Os “Obreiros de Salomão”
Mestre Everard de Evreux havia sido capturado pelos soldados do rei dois dias depois do assalto ao Templo. Ao saber da prisão dos seus irmãos de Ordem, ficara em sua mansarda, próxima à Porta do Templo, aguardando por esse desfecho, pois sabia que de nada adiantaria fugir de Paris.
Naquele exato momento, em que ele era atado às cadeias de uma cela no castelo do Templo, uma caçada implacável estava sendo desencadeada em todas as cidades da França e não havia praticamente lugar algum onde pudesse se homiziar. Os senescais de Filipe haviam colocado agentes em todo o território francês, com a missão de capturar toda e qualquer pessoa ligada, de algum modo, à Ordem do Templo. Não importava que relação tivesse, se de filiação, mera contratação, ou simples vassalagem. Em princípio todos eram templários. Todos deviam ser presos. Alguma seleção, se fosse preciso, poderia ser feita depois.
Mestre Everard era iniciado. Fazia parte do grupo eclesiástico do Templo, servindo primeiro como cônego, ou seja, um irmão não combatente, que executava ofícios religiosos para a Ordem. Um grande número de irmãos templários serviam à Ordem nessa con-dição. Haviam os irmãos padres, que rezavam as missas, propor-cionavam confissões, realizavam ofícios fúnebres, executavam as obras piedosas nas quais as Ordem se envolvia, e havia também irmãos que prestavam assistência jurídica e contábil, cuidando das diversas operações comerciais e econômicas na quais a Ordem se especializara desde que se tornara uma corporação multinacional, detentora de um grande império econômico e titular de importantes rotas comerciais, que causavam inveja até às poderosas repúblicas hanseáticas.
Mestre Everard, além de religioso, havia se especializado na arte dos adeptos, como era conhecida a alquimia. Aprendera com grandes mestres do Egito e do Oriente, os fundamentos dessa estranha ciência que se propunha, através da atividade espiritual orientada e do trabalho paciente das mãos, a penetrar na intimidade da natureza para desvendar os seus segredos. Ha mais de trinta anos fora iniciado na Ordem do Templo e por mais de quarenta praticava a alquimia. Sabia que a Igreja, embora com desconfiança e reserva, tolerava, em alguns casos, a prática alquímica. E que alguns príncipes da Igreja, mais por cobiça e concupiscência, pois a alquimia prometia riqueza e longa vida para aquele que conseguisse realizar a Grande Obra, também praticavam pessoalmente essa arte ou finaciavam pesquisadores que trabalhavam para eles. De fato, a maioria dos alquimistas que ele conhecia eram monges, ou estavam, de alguma forma, ligados à Igreja, e se nenhum deles, tanto quanto ele sabia, tinham obtido sucesso em suas lidas, pelo menos abasteciam a Igreja com produtos que rendiam às suas paróquias bons cabedais. Os mosteiros eram grandes produtores de cerveja, vinho, unguentos, medicamentos e outros produtos que as hansas ̶ as guildas dos mercadores ̶ ligadas ao Templo distribuiam por todos os reinos da Cristandade e Ultramar.
Todavia, não era muito pacífica a relação entre a Igreja e os alqui-mistas. Não poucos eram os membros da Igreja que consideravam a alquimia como uma arte perigosa e maléfica para o espírito das pes-soas e elevavam-na ao nível de feitiçaria ou bruxaria. Não raro um alquimista era condenado pela Santa Inquisição e levado à fogueira por conta de suas práticas.
A razão dessa desconfiança de parte da Igreja era a estreita re-
lação que existia entre a alquimia e a estranha ciência praticada pelos judeus, conhecida como Cabala. A Cabala era uma doutrina muito estimada na Provença, principalmente na região conhecida como Languedoc, onde havia uma representativa colônia de judeus. E como nessa região ainda era muito sensível a lembrança da Heresia Albigense, sempre que se falava em Cabala, logo vinha a lembrança da questão cátara.
E nesse sentido tudo se ligava: Catarismo, Cabala, Alquimia. Em muitos casos partilhando os mesmos símbolos, a alquimia tornou-se a arte do monge por excelência, tanto que era expressa pela frase latina “ora et labora”. Orar e trabalhar, daí surgindo a expressão “laboratório” para designar o local onde o alquimista executava a sua prática.
Mestre Everard, sentado no chão da cela, passou a mão pela longa barba bifurcada que lhe caia quase até o peito e pensou nas estátuas que ornavam a entrada do seu laboratório; um rei David segurando uma cabeça barbada, que representava o gigante Golias decapitado; para ele a cabeça cortada simbolizava a separação dos elementos sutis da matéria prima para expurgá-la de sua parte grosseira, o que, em termos espirituais era o mesmo que separar o espirito da matéria. E depois nos símbolos que ornavam a mansarda onde ele morava e trabalhava, e que pertencia à Ordem do Templo. Na fachada frontal da mansarda um caixotão em madeira lavrada, com uma árvore re-presentando a “via seca”. E em cima dessa árvore a cena esculpida da Anunciação, com a Virgem grávida, dando ciência ao adepto que o nascimento da pedra filosofal (simbolizada pelo menino Jesus) estava próxima. Por isso Maria, a Virgem, “ a Natureza, o útero onde se processava a Obra”, era a dama honrada pelos alquimistas e pelos templários.
E foi então que ele sentiu de novo aquele aperto no coração, pois
sabia que tudo isso seria posto na conta das acusações que se faziam aos membros da Ordem, de heresia e culto a estranhos ídolos. Não importaria aos sádicos inquisidores o fato de que a própria Igreja se valia da alquimia para expressar as suas mais profundas ligações com o espírito da época. Pois era a arte dos adeptos, através dos seus hieróglifos, que dava vida às grandes catedrais. Nas salamandras, nos grifos esculpidos nos seus fronstispícios e beirais, nas ogivas pinta-das em dourado, nos cordões ornamentados em volta das abóbadas, nos nichos ornados com estranhas figuras, na geometria das suas formas e estruturas, ali estava todo o registro dos resultados de uma arte que o próprio Grande Arquiteto do Universo desenvolvera e ensinara aos seus eleitos, para que eles entendessem como o uni-verso era construído, e os homens, os seus “pedreiros”, poderiam imitá-lo em suas próprias obras.
Só mesmo um clero tão ignorante e invejoso poderia taxar a filosofia dos adeptos como coisa do demônio. Mas Mestre Everard sabia que não podia esperar compreensão e complacência por parte dos inquisidores. Por isso se preparava, na mente e no espírito para as tribulações que se anunciavam.
♦
Depois da primeira oitiva, Jacques de Molay voltou para sua cela, muito preocupado. Primeiro porque, até aquele momento, o papa não havia se pronunciado acerca da prisão dos membros da Ordem e nem da sua própria detenção. Talvez não tivesse ainda sido informado disso. Afinal, Poitier, onde o Pontífice Supremo agora estava enclau-surado, ficava a mais de trezentos quilômetros de Paris.
Tinha certeza que Clemente V não concordaria com aquela vio-
lência praticada por Filipe, mas sabia também que o papa era poli-
ticamente fraco e o rei tinha muita ascendência sobre ele.
Pelas perguntas do inquisidor-mor e pela amostra que dera no in-terrogatório, ele sabia o que o esperava. Tortura. Tortura moral e fí-sica. Horas sendo esticado no cavalete, fatiado na roda de esvice-ramento, humilhado e martirizado no “berço de Judas”, submetido ao suplício da forquilha ou do garrote, os pés untados com gordura de porco e assados em fogo brando. Ele imaginava o que estava por vir e já antecipava as dores que sentiria. Estava velho, mas era ainda um soldado rijo e valente. Não cederia aos desejos de Nogaret, não diria para onde mandara o tesouro do Templo, nem confessaria os crimes que estavam sendo imputados à Irmandade que ele chefiava. Ele estava pronto a morrer pelos segredos da Ordem e pelos seus obje-tivos.
Jurara isso quando fora elevado a grão-mestre geral e se fizera guardião desses segredos. Mas esse, agora, se revelava ser um grande problema. Jacques de Molay sempre se ocupara dos assuntos milita-res, políticos e administrativos do Templo, porém jamais se preocu-para com questões doutrinárias. A Ordem, desde que se tornara uma grande potência econômica, multiplicara suas atividades, se tornan-do, ela mesma, uma igreja dentro da Igreja e um estado dentro dos estados onde se instalara.
Ele sabia que no seio da complexa organização que comandava, existiam vários grupos de interesses, cada qual se ocupando de seus próprios assuntos, nos quais a Ordem havia se envolvido nos últimos dois séculos. O Templo mantinha uma organização militar que cui-dava das campanhas nas quais a Irmandade estava envolvida; essa organização estava agora desmobilizada, com o fim das cruzadas, e isso o preocupava, pois soldados sem atividade, confinados em seus claustos, estão mais afeitos a influências ruins; havia um organismo burocrático, constituido por monges juristas, contabilistas e advoga-dos, que cuidava dos interesses econômicos da Ordem, que eram muitos; isso, pensava de Molay, também era um perigo, pois a rique-za, tanto quanto o poder, era um poderoso elemento corruptor.
Havia também um corpo eclesiástico, que cuidava da parte es-piritual. Esse era o canal por onde as ideias estranhas à ortodoxia da Igreja havia penetrado na Ordem, e ali estava a maior de suas preo-cupações, pois ele pouco entendia sobre o cerne daquelas doutrinas, embora as repetisse para os seus irmãos e até nelas acreditasse, pois as recebera de seus antecessores e nunca lhe passara pela cabeça contestá-las. Jacques de Molay era um bravo soldado e um exímio administrador, mas em política e principalmente em questões filosó-ficas, que compunham a doutrina divulgada intramuros na Ordem que presidia, ele era tão despreparado quanto iletrado.
De Molay sabia também que dentro da Ordem havia um grande contingente de artesãos e mestres em construção civil, que cuidava das construções templárias, atividade essa que era uma das mais im-portantes dentro da organização que ele comandava. Desde os pri-mórdios de sua origem, os templários haviam aprendido a construir seus próprios edifícios, arquitetonicamente projetados e erguidos de acordo com os seus propósitos, fossem eles militares ou religiosos. Dessa forma, espalharam pelas terras da Cristandade e pelos territó-rios de Ultramar, onde os cruzados se estabeleceram, um sem núme-ro de capelas, preceptorias, fortalezas e castelos, que causavam inveja aos nobres senhores feudais e ao próprio clero.
Pierre de Montreil, o famoso arquiteto, mestre dos maçons fran-ceses, era um afiliado da Ordem. Sendo cavaleiro templário iniciado, fazia parte do Círculo Interno Superior e era bastante íntimo do grão-mestre Jacques de Molay, com quem frequentemente conversava e trocava confidências. Nesse mesmo instante, esse famoso arquiteto parisiense, como mestre eleito da Compagnonnage, a poderosa confraria dos construtores civis, conhecidos como “Obreiros de Salomão”(construtores de templos), estava comandando uma associação de compagnons, trabalhadores em construção civil, na construção de mais um transepto na Catedral de Notre Dame de Paris.
De Molay tinha conhecimento de que os chamados pedreiros-livres, conhecidos como maçons, formavam uma poderosa confraria, a qual tinha a sua própria liturgia e usavam, em sua cultura interna, uma estranha simbologia que ele não entendia nem fizera muita questão de conhecer. Tratava-se de símbolos ligados á geometria, à astrologia e à estranha ciência cultivada pelos judeus, que eles chamavam de Cabala. Ele sabia que tudo isso revelava um universo místico e transcendental, feito de conhecimentos muito profundos que a simplicidade do seu espírito não lograva alcançar. E isso, ele sabia também, despertava bastante desconfiança entre as autoridades eclesiásticas, sempre muito ciosas em relação a qualquer tipo de prática litúrgica que escapasse ao seu controle.
Algumas vezes conversara com o Irmão Montreil sobre esses assuntos, tentando entender um pouco da complicada ciência que os maçons aplicavam em suas obras. Montreil lhe dissera, por exemplo, que a arte dos compagnons mantinha profundas ligações com conhe-cimentos do passado, conhecimentos esses que remontavam à antigas civilizações como os egípcios, os caldeus, os gregos e os romanos. E que essa arte era uma forma de transcendência do espírito através do trabalho das mãos.
─ Como nosso grande Mestre Vitrúvio ensinou ─, explicou-lhe Montreil ─ a arte de construir edifícios, arquitetura, como a chama-mos, possui duas faces. Uma, que é profana, consiste na aplicação da ciência para a obtenção da obra, e a outra, sagrada, que proporciona o desenvolvimento do próprio espírito do construtor através da obra que ele edifica.
Jacques de Molay, um rústico monge-soldado, não tinha a chave intelectual para entrar nesse estranho mundo da simbologia usada pelos maçons. Por isso pediu uma explicação mais simples.
─ Deus é como se fosse um arquiteto ─, disse Montreil. Ele constroi o mundo com a manifestação da sua energia. Estas se tranformam em coisas sólidas, sempre obedecendo aos princípios da Geometria. Por isso nós o chamamos de Grande Arquiteto do Universo e a nossa Arte é simbolizada pela letra G, de geometria.
─ Ainda não dissestes nada que me seja inteligível ─, queixou-se
Jacques de Molay
─ Pensai no seguinte ─, disse Montreil. Um artesão pega uma pedra e esculpe nela uma forma. Ao fazer isso ele está imitando o gesto criador de Deus. Ele está colocando sobre a matéria bruta a força do seu espírito, como Deus faz com o mundo. É a energia divina, transformada em formas físicas, que dá formato e vida a este mundo em que vivemos. Nós somos canais por onde essa energia se manifesta. Por isso somos chamados de “Obreiros do Bom Deus”. Quanto mais perfeita for a obra obtida, mais se revela a perfeição do espírito criador. No trabalho na pedra o espírito do artesão se realiza. Essa prática encontra o seu ponto mais alto de espiritualidade quando construímos um edifício sacro. Nele se revela o espírito do seu idealizador. Prestando culto aos seus deuses ou perpetuando as virtudes da pessoa ou do povo que os construiu, os edifícios sacros revelam o verdadeiro espírito do homem e do tempo em que ele viveu. É o espírito de um povo que flui, pela habilidade de suas mãos. Por isso a arte do maçom é sagrada e precisa ser tratada como se fosse uma verdadeira religião. Ela é a Arte Real.
─ É por isso então que vossas reuniões são secretas e vossos conhecimentos não podem ser transmitidos a não ser aos aprendizes de vossa própria escolha, ou que a Igreja vos indica? ─ perguntou de Molay.
─ Exatamente ─, respondeu Montreil. Nossa ciência se assemelha aos segredos que nos são transmitidos no Círculo Superior da nossa Ordem eclesiástica. Da mesma forma que eles só podem ser compartilhados pelos irmãos que detém o mesmo grau de conheci-mento, na nossa confraria dos pedreiros-livres essa tradição também é obedecida.
─ No nosso caso eu posso entender a razão ─, disse de Molay. ─ Imaginai se os noviços, os capelães, os sargentos e todos os membros profanos da Ordem viessem a conhecer os nossos mais altos segredos. O que aconteceria se todo o conhecimento acumulado pela nossa Irmandade viesse a público e fosse compartilhado por pessoas sem caráter, ambiciosas, sem compromisso com os nossos ideais? Que mal isso não faria ao mundo?
─ Tocastes no ponto sensível da questão ─, disse Montreil. ─ Pois o segredo dos maçons também exige o mesmo cuidado. Porque só verdadeiros iniciados na nossa arte sabem que o movimento giratório da terra emite forças que seguem uma trajetória horizontal. Essas forças são as correntes que fazem movimentar os mares, os ventos, os assentamentos da crosta terrestre, a direção dos vapores que se formam no interior do planeta, enfim, tudo que constitui a força telúrica que dá vida à terra. Essas correntes percorrem o interior do planeta numa trajetória sinuosa que parece uma serpente no seu movimento. Por sua vez, os astros no firmamento despejam sobre a terra energias que se projetam nela numa trajetória vertical. No cruzamento dessas linhas energéticas, horizontais e verticais, se situam os pontos telúricos do planeta, que os orientais chamam de “chacras” da terra. É nesses pontos que devem ser construídos os edíficios que estão destinados a se tornar símbolos da passagem do homem sobre o nosso planeta. Edifícios que ligam o espírito humano com a divindade. A ciência para fazer esses cálculos e determinar o local e a estrutura do edifício a ser construído, só um verdadeiro mestre maçom possui. Por isso os príncipes da Igreja nos toleram e nos patrocinam. E esse é um segredo que só pode ser compartilhado com um iniciado. Assim como os marinheiros do Templo utilizam o conhecimento que têm das correntes marítimas para velejar para lugares distantes e desconhecidos por aqueles que não compartilham dos nossos segredos, nós também usamos nosso conhecimento das correntes telúricas para determinar os locais onde se deve construir os edifícios que serão centros de captação dessa energia. Pois se os “pontos de encontro” entre Deus e o homem forem construídos em qualquer lugar, sem a devida ciência, então a própria espiritualidade da espécie humana estará comprometida, pois Deus perderá seu canal de contato com ela.
─ Estais a dizer que alguns edifícios sagrados realizam um propósito divino só conhecido pelos maçons? ─ perguntou, incrédulo, de Molay.
─ Isso mesmo ─, respondeu Montreil. ─ Os antigos mestres sabiam identificar esses pontos de cruzamento das forças cósmicas. A Bíblia está cheia desses exemplos. O Tabernáculo que Deus mandou Moisés construir tinha esse propósito. Era um edifício móvel, construído com um fim determinado: um lugar para que o seu Poder pudesse se manifestar na terra. O lugar onde Jacó viu uma escada, pela qual anjos subiam e desciam, é outro exemplo. As pirâmides do Egito, os menires de Stonehenge, o templo da deusa Athena, que vós conheceis como Partenon, também. E o próprio Templo de Salomão, que como sabeis, foi construido sobre a Rocha do Domo e por mais que seja destruído, sempre é reconstruído no mesmo lugar é o mais típico exemplo dessa verdade. Várias catedrais e outros templos, em todo o mundo, também são construídos segundo essa ciência. Aqui mesmo em Paris, temos a nossa Notre Dame, que como sabeis, foi construída no local onde havia um Templo dedicado à Isis, nossa mãe viúva. Sobre essas coisas, só os mestres maçons sabem. E esse é o segredo da nossa maçonaria...
Jacques de Molay nem estava ouvindo mais a bizarra arenga do seu irmão arquiteto. Pensava na estranha concidência de os tem-plários terem sido alojados exatamente nas ruínas do antigo Templo de Jerusalém, que fora erguido por Herodes, sobre as bases do antigo Templo de Salomão. Teria alguma coisa a ver com essas crenças que Montreil professava?
─ E nós, Irmão Grão-Mestre ─, disse Montreil, sem se dar conta de que o pensamento do monge comandante havia se evadido para longe ─, somos o templo do Senhor. Ele nos constrói com a mesma fórmula com que faz o universo. Cada um de nós é uma composição numérica e geométrica que resulta em uma forma específica. O nosso grande mestre Vitrúvio nos ensinou isso. “Estudai a estrutura do corpo humano, e encontrareis a fórmula pelo qual Deus constrói o universo” ─, disse ele.
Jacques de Molay não respondeu. Limitou-se a olhar para Montreil com olhos de quem estava tentado concatenar, em sua cabeça, algumas informações que tinha, mas nunca entendera. A terra e o homem. Forças que se cruzam no interior da terra em movimentos ondulatórios, que parecem o rastejar de uma serpente. O ritual de iniciação templário. O beijo no umbigo, o beijo na boca, o beijo na base da espinha dorsal. Ele já ouvira alguém falar, em alguns dos capítulos pelos quais passara, alguma coisa semelhante. Que as forças que constroem o universo tinham a forma de uma serpente que morde o próprio rabo. Que o mundo se alimentava da própria energia que ele gerava. Igual ao organismo humano, onde a energia se movimentava da cabeça para os pés e dos pés para a cabeça, em movimentos ondulatórios, se concentrando em “pontos específicos” do corpo, como a boca, o coração, a cabeça, o sexo, o ânus. Esses pontos, denominados “chacras”, é onde se localizam algumas das funções mais importantes do organismo humano.
Algumas conexões, ainda muito tênues para fazer sentido, começaram a surgir na sua mente. Aquilo que sempre lhe pareceu uma perversão do ritual de iniciação templário, como os beijos que que os noviços eram convidados a dar nas partes íntimas dos seus mestres talvez tivessem, afinal, alguma razão de ser...
O grão-mestre do Templo ficou sabendo então a razão de os maçons manterem aquela estranha tradição que os remetia aos construtores do Templo de Salomão, a quem se diziam ligados por laços de conhecimento e transmissão iniciática, que eram compar-tilhados entre eles através de sinais, símbolos e palavras de passe.
Não via nada de estranho nisso, porquanto a própria Ordem que ele comandava também tinha seus segredos ritualísticos, seus sinais de reconhecimento e suas palavras de passe, que foram desenvol-vidos na Terra Santa para que seus membros se reconhecessem e conservassem as regras da Irmandade dentro dos círculos restritos a que cada nível hierárquico se circunscrevia. Toda confraria, fosse ela religiosa ou laica, tinha sua própria linguagem simbólica, que lhes servia de meio de comunicação. Na própria Ordem do Templo, alguns têrmos como Montjoie, Beauséant, Shibbolet, Moabon, Huzah, eram palavras de passe ou de reconhecimento, usadas pelos templários na Terra Santa para se identificarem em um ambiente infiltrado de espiões dos inimigos. E haviam os sinais, como aquele de cortar a garganta com a mão espalmada, que servia de cumprimento entre os irmãos, a mão esticada, com o polegar em riste, formando um ângulo reto, que era batida contra o peito do irmão, etc.Tudo isso constituia um alfabeto de sinais e palavras que só os iniciados do Templo compartilhavam/.
Da mesma forma, a gilda dos pedreiros-livres, associação conhecida como Compagnonnage, formada pelos profissionais da construção civil era uma confraria laica, mas se comportava como se fosse uma seita religiosa. E como tal já havia chamado a atenção da Igreja, por causa dos seus “segredos iniciáticos.” Esses segredos incorporavam uma simbologia e uma linguagem própria, que lhes permitia comunicar entre si os conhecimentos da profissão de uma forma que quem fosse estranho ao metier não os pudesse entender. Era um conhecimento que passava de mestre para aprendiz, em uma cadeia iniciática feita de símbolos, diagramas, lendas, palavras de passe e ritos de passagem, que se assemelhavam às antigas práticas dos hierofantes egípcios e gregos. Destarte, a tradição dos pedreiros-livres, incorporava milenares tradições egípcias, fenícias, persas, gregas e principalmente judaicas, sempre relacionadas com o mistério da construção do Templo de Salomão. Nisso estava a sua ligação simbólica com a Ordem do Templo, pois os compangnons, também chamados de “Obreiros do Bom Deus”, eram, como os monges-cavaleiros do Templo, ‘obreiros’ do Templo do Rei Salomão ─ símbolo da construção da humanidade autêntica ─ guiada pelo verdadeiro e único Deus. Nessa identidade mística e simbólica estava o elo que ligava a maçonaria e a cavalaria templária.
Jacques de Molay haveria de se lembrar disso. Não sabia porque, mas a relação entre o Templo e a Loja dos Obreiros de Salomão, de repente lhe pareceu um assunto de fundamental importância.
(DO LIVRO "A IRMANDADE DOS SANTOS MALDITOS", NO PRELO)
Mestre Everard de Evreux havia sido capturado pelos soldados do rei dois dias depois do assalto ao Templo. Ao saber da prisão dos seus irmãos de Ordem, ficara em sua mansarda, próxima à Porta do Templo, aguardando por esse desfecho, pois sabia que de nada adiantaria fugir de Paris.
Naquele exato momento, em que ele era atado às cadeias de uma cela no castelo do Templo, uma caçada implacável estava sendo desencadeada em todas as cidades da França e não havia praticamente lugar algum onde pudesse se homiziar. Os senescais de Filipe haviam colocado agentes em todo o território francês, com a missão de capturar toda e qualquer pessoa ligada, de algum modo, à Ordem do Templo. Não importava que relação tivesse, se de filiação, mera contratação, ou simples vassalagem. Em princípio todos eram templários. Todos deviam ser presos. Alguma seleção, se fosse preciso, poderia ser feita depois.
Mestre Everard era iniciado. Fazia parte do grupo eclesiástico do Templo, servindo primeiro como cônego, ou seja, um irmão não combatente, que executava ofícios religiosos para a Ordem. Um grande número de irmãos templários serviam à Ordem nessa con-dição. Haviam os irmãos padres, que rezavam as missas, propor-cionavam confissões, realizavam ofícios fúnebres, executavam as obras piedosas nas quais as Ordem se envolvia, e havia também irmãos que prestavam assistência jurídica e contábil, cuidando das diversas operações comerciais e econômicas na quais a Ordem se especializara desde que se tornara uma corporação multinacional, detentora de um grande império econômico e titular de importantes rotas comerciais, que causavam inveja até às poderosas repúblicas hanseáticas.
Mestre Everard, além de religioso, havia se especializado na arte dos adeptos, como era conhecida a alquimia. Aprendera com grandes mestres do Egito e do Oriente, os fundamentos dessa estranha ciência que se propunha, através da atividade espiritual orientada e do trabalho paciente das mãos, a penetrar na intimidade da natureza para desvendar os seus segredos. Ha mais de trinta anos fora iniciado na Ordem do Templo e por mais de quarenta praticava a alquimia. Sabia que a Igreja, embora com desconfiança e reserva, tolerava, em alguns casos, a prática alquímica. E que alguns príncipes da Igreja, mais por cobiça e concupiscência, pois a alquimia prometia riqueza e longa vida para aquele que conseguisse realizar a Grande Obra, também praticavam pessoalmente essa arte ou finaciavam pesquisadores que trabalhavam para eles. De fato, a maioria dos alquimistas que ele conhecia eram monges, ou estavam, de alguma forma, ligados à Igreja, e se nenhum deles, tanto quanto ele sabia, tinham obtido sucesso em suas lidas, pelo menos abasteciam a Igreja com produtos que rendiam às suas paróquias bons cabedais. Os mosteiros eram grandes produtores de cerveja, vinho, unguentos, medicamentos e outros produtos que as hansas ̶ as guildas dos mercadores ̶ ligadas ao Templo distribuiam por todos os reinos da Cristandade e Ultramar.
Todavia, não era muito pacífica a relação entre a Igreja e os alqui-mistas. Não poucos eram os membros da Igreja que consideravam a alquimia como uma arte perigosa e maléfica para o espírito das pes-soas e elevavam-na ao nível de feitiçaria ou bruxaria. Não raro um alquimista era condenado pela Santa Inquisição e levado à fogueira por conta de suas práticas.
A razão dessa desconfiança de parte da Igreja era a estreita re-
lação que existia entre a alquimia e a estranha ciência praticada pelos judeus, conhecida como Cabala. A Cabala era uma doutrina muito estimada na Provença, principalmente na região conhecida como Languedoc, onde havia uma representativa colônia de judeus. E como nessa região ainda era muito sensível a lembrança da Heresia Albigense, sempre que se falava em Cabala, logo vinha a lembrança da questão cátara.
E nesse sentido tudo se ligava: Catarismo, Cabala, Alquimia. Em muitos casos partilhando os mesmos símbolos, a alquimia tornou-se a arte do monge por excelência, tanto que era expressa pela frase latina “ora et labora”. Orar e trabalhar, daí surgindo a expressão “laboratório” para designar o local onde o alquimista executava a sua prática.
Mestre Everard, sentado no chão da cela, passou a mão pela longa barba bifurcada que lhe caia quase até o peito e pensou nas estátuas que ornavam a entrada do seu laboratório; um rei David segurando uma cabeça barbada, que representava o gigante Golias decapitado; para ele a cabeça cortada simbolizava a separação dos elementos sutis da matéria prima para expurgá-la de sua parte grosseira, o que, em termos espirituais era o mesmo que separar o espirito da matéria. E depois nos símbolos que ornavam a mansarda onde ele morava e trabalhava, e que pertencia à Ordem do Templo. Na fachada frontal da mansarda um caixotão em madeira lavrada, com uma árvore re-presentando a “via seca”. E em cima dessa árvore a cena esculpida da Anunciação, com a Virgem grávida, dando ciência ao adepto que o nascimento da pedra filosofal (simbolizada pelo menino Jesus) estava próxima. Por isso Maria, a Virgem, “ a Natureza, o útero onde se processava a Obra”, era a dama honrada pelos alquimistas e pelos templários.
E foi então que ele sentiu de novo aquele aperto no coração, pois
sabia que tudo isso seria posto na conta das acusações que se faziam aos membros da Ordem, de heresia e culto a estranhos ídolos. Não importaria aos sádicos inquisidores o fato de que a própria Igreja se valia da alquimia para expressar as suas mais profundas ligações com o espírito da época. Pois era a arte dos adeptos, através dos seus hieróglifos, que dava vida às grandes catedrais. Nas salamandras, nos grifos esculpidos nos seus fronstispícios e beirais, nas ogivas pinta-das em dourado, nos cordões ornamentados em volta das abóbadas, nos nichos ornados com estranhas figuras, na geometria das suas formas e estruturas, ali estava todo o registro dos resultados de uma arte que o próprio Grande Arquiteto do Universo desenvolvera e ensinara aos seus eleitos, para que eles entendessem como o uni-verso era construído, e os homens, os seus “pedreiros”, poderiam imitá-lo em suas próprias obras.
Só mesmo um clero tão ignorante e invejoso poderia taxar a filosofia dos adeptos como coisa do demônio. Mas Mestre Everard sabia que não podia esperar compreensão e complacência por parte dos inquisidores. Por isso se preparava, na mente e no espírito para as tribulações que se anunciavam.
♦
Depois da primeira oitiva, Jacques de Molay voltou para sua cela, muito preocupado. Primeiro porque, até aquele momento, o papa não havia se pronunciado acerca da prisão dos membros da Ordem e nem da sua própria detenção. Talvez não tivesse ainda sido informado disso. Afinal, Poitier, onde o Pontífice Supremo agora estava enclau-surado, ficava a mais de trezentos quilômetros de Paris.
Tinha certeza que Clemente V não concordaria com aquela vio-
lência praticada por Filipe, mas sabia também que o papa era poli-
ticamente fraco e o rei tinha muita ascendência sobre ele.
Pelas perguntas do inquisidor-mor e pela amostra que dera no in-terrogatório, ele sabia o que o esperava. Tortura. Tortura moral e fí-sica. Horas sendo esticado no cavalete, fatiado na roda de esvice-ramento, humilhado e martirizado no “berço de Judas”, submetido ao suplício da forquilha ou do garrote, os pés untados com gordura de porco e assados em fogo brando. Ele imaginava o que estava por vir e já antecipava as dores que sentiria. Estava velho, mas era ainda um soldado rijo e valente. Não cederia aos desejos de Nogaret, não diria para onde mandara o tesouro do Templo, nem confessaria os crimes que estavam sendo imputados à Irmandade que ele chefiava. Ele estava pronto a morrer pelos segredos da Ordem e pelos seus obje-tivos.
Jurara isso quando fora elevado a grão-mestre geral e se fizera guardião desses segredos. Mas esse, agora, se revelava ser um grande problema. Jacques de Molay sempre se ocupara dos assuntos milita-res, políticos e administrativos do Templo, porém jamais se preocu-para com questões doutrinárias. A Ordem, desde que se tornara uma grande potência econômica, multiplicara suas atividades, se tornan-do, ela mesma, uma igreja dentro da Igreja e um estado dentro dos estados onde se instalara.
Ele sabia que no seio da complexa organização que comandava, existiam vários grupos de interesses, cada qual se ocupando de seus próprios assuntos, nos quais a Ordem havia se envolvido nos últimos dois séculos. O Templo mantinha uma organização militar que cui-dava das campanhas nas quais a Irmandade estava envolvida; essa organização estava agora desmobilizada, com o fim das cruzadas, e isso o preocupava, pois soldados sem atividade, confinados em seus claustos, estão mais afeitos a influências ruins; havia um organismo burocrático, constituido por monges juristas, contabilistas e advoga-dos, que cuidava dos interesses econômicos da Ordem, que eram muitos; isso, pensava de Molay, também era um perigo, pois a rique-za, tanto quanto o poder, era um poderoso elemento corruptor.
Havia também um corpo eclesiástico, que cuidava da parte es-piritual. Esse era o canal por onde as ideias estranhas à ortodoxia da Igreja havia penetrado na Ordem, e ali estava a maior de suas preo-cupações, pois ele pouco entendia sobre o cerne daquelas doutrinas, embora as repetisse para os seus irmãos e até nelas acreditasse, pois as recebera de seus antecessores e nunca lhe passara pela cabeça contestá-las. Jacques de Molay era um bravo soldado e um exímio administrador, mas em política e principalmente em questões filosó-ficas, que compunham a doutrina divulgada intramuros na Ordem que presidia, ele era tão despreparado quanto iletrado.
De Molay sabia também que dentro da Ordem havia um grande contingente de artesãos e mestres em construção civil, que cuidava das construções templárias, atividade essa que era uma das mais im-portantes dentro da organização que ele comandava. Desde os pri-mórdios de sua origem, os templários haviam aprendido a construir seus próprios edifícios, arquitetonicamente projetados e erguidos de acordo com os seus propósitos, fossem eles militares ou religiosos. Dessa forma, espalharam pelas terras da Cristandade e pelos territó-rios de Ultramar, onde os cruzados se estabeleceram, um sem núme-ro de capelas, preceptorias, fortalezas e castelos, que causavam inveja aos nobres senhores feudais e ao próprio clero.
Pierre de Montreil, o famoso arquiteto, mestre dos maçons fran-ceses, era um afiliado da Ordem. Sendo cavaleiro templário iniciado, fazia parte do Círculo Interno Superior e era bastante íntimo do grão-mestre Jacques de Molay, com quem frequentemente conversava e trocava confidências. Nesse mesmo instante, esse famoso arquiteto parisiense, como mestre eleito da Compagnonnage, a poderosa confraria dos construtores civis, conhecidos como “Obreiros de Salomão”(construtores de templos), estava comandando uma associação de compagnons, trabalhadores em construção civil, na construção de mais um transepto na Catedral de Notre Dame de Paris.
De Molay tinha conhecimento de que os chamados pedreiros-livres, conhecidos como maçons, formavam uma poderosa confraria, a qual tinha a sua própria liturgia e usavam, em sua cultura interna, uma estranha simbologia que ele não entendia nem fizera muita questão de conhecer. Tratava-se de símbolos ligados á geometria, à astrologia e à estranha ciência cultivada pelos judeus, que eles chamavam de Cabala. Ele sabia que tudo isso revelava um universo místico e transcendental, feito de conhecimentos muito profundos que a simplicidade do seu espírito não lograva alcançar. E isso, ele sabia também, despertava bastante desconfiança entre as autoridades eclesiásticas, sempre muito ciosas em relação a qualquer tipo de prática litúrgica que escapasse ao seu controle.
Algumas vezes conversara com o Irmão Montreil sobre esses assuntos, tentando entender um pouco da complicada ciência que os maçons aplicavam em suas obras. Montreil lhe dissera, por exemplo, que a arte dos compagnons mantinha profundas ligações com conhe-cimentos do passado, conhecimentos esses que remontavam à antigas civilizações como os egípcios, os caldeus, os gregos e os romanos. E que essa arte era uma forma de transcendência do espírito através do trabalho das mãos.
─ Como nosso grande Mestre Vitrúvio ensinou ─, explicou-lhe Montreil ─ a arte de construir edifícios, arquitetura, como a chama-mos, possui duas faces. Uma, que é profana, consiste na aplicação da ciência para a obtenção da obra, e a outra, sagrada, que proporciona o desenvolvimento do próprio espírito do construtor através da obra que ele edifica.
Jacques de Molay, um rústico monge-soldado, não tinha a chave intelectual para entrar nesse estranho mundo da simbologia usada pelos maçons. Por isso pediu uma explicação mais simples.
─ Deus é como se fosse um arquiteto ─, disse Montreil. Ele constroi o mundo com a manifestação da sua energia. Estas se tranformam em coisas sólidas, sempre obedecendo aos princípios da Geometria. Por isso nós o chamamos de Grande Arquiteto do Universo e a nossa Arte é simbolizada pela letra G, de geometria.
─ Ainda não dissestes nada que me seja inteligível ─, queixou-se
Jacques de Molay
─ Pensai no seguinte ─, disse Montreil. Um artesão pega uma pedra e esculpe nela uma forma. Ao fazer isso ele está imitando o gesto criador de Deus. Ele está colocando sobre a matéria bruta a força do seu espírito, como Deus faz com o mundo. É a energia divina, transformada em formas físicas, que dá formato e vida a este mundo em que vivemos. Nós somos canais por onde essa energia se manifesta. Por isso somos chamados de “Obreiros do Bom Deus”. Quanto mais perfeita for a obra obtida, mais se revela a perfeição do espírito criador. No trabalho na pedra o espírito do artesão se realiza. Essa prática encontra o seu ponto mais alto de espiritualidade quando construímos um edifício sacro. Nele se revela o espírito do seu idealizador. Prestando culto aos seus deuses ou perpetuando as virtudes da pessoa ou do povo que os construiu, os edifícios sacros revelam o verdadeiro espírito do homem e do tempo em que ele viveu. É o espírito de um povo que flui, pela habilidade de suas mãos. Por isso a arte do maçom é sagrada e precisa ser tratada como se fosse uma verdadeira religião. Ela é a Arte Real.
─ É por isso então que vossas reuniões são secretas e vossos conhecimentos não podem ser transmitidos a não ser aos aprendizes de vossa própria escolha, ou que a Igreja vos indica? ─ perguntou de Molay.
─ Exatamente ─, respondeu Montreil. Nossa ciência se assemelha aos segredos que nos são transmitidos no Círculo Superior da nossa Ordem eclesiástica. Da mesma forma que eles só podem ser compartilhados pelos irmãos que detém o mesmo grau de conheci-mento, na nossa confraria dos pedreiros-livres essa tradição também é obedecida.
─ No nosso caso eu posso entender a razão ─, disse de Molay. ─ Imaginai se os noviços, os capelães, os sargentos e todos os membros profanos da Ordem viessem a conhecer os nossos mais altos segredos. O que aconteceria se todo o conhecimento acumulado pela nossa Irmandade viesse a público e fosse compartilhado por pessoas sem caráter, ambiciosas, sem compromisso com os nossos ideais? Que mal isso não faria ao mundo?
─ Tocastes no ponto sensível da questão ─, disse Montreil. ─ Pois o segredo dos maçons também exige o mesmo cuidado. Porque só verdadeiros iniciados na nossa arte sabem que o movimento giratório da terra emite forças que seguem uma trajetória horizontal. Essas forças são as correntes que fazem movimentar os mares, os ventos, os assentamentos da crosta terrestre, a direção dos vapores que se formam no interior do planeta, enfim, tudo que constitui a força telúrica que dá vida à terra. Essas correntes percorrem o interior do planeta numa trajetória sinuosa que parece uma serpente no seu movimento. Por sua vez, os astros no firmamento despejam sobre a terra energias que se projetam nela numa trajetória vertical. No cruzamento dessas linhas energéticas, horizontais e verticais, se situam os pontos telúricos do planeta, que os orientais chamam de “chacras” da terra. É nesses pontos que devem ser construídos os edíficios que estão destinados a se tornar símbolos da passagem do homem sobre o nosso planeta. Edifícios que ligam o espírito humano com a divindade. A ciência para fazer esses cálculos e determinar o local e a estrutura do edifício a ser construído, só um verdadeiro mestre maçom possui. Por isso os príncipes da Igreja nos toleram e nos patrocinam. E esse é um segredo que só pode ser compartilhado com um iniciado. Assim como os marinheiros do Templo utilizam o conhecimento que têm das correntes marítimas para velejar para lugares distantes e desconhecidos por aqueles que não compartilham dos nossos segredos, nós também usamos nosso conhecimento das correntes telúricas para determinar os locais onde se deve construir os edifícios que serão centros de captação dessa energia. Pois se os “pontos de encontro” entre Deus e o homem forem construídos em qualquer lugar, sem a devida ciência, então a própria espiritualidade da espécie humana estará comprometida, pois Deus perderá seu canal de contato com ela.
─ Estais a dizer que alguns edifícios sagrados realizam um propósito divino só conhecido pelos maçons? ─ perguntou, incrédulo, de Molay.
─ Isso mesmo ─, respondeu Montreil. ─ Os antigos mestres sabiam identificar esses pontos de cruzamento das forças cósmicas. A Bíblia está cheia desses exemplos. O Tabernáculo que Deus mandou Moisés construir tinha esse propósito. Era um edifício móvel, construído com um fim determinado: um lugar para que o seu Poder pudesse se manifestar na terra. O lugar onde Jacó viu uma escada, pela qual anjos subiam e desciam, é outro exemplo. As pirâmides do Egito, os menires de Stonehenge, o templo da deusa Athena, que vós conheceis como Partenon, também. E o próprio Templo de Salomão, que como sabeis, foi construido sobre a Rocha do Domo e por mais que seja destruído, sempre é reconstruído no mesmo lugar é o mais típico exemplo dessa verdade. Várias catedrais e outros templos, em todo o mundo, também são construídos segundo essa ciência. Aqui mesmo em Paris, temos a nossa Notre Dame, que como sabeis, foi construída no local onde havia um Templo dedicado à Isis, nossa mãe viúva. Sobre essas coisas, só os mestres maçons sabem. E esse é o segredo da nossa maçonaria...
Jacques de Molay nem estava ouvindo mais a bizarra arenga do seu irmão arquiteto. Pensava na estranha concidência de os tem-plários terem sido alojados exatamente nas ruínas do antigo Templo de Jerusalém, que fora erguido por Herodes, sobre as bases do antigo Templo de Salomão. Teria alguma coisa a ver com essas crenças que Montreil professava?
─ E nós, Irmão Grão-Mestre ─, disse Montreil, sem se dar conta de que o pensamento do monge comandante havia se evadido para longe ─, somos o templo do Senhor. Ele nos constrói com a mesma fórmula com que faz o universo. Cada um de nós é uma composição numérica e geométrica que resulta em uma forma específica. O nosso grande mestre Vitrúvio nos ensinou isso. “Estudai a estrutura do corpo humano, e encontrareis a fórmula pelo qual Deus constrói o universo” ─, disse ele.
Jacques de Molay não respondeu. Limitou-se a olhar para Montreil com olhos de quem estava tentado concatenar, em sua cabeça, algumas informações que tinha, mas nunca entendera. A terra e o homem. Forças que se cruzam no interior da terra em movimentos ondulatórios, que parecem o rastejar de uma serpente. O ritual de iniciação templário. O beijo no umbigo, o beijo na boca, o beijo na base da espinha dorsal. Ele já ouvira alguém falar, em alguns dos capítulos pelos quais passara, alguma coisa semelhante. Que as forças que constroem o universo tinham a forma de uma serpente que morde o próprio rabo. Que o mundo se alimentava da própria energia que ele gerava. Igual ao organismo humano, onde a energia se movimentava da cabeça para os pés e dos pés para a cabeça, em movimentos ondulatórios, se concentrando em “pontos específicos” do corpo, como a boca, o coração, a cabeça, o sexo, o ânus. Esses pontos, denominados “chacras”, é onde se localizam algumas das funções mais importantes do organismo humano.
Algumas conexões, ainda muito tênues para fazer sentido, começaram a surgir na sua mente. Aquilo que sempre lhe pareceu uma perversão do ritual de iniciação templário, como os beijos que que os noviços eram convidados a dar nas partes íntimas dos seus mestres talvez tivessem, afinal, alguma razão de ser...
O grão-mestre do Templo ficou sabendo então a razão de os maçons manterem aquela estranha tradição que os remetia aos construtores do Templo de Salomão, a quem se diziam ligados por laços de conhecimento e transmissão iniciática, que eram compar-tilhados entre eles através de sinais, símbolos e palavras de passe.
Não via nada de estranho nisso, porquanto a própria Ordem que ele comandava também tinha seus segredos ritualísticos, seus sinais de reconhecimento e suas palavras de passe, que foram desenvol-vidos na Terra Santa para que seus membros se reconhecessem e conservassem as regras da Irmandade dentro dos círculos restritos a que cada nível hierárquico se circunscrevia. Toda confraria, fosse ela religiosa ou laica, tinha sua própria linguagem simbólica, que lhes servia de meio de comunicação. Na própria Ordem do Templo, alguns têrmos como Montjoie, Beauséant, Shibbolet, Moabon, Huzah, eram palavras de passe ou de reconhecimento, usadas pelos templários na Terra Santa para se identificarem em um ambiente infiltrado de espiões dos inimigos. E haviam os sinais, como aquele de cortar a garganta com a mão espalmada, que servia de cumprimento entre os irmãos, a mão esticada, com o polegar em riste, formando um ângulo reto, que era batida contra o peito do irmão, etc.Tudo isso constituia um alfabeto de sinais e palavras que só os iniciados do Templo compartilhavam/.
Da mesma forma, a gilda dos pedreiros-livres, associação conhecida como Compagnonnage, formada pelos profissionais da construção civil era uma confraria laica, mas se comportava como se fosse uma seita religiosa. E como tal já havia chamado a atenção da Igreja, por causa dos seus “segredos iniciáticos.” Esses segredos incorporavam uma simbologia e uma linguagem própria, que lhes permitia comunicar entre si os conhecimentos da profissão de uma forma que quem fosse estranho ao metier não os pudesse entender. Era um conhecimento que passava de mestre para aprendiz, em uma cadeia iniciática feita de símbolos, diagramas, lendas, palavras de passe e ritos de passagem, que se assemelhavam às antigas práticas dos hierofantes egípcios e gregos. Destarte, a tradição dos pedreiros-livres, incorporava milenares tradições egípcias, fenícias, persas, gregas e principalmente judaicas, sempre relacionadas com o mistério da construção do Templo de Salomão. Nisso estava a sua ligação simbólica com a Ordem do Templo, pois os compangnons, também chamados de “Obreiros do Bom Deus”, eram, como os monges-cavaleiros do Templo, ‘obreiros’ do Templo do Rei Salomão ─ símbolo da construção da humanidade autêntica ─ guiada pelo verdadeiro e único Deus. Nessa identidade mística e simbólica estava o elo que ligava a maçonaria e a cavalaria templária.
Jacques de Molay haveria de se lembrar disso. Não sabia porque, mas a relação entre o Templo e a Loja dos Obreiros de Salomão, de repente lhe pareceu um assunto de fundamental importância.
(DO LIVRO "A IRMANDADE DOS SANTOS MALDITOS", NO PRELO)