DELÍRIO REAL
Para o que realmente ocorreu, entretanto, é absolutamente impossível que algum
ser humano pudesse estar preparado.
Edgar Allan Poe, Os Fatos do Caso do Sr.Valdemar
Havia dois homens conversando no quarto, um, era langoroso e o outro, era
doutor.
"Olá doutor, mandei chamá-lo", disse o lânguido, "acontece que não sei se pode ajudar-me. Pode ser que o melhor seja recomendar um psiquiatra. Sim, acho que estou alucinado."
"Aparentemente parece muito bem.", respondeu o médico.
"Pareço? Mas estou tendo delírios. Não sei o que há comigo, as recordações da ditadura estão mais vivas, parece que estou a viver novamente as torturas. Quando acordo exausto dos pesadelos todas as noites e vou ao banheiro lavar meu rosto e olho-me no espelho, vejo fitando-me fixamente, um homem semelhante a um dos mais respeitados do Destacamento de Operações e Informações — Centro de Operações de Defesa Interna. Sim, é aquele pernicioso coronel."
"Mas, porque após tanto tempo essas recordações e pesadelos lhe
atacaram?", retrucou o doutor.
"Ora, como posso saber? Por isso mandei chamá-lo. O senhor é que deve julgar, dizer-me."
"Vejamos… Realmente acorda? Os delírios, às vezes, não passam de sonhos."
"Doutor, eu não estou louco, não totalmente. Sim, eu realmente acordo. Isso tem acontecido dessa forma, digo de forma mais vívida, há alguns dias. Não sei o porquê. Algumas vezes encarei aquele ser, aquela criatura horrenda por trás da farda militar. O semblante com o passar dos segundos entrava em processo de desconfiguração e terminava por assumir feição cadavérica, era possível ver o crânio de cor alva. Seu olhar intenso hipnotizava-me e em seguida sentia uma tontura e ficava rapidamente mergulhado em estado febril."
"Hum! essa coisa que costuma ver no espelho diz algo?"
"Em todas essas décadas eu nunca estive livre… todos os dias recordo em pesadelo aquele tambor de gasolina cheio d'água, o banho chinês. É assustador. Pareço um velho caduco, eu sei, porém, não sou. Essa assombração nada diz, só me atormenta."
"Belmiro, sua descrição sobre essa coisa estranha que diz ser o coronel Jânio Borba é incompreensível para mim. Desculpa."
Belmiro tentou levantar-se da cama, sentou-se novamente e falou:
"Aquele torturador ruinoso, até hoje carrega o sangue e as almas de dezenas de pessoas. Deve estar no inferno, lá é o lugar dele."
"Ele já morreu há décadas. Portanto, não consigo compreender essa situação."
Belmiro levantou-se e andou de um lado para o outro no quarto, sempre sob o olhar atento do médico. De ímpeto, dirigiu-se a este com voz alta:
"E o que acha? Acha que estou mentindo, que estou louco?"
O doutor levantou-se e tentou acalmá-lo e, sem perder a delicadeza, disse:
"Desculpa. Não posso diagnosticá-lo previamente. Pode ser amanhã. Faça-me um favor, descanse e retire o espelho do banheiro e de toda e qualquer parte da casa que você costuma usar. Vou ficar durante toda a noite aqui. Pode me chamar, pois estarei a sua disposição. Amanhã trataremos disso, indicarei o psiquiatra como pediu, meu amigo. "
"Obrigado, Ledo."
"Se vir, ouvir, sentir qualquer coisa, chame por mim."
Bem acomodado numa poltrona, o doutor ficou atento caso Belmiro o chamasse. Começou a mergulhar em pensamentos sem relevância, vez ou outra levantava-se e ia ao encontro do quarto do paciente, abria a porta e via-o deitado, parecia dormir tranquilamente. E em seguida voltava a sentar-se. O cansaço é um inimigo muito forte e quase sempre nos vence. Quando acordou olhou para o relógio que marcava mais de meia-noite. Resolveu evitar cair novamente em sono, apanhou um livro que estava na estante empoeirada e leu o título. Eram as Ponderações, de Lúcio Qorpo-Santo. Abriu de modo casual e começou a ler.
"Ainda que Deus, o Todo-Poderoso Deus, tenha ordenado que toda carne tenha espírito, do mesmo modo que o espírito tem a carne, quero dizer o poder da carne. Porque embora tenha se apartado dela e viva como algo à parte, como muitos eventos sobrenaturais têm comprovado, o espírito tem o poder da carne e…"
O doutor Ledo teve a leitura interrompida por uma batida tão rápida quanto um tiro e em seguida o barulho de algo pesado caindo violentamente ao chão. Ele então jogou o livro em cima da poltrona e correu em direção ao quarto de Belmiro. As tentativas de abrir a porta foram em vão, estava trancada. Tomou impulso e bateu-lhe com o ombro com tanta força que a porta cedeu. Mas ele não pôde acreditar de antemão no que viu. No chão, junto à cama em desarranjo, com vestes de dormir, jazia Belmiro, à morte. O médico elevou a cabeça do agonizante, observou sua boca ensopada de sangue e alguns dentes ao lado e no peito uma nódoa de sangue que tingia toda a blusa e o chão.
"Devia ter pensado nessa possibilidade.", pensou, crendo tratar-se de suicídio.
Quando o cadáver foi examinado pela perícia forense, notou-se que seus dentes haviam sido arrancados e que havia um orifício no peito e que só podia ter sido causado por um projétil do tipo ponta oca. Só que não havia armas na casa, a cena do crime apontava para suicídio, pois não encontraram nenhum indício que comprovasse assassinato, entretanto, no peito do cadáver não tinha nenhum resquício de pólvora ou projétil.