Pai, Quantas Vezes eu Vi Você
Quantas vezes, sentado naquela calçada, eu vi você passar. Às vezes
estava apressado, às vezes calmo, às vezes parecia nervoso, outras preocupado, alegre, sereno... Suas passadas eram inconfundíveis, ainda longe eu não tinha dúvidas e pensava: “lá vem ele”. Passava por mim e demorava para voltar ou então voltava rápido, portava sacolas ou tinha as mãos vazias, mas a cabeça nunca estava vazia.
Eu sei que você tinha muitas ideias na mente e seu coração era cheio de sentimentos, você pensava nos seus irmãos, na sua mulher e sinceramente os amava. Você também tinha sonhos e metas a alcançar. Eu sei que você andava na rua criando e avaliando seus projetos. Eu sei da sua luta para sobreviver, crescer e ser feliz todos os dias. Mas eu tentava adivinhar suas convicções políticas, suas opiniões sobre os problemas sociais e se dava palpite sobre os assuntos de destaque no dia a dia.
Quantas vezes eu vi você passar e até desejei que olhasse pra mim, que me desse, ao menos, “bom dia”, “boa tarde” ou “boa noite”. Claro que uma conversa seria muito, afinal eu era apenas um mendigo, um vagabundo, um sofredor de rua, um cego à beira do caminho. Eu compreendo que você como os outros desejava não me ver mais por ali, pois uma pessoa em tal situação, jogada na rua causa mal-estar a qualquer um.
Saiba que não tenho mágoas de você no meu coração, e confesso que me sinto feliz por finalmente privar você da minha presença naquela calçada. Se não podia fazer nenhuma diferença na sua vida, também não deveria incomodá-lo, eu sei que é desagradável sentir o cheiro de um ser humano que passa semanas sem tomar banho. Eu sei que a minha tosse irritava os seus ouvidos e que as minhas feridas não são obra de arte que merecem ser expostas; afinal você também tinha os seus problemas. No entanto, agora tento, mas não consigo me livrar da vontade de sentir novamente o seu perfume. Queria ouvir a sua voz e a sua respiração, nem que fosse uma única vez. E quem sabe tocar em você pela primeira e última ocasião. Mas eu sei que não tenho o direito de querer isso, resta-me fechar os olhos e esperar que daqui a pouco a vida será diferente e que eu vou estar com mamãe, que já me espera faz tempo.
Eu sei que daqui a pouco eu vou poder enxergar, falar novamente e, assim, um dia, olhar pra você e dizer: “eu não te odeio, não te culpo por ter me abandonado, afinal eu nunca seria mesmo um bom filho. Quero apenas que saiba que eu te amo, papai”.
Christe, Aberio. Aprendendo a Voar: Histórias fabulosas com mensagens e poemas – São Paulo, Jardim dos Livros, 2014.