Enterrado vivo

O som das pás de terra sendo jogadas por sobre a tampa do meu caixão deveriam ter me desperto e feito urgentemente quebrar o tão funesto invólucro onde o meu corpo estava mas, não, o som ritmado das pás de terra cobrindo o meu túmulo fez minha consciência voltar ao passado.

Passado de muita pobreza e castigo.

Como não prestava para os estudos meu pai que também nunca havia sido afeito à escola colocou-me para ajuda-lo nos seus inúmeros trabalhos braçais, havíamos sido expulsos de uma fazenda, jogados na cidade grande, encarávamos todo tipo de trabalho pesado, portanto não era por nada aquele som me ser tão familiar, era o mesmo barulho de quando jogávamos as pás de terra solta por sobre o carrinho de mão.

Tentei divisar as vozes do outro lado da tampa do esquife, mas elas iam ficando cada vez mais difusas e distantes.

Uma das poucas coisas que me lembro de ter aprendido na escola, era como funciona a nossa respiração; absorvemos oxigênio e liberamos em contrapartida gás carbônico, mas esse tipo de conhecimento me era inútil ali, do que valia saber que o meu oxigênio estava acabando? Isto só servia para me aterrorizar ainda mais ante a perspectiva que se avizinhava.

Por mais que eu tentasse, nem uma lembrança recente vinha ao meu cérebro, parecia com a minha tia velha que há muito havia morrido, cuja mente definhara-se de tal modo que todas as informações do presente foram substituídas pelas de um passado muito distante.

Agora eu preciso lembrar de como eu fui parar ali, preciso remontar esse quebra-cabeças antes que seja tarde.

Mas na minha cabeça só vinha recordações de uma época em que eu era feliz, talvez a minha mente estivesse projetando essas imagens justamente para compensar as agruras em que eu estava metido.

“Das vezes que íamos caçar passarinhos no mato, montar arapuca, perseguir rastro de Teiú no meio da caatinga mesmo com um medo danado de encontrar uma onça”.

“Brincar no calor do meio-dia nas poças d’água que eram formadas em meio aos lagedões depois das chuvas de inverno”.

“Subir até a parte mais alta dos pés de manga e ficar lá tardes inteiras, não descendo nem pra cagar, aliás, fazendo lá de cima mesmo, caramba... como isso era bom”.

“Eu vendo in loco meu pai capando porco, e o bichinho urrando de dor, que aflição que dava”.

"Minha mãe jogando pedra no ‘Paçoca’, nosso cachorro, pra ele voltar de novo pra fazenda, de onde fomos botados pra correr.”

A cada momento uma imagem se formava, não detinha mais controle, já havia chegado um momento que eu não sabia mais se aquilo de fato tinha acontecido, ou era um lembrança que alguém compartilhara comigo.

“Eu e meus irmãos, encontramos um ninho de passarinhos, três filhotinhos de rolinha Fogo-apagou, retiramos o ninho pra ver melhor, mas quando fomos colocar de volta, o ninho foi se esfacelando todo, como era um terreno arenoso, improvisamos um ninho de areia ao pé da árvore e colocamos os três lá dentro.Quando voltamos pra casa da fazenda o céu despencou, um mundaréu d’água.Noutro dia, cedinho voltei direto pra lá, mas nada, nem sinal dos filhotinhos.”

Vou acabar morrendo aqui, junto com as minhas lembranças, sinto que meu peito me oprime e não tenho mais forças alguma, como se alguém tivesse me dado um monte de pinga.

“Eu tinha muito medo que os mortos fossem me visitar de noite, ainda mais naquele fazendão perdido naquelas terras dos sem fim, por isso me cobria dos pés a cabeça, depois esticava a coberta com a ponta dos pés, eu ia respirando e o ar ficava cada vez mais pesado, no final era obrigado mesmo tiritando de medo erguer o cobertor pra tomar um pouco de ar frio, um dia acabei resolvendo o problema vazei o cobertor de algodão com o dedo e ficou um buraco na altura do rosto.”

“Um dia que minha mãe foi num cartório na cidade vizinha registrar os meus dois irmãozinhos, aconteceu um fato no meio da noite, um barulho que me assustou um tanto, fingi que dormia, ressonei até, mas a curiosidade era maior, debaixo da coberta olhei para o buraco que havia improvisado e vi na cama onde dormia os meus pais a Dona Sebastiana mulher do patrão Nhô Dantas,deitada de costas à beira da cama com os pés no chão e as saias erguidas até a cintura, ouvi quando ela deu um gemido quase suspirando quando o meu pai enfiou as suas mãos por debaixo e retirou de um só golpe a sua calçola, meu coração saltitava, quase saía pela boca, senti um ódio pelo meu pai, não imaginava que ele enganava assim a minha mãe, mas o mesmo tempo queria ficar ali quietinho, uma curiosidade malsã de saber como os adultos faziam suas safadezas. Ouvi ainda meu pai dizer baixinho com uma das mãos entre suas coxas:

-Deixa eu ver se tá do jeito que eu deixei.

A vida na cidade longe da roça foi difícil demais e minha mãe nunca entendeu a razão de termos sido expulsos e eu nunca tive coragem de contar nada, não queria meus pais separados, doía muito viver aquela vida.

Tento voltar à minha infância pra debaixo daquele cobertor, tento achar o buraco que havia feito, mas nada encontro, tateio o tempo todo, uma escuridão terrível, o ar cada vez mais denso, tento de todas as formas sair de debaixo daquelas cobertas, pouco tempo me resta, o que tiver do lado de fora não temerei, sou homem agora, nada me deterá, tento socá-lo, mas aquele cobertor em cima de mim me sufoca, sinto uma mão por sobre o cobertor tampando minha boca, empurrando minha cabeça, não consigo respirar, tudo vai ficando vago, uma escuridão terrível é o fim.

NÁSSER AVLIS
Enviado por NÁSSER AVLIS em 27/07/2018
Reeditado em 28/07/2018
Código do texto: T6402283
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.