SEU ÚLTIMO PÔR-DO-SOL:
Amarro os tênis, checo a camisa no espelho, ajeito o cabelo, olho para o relógio, são quatro e meia. Lá fora, o fim daquele entardecer começa a se acentuar e eu vejo isso sendo expresso através dos raios de sol por entre as árvores mais baixas. Sua luz...tão bela e fraca. Abro a porta do quarto e dou um último beijo em minha mãe que está sentada em frente a televisão vendo o último resultado da loto:
- Não se esqueça das flores, querido – a voz atrás de mim soa em mono tom.
- Não esquenta, mãe. Vamos só conversar, nada mais.
De fato, não estava no mesmo clima romântico de sempre. Fechando a porta da entrada, me deparo com a caminhonete. Jesus cristo...ela precisa mesmo de um trato. Aquele barro envelhecido por toda a lataria vermelha lhe dava um aspecto que ultrapassava os limites do aceitável:
- Totó! – ele corre em minha direção com a euforia estampada no focinho. Língua para fora, puxa...também precisava de um banho, o pobrezinho – Você vai comigo. Sim, sim, talvez eu precise que você ataque ela.
Pela primeira vez naquela semana, consegui tirar um riso de canto com uma de minhas piadinhas infames. Talvez aquilo não fosse o suficiente mas, era um começo. Entro no carro, meu cão vai no passageiro. Coloco o cinto e botamos a máquina para trabalhar. Olho para o relógio, quatro e quarenta e cinco. Não podia perder tempo, ela nos esperava...pelo menos, era o que eu esperava. Pela frente, a viagem não seria das mais estimulantes. Apenas vegetação, vegetação, vegetação, plantações, pastagens, cercados, mato...tudo tão monótono e repetitivo. Apenas mais uma forma para eu não parar de pensar naquele dilema conflitante:
- Você tem ideia disso? Do quanto eu me sacrifiquei pra isso dar certo? Não, porque, ela aparentemente não dá a mínima pra isso! – repentino e direto, como sempre fui – Dois anos, amigo...dois malditos anos e tudo o que eu tenho feito são planos. Ah é, planos! Planos pra ela e pra mim! Planos pra nós dois!
Mantendo a direção, linha reta. Tudo o que aquela porcaria de estrada de terra tem a me oferecer são pequenas curvas. Talvez para nos lembrar de que a inconstância também existe. Já são quatro e quarenta e cinco. Este salto me fez pensar no quão inútil minha relação com ela tem sido. Uma pessoa na relação que busca o crescimento faz tanto sentido quanto o mundo girar ao contrário:
- É...pode ter sido isso...a faculdade. Bom, foi difícil pra mim aceitar, você sabe – acaricio sua cabeça – Mas, eu tentei...nós tentamos por um tempo. Quem sabe aquilo pudesse dar certo afinal, hein? Nunca saberemos o que o futuro reserva para duas pessoas que se amam...
Cinco da tarde...meus olhos se perdem no horizonte enquanto a visão embaça. As lágrimas não tardam a cair:
- Sabe...- enxugo meus olhos – Podia funcionar...meu trabalho na lavoura poderia vingar e, em pouco tempo, eu poderia começar meus estudos também. Mas quem sou eu, não é? Ela pode ter conhecido outros caras...caras melhores do que eu, mais inteligentes e mais fortes. Ah, e com certeza isso despertaria a atenção e o interesse daquela mulher, sim, sim...
Cinco e cinco...já estou farto do barulho daquele motor:
- Quer saber, garoto? Que se foda...eu me garanto! E não vai ser essa porra que vai tirar o meu juízo! Não, não...mesmo que ela mude de unidade, mesmo que fique mais longe de mim...hoje nós vamos resolver isso.
Lembro-me de minhas mãos já suadas segurarem firme aquele volante, e do quanto as lágrimas esquentaram meu rosto por um instante. É, aquilo poderia vir...poderia vir que eu estaria pronto.
Mais alguns segundos naquele estado e encaro meu companheiro por alguns instantes...aquele cachorro estava mesmo comigo em todas as horas. Nunca, mas nunca me deixara na mão...nenhum momento sequer. Perdido naquele semblante inocente, me perco um pouco na direção, até aquele etapa do transe ser quebrada por latidos incessantes que me fazem retomar a atenção de maneira desesperada para a estrada. ‘’Meu deus’’...a freada brusca consegue dar um jeito em meus ombros, encaro o que há a nossa frente. Eram dois caminhões daqueles de caçamba mais largas. Mais a frente, algo como um animal morto, talvez...aquilo me chama a atenção. Olho para o relógio, cinco e quinze. Aquilo me atrasaria completamente:
- Não sai daqui, tá? O papai vai ver o que tá acontecendo.
Desço mantendo minha expressão de perplexidade rumo à um dos homens ali parados no acostamento:
- O que aconteceu, amigo? – a camaradagem forçada no meu tom de voz se faz mais que presente.
- Parece a carcaça da vaca que tava perdida do gado do Seu Teotônio desde segunda-feira. – responde o homem sem tirar os olhos daquela movimentação.
- Caramba...todo esse alvoroço por causa de um bicho morto?
O silêncio predomina após minha pergunta mais que retórica, até que eu o quebro fazendo outra:
- Escuta, eu preciso atravessar esse trecho. Será que não tem como um de seus caminhões manobrarem um pouco para que eu possa passar?
- Olha, rapaz, estamos com um trabalho meticuloso por aqui. Chamamos a polícia, pode ser que haja um bicho feroz por essas redondezas. Eu não sei, mas, está escurecendo e se eu fosse você, dava meia volta e sairia daqui. Você não quer terminar como a mimosa ali, quer?
- Não...- relutante, eu o interrompo – Você não entendeu, eu tenho de estar em um lugar em menos de...- olho rapidamente para o relógio - ...exatamente vinte minutos. Puxa, tenho menos tempo agora que parei pra conversar com você. Que ótimo!
- Ei, vai com calma aí, meu jovem! Ninguém pediu pra que descesse do carro, ok? Se faz tanta questão assim de continuar nessa estrada, pode cortar caminho por ali, está vendo? – o homem me aponta um trecho que está logo atrás de onde estávamos – Faça o retorno e vai encontrar outra alternativa, tá certo??
- Mas aí eu vou levar mais tempo!!
- Desculpe, amigo, mas é o único jeito...
O homem teve de sair as pressas enquanto me deixava falando sozinho. Aparentemente não havia mesmo outro jeito. Estressado e já sem muita vontade, volto para a caminhonete:
- Parece que é vitória desses palhaços, amigão. Vamos fazer o retorno, vai...
Cinco e vinte e três...aquilo tinha que servir.
Fizemos o retorno e como eu não estava mais aguentando o tom mórbido daquela estrada, liguei um pouco o rádio. Ouvir música talvez me ajudasse a me livrar daqueles pensamentos tão tortuosos. Nenhuma outra coisa era esboçada em minha mente além de seu rosto. Deus, eu amava mesmo aquela mulher. Como aquilo tudo poderia acontecer entre a gente? Não era justo que fosse assim. Pela janela, vejo o horizonte no único trecho visível da imensidão daquelas terras...o pôr-do-sol não podia mais esperar por mim. Porém, felizmente, estávamos quase no fim. Aquele era o ponto mais alto do vilarejo e marquei ontem com a garota que está me causando todos estes distúrbios de se encontrar comigo aqui, exatamente neste local. Costumávamos vir aqui nos nossos primeiros encontros...até marcamos nossas iniciais na laranjeira ali situada durante anos. Eu realmente queria consertar aquilo, não podia estragar tudo. Não daquela vez. Na rádio, o chiado começava a tirar toda a concentração daquele momento, o que dava lugar para todo o nervosismo que eu não sentira antes. Lá estava ela:
- Bom...é agora...me deseje sorte, pulguento.
Dou um último beijo na testa de meu cão antes de descer do carro. Imediatamente, ela me fita com aquele olhar ao virar seu rosto. Estava sentada na beirada daquele desfiladeiro, como costumávamos ficar para nos beijarmos e namorarmos durante muitas noites a fio:
- Ainda acha que não foi uma boa ideia nos encontrarmos aqui? – pergunto num tom singelo.
- Acho...quero dizer...queria te ver mas...não aqui. Não agora – sua expressão não é das melhores, mas ainda estou feliz por vê-la de novo depois de algumas semanas – Por que demorou tanto?
- Bom...alguns minutos não são nada perto do que duas pessoas viveram estando longe por tanto tempo...- minha voz se mantém serena e calma.
- Não começa com isso...vem...me abraça.
Ao me aproximar e sentir seu corpo, sinto metade daquele peso sair de minhas costas. Ao mesmo tempo que eu queria acreditar que aquilo era real, não queria ignorar o fato de que, talvez, eu estivesse vivendo uma ilusão. Por entre o ombro direito, vejo aquele pôr-do-sol já se acomodando por entre as colinas mais longínquas:
- Quando foi a última vez que vimos o pôr-do-sol? – sussurro ao pé do seu ouvido.
Nesse momento, ela me encara com aqueles olhos castanhos e, finalmente, nos beijamos profundamente depois de tanto tempo sem sentir um ao outro:
- Você sempre foi tão intenso...é algo que eu sempre amei em você.
- Bem, acho que é hora de demonstrar este amor e fugir comigo. – eu a encaro tentando manter o tom de seriedade em meus olhos. Não queria derreter diante dela. Precisava mostrar a importância daquele momento...
- Entenda de uma vez...eu não posso fazer isso. Eu tenho minhas responsabilidades, amor, não é simples eu largar tudo e fugir com você. Será que não entende mesmo?!
- Não! Não entendo o que mudar de unidade e ficar mais longe de mim tem a ver com tudo isso! – os nervos começam a ficar a flor da pele.
- Eu...- ela para por um instante e se afasta cruzando seus braços – Eu preciso mesmo mudar, tá? É temporário, eu juro. Juro que é pro seu bem e pro bem do nosso namoro. Eu quero um futuro pra nós tanto quanto você...mas, pra isso funcionar, eu tenho que resolver a minha vida.
- Isso tudo é muito louvável, amor, eu fico muito orgulhoso de você. Sempre fiquei...é que...desde que você se foi por conta da faculdade, tudo tem sido diferente.
- O que quer dizer? – ela muda para uma expressão preocupada.
- Não sei dizer...você não tem sido mais a mesma, sabe? Tem agido diferente...falado diferente...eu sinto que é você e não é ao mesmo tempo, entende?
- Olha...tem razão...e é sobre isso que eu queria conversar com você. Amor...- ela para por um instante e encara o horizonte – Senta aí.
Sentamos no mesmo ponto em que ficávamos, à beira do desfiladeiro daquele lugar. Eu amava estar ali ao lado dela...mesmo com toda a conturbação, mesmo com todo aquele dilema exposto...eu estava onde deveria estar. Ao lado dela.
- O pôr-do-sol está incrível hoje, não está? – pergunto a ela.
- Sim...- ela responde. Seu rosto refletido naquele alaranjado é algo que acentua perfeitamente – Você tem razão em dizer que eu estou diferente. Muita...muita coisa aconteceu desde que eu entrei na faculdade e...eu sabia que isso acabaria afetando no nosso relacionamento.
- Você pode se abrir pra mim. Eu...- minha voz trava por um segundo – tenho minhas suspeitas, ok? Na verdade chego a achar até que...você tem outra pessoa.
- Não! Nunca! Você é único pra mim, amor, entenda...nunca que eu ficaria com outro cara. Você sabe que dou muito valor a nossa relação.
- Então é a faculdade, não é? É o fato de eu estar ainda aqui, no campo, enquanto você desbrava o mundo. Olha, sei que não tenho nada a oferecer mas, eu acho que é questão de tempo e...
Minha fala é interrompida no momento em que um beijo surge de maneira repentina. Me perco naqueles lábios molhados enquanto, de relance, vejo que o sol já se encontra quase que totalmente acolhido pelas colinas no horizonte. Me entregando totalmente àquele momento, vi que nada mais importava. Poderia passar o resto daquele ano tranquilo, pois teria a suma garantia de que aquela mulher seria minha, não importava o que acontecesse.
No entanto, de uma forma esquisita, o gosto daquele beijo foi mudando. Comecei a sentir algo salgado em meus lábios, no momento em que nossas línguas dançavam por entre o interior de nossas bocas. Logo em seguida, uma dor aguda, cortante...como se uma lâmina percorresse o céu da minha boca. Me dei conta do que era o gosto daquilo; era gosto de sangue. Abri os meus olhos e percebi que não era mais minha namorada diante de mim. Agora, era uma criatura horrível, peluda e cheia de presas no lugar dos dentes. Sua língua comprida e gosmenta lambia meu rosto. Lembro-me de fita-la nos olhos com todo o pavor percorrendo o meu corpo naquele momento. Senti minhas pernas morrerem, estava prestes a cair. Ao longe, ouço o latido de Totó...ele aparentemente corre em nossa direção para tomar alguma atitude, me defender, talvez. Mas, já era tarde. Não demorou muito e a criatura me lançou morro abaixo com uma de suas garras enormes. Uma queda de absurdos 80 metros...era o meu fim.
Durante a queda, olhei para o céu uma última vez...nunca havia me deparado com um pôr-do-sol tão lindo quanto aquele.