular, telefone via satélite, enfim um apetrecho de aparelhos modernos para a vida que ele levava ali. Vivia sozinho e de vez em quando as duas irmãs vinham passar alguns dias ali. Ele não gostava muito, mas a fazenda pertencia à família e sempre ele tinha que suportar a presença dos cunhados, sobrinhos, sobrinhas e também os convidados trazidos por eles. Para ele, era um grande dilema, pois não conseguia ler as obras, estudar e fazer suas composições musicais.
Era tempo de festas na cidade e, como sempre, vieram dois ônibus de pessoas convidadas pelas irmãs para as festividades. Era a maior decepção para Ricardo. Lá se iam o precioso sossego, a privacidade e outras mordomias.
Além de ser muito inteligente, sábio, escritor, músico, místico e maçom, Ricardo não gostava de cortar o cabelo e nem fazer a barba. Sempre que o viam, raramente, ele estava de cabelos grandes e barbas enormes. Usava óculos, calças sociais, camisas de manga curta e não calçava sapatos. Sempre estava com sandálias e não gostava de calças jeans. Vivia mito fechado e saia pela manhã para caminhar, tomar leite no curral, almoçar e fazer um pequeno passeio em volta da fazenda, após o jantar.
No dia esperado, chegaram os convidados e muita algazarra foi feita na fazenda. Como sempre, Ricardo somente deu as caras após o jantar. Caminhando em torno da fazenda, após o jantar, ele pode encontrar com alguns convidados e foi muito enfático dizendo que eles faziam muito barulho e que poderia acordar os espíritos dos antigos moradores dali, já falecidos. Seria muito inconveniente perturbar aquelas pobres almas que ali passaram os últimos dias da vida terrestre. Elas poderiam voltar e dariam um basta naquela algazarra toda.
Com o jeito que Ricardo falou, alguns não acreditaram naquelas palavras, mas, em algum caso, outras pessoas ficaram atentas naquelas palavras e os corpos arrepiaram. Uma casa feia, no lugar mais feio ainda, tombada pelo patrimônio cultural, assustava.
Dois dias se passaram e nada de Ricardo aparecer para conversar com os hóspedes. Ficava trancado no quarto e pedia que os empregados levassem as refeições para seu quarto.
No quinto dia, formou-se uma grande tempestade. Raios, trovões, muito barulho e faltou energia na casa. O silêncio foi total, mas alguns nem perceberam e o piano começou a tocar lindas melodias. Ficaram todos no verdadeiro silêncio e no escuro, o piano tocava sozinho e tocou por um bom período. Quando a energia elétrica deu sinal de retorno, simplesmente o piano não tocou mais. Estava totalmente silencioso, como se ninguém nunca ali estivesse e totalmente tampado, até mesmo com algumas teias de aranha.
Quando amanheceu, as irmãs foram queixar com Ricardo sobre o toque do piano. Ricardo, porém, não deu a mínima importância pela reclamação e simplesmente disse que duas ou três vezes por semana, o piano tocava sozinho, sem ter ninguém para tocá-lo. Ele mesmo disse que não sabia tocar piano e somente compunha as músicas em um violão velho.
Nos dias subsequentes, por volta da meia noite até a uma hora da manhã, belas canções eram tocadas naquele piano velho, fazendo com que os visitantes tremessem de medo e se acalmassem na orgia das noites.
Ricardo, sempre pela manhã, dizia que os antigos moradores não gostavam de ser perturbados e da próxima vez iriam fazer uma visita a todos.
Chegou o dia da partida dos visitantes e sempre o piano tocava sozinho toda a noite.