A Conversão
Tudo começou com os ladrares insistentes e ininterruptos de um cão. Emílio, que já havia alimentado o animal e colocado-o para fora de casa, precisava descansar para o culto que ministraria na manhã seguinte. Era quase duas da manhã quando ele levantou-se, a pedido de sua preocupada mulher, para ver o que acometia e incitava os latidos do canídeo de estimação da família.
Desceu as escadas de casa irritado, sonolento, a munir-se de um taco de beisebol presenteado por um fiel da igreja pentecostal à qual era o líder religioso. Acendeu todas as luzes, a escutar os ainda insistentes latidos do cão, e dirigiu-se à porta dos fundos. Ao abri-la, sentiu-se enojado com o forte cheiro de uma substância que a princípio não sabia ele que era enxofre.
Fitou o cão completamente catártico, a ladrar com ímpeto a uma figura acuada, aos prantos, que exalava o insuportável cheiro de enxofre. Apesar do horror ao qual sentiu-se acometido, analisou o buraco formado em seu jardim e perscrutou minuciosamente aquele hominídeo, de pele felpuda e tez cornalina. O que mais espantava Emílio, apesar de fitar os cornos protuberantes e pontiagudos da figura, era que este estava aos prantos.
Num ímpeto de coragem, Emílio pigarreou – a não ter reação de chamar a polícia ou fazer qualquer outra coisa, pois sentir-se-ia mal por aquela aparente inofensiva criatura – e por fim pôs-se a falar:
– Quem é você? – inquiriu, mas ao não receber uma resposta imediata, endureceu o tom de voz. – Como veio parar aqui? Vá embora ou eu ligo à polícia!
A criatura levantou a cabeça, a revelar olhos escarlates, tenebrosos, mas úmidos de lágrimas. Estava a chorar copiosamente sobre aquele jardim de flores mortas, folhas secas e galhos quebradiços. Vislumbrou a assustada figura de Emílio, ainda inerte, impotente, sob um quinhão de dúvidas que trespassava sua face em direção a si. Ao recompor-se, começou a exprimir-se:
– Perdoa-me, nobre – começou, com uma voz rouca, diabólica, mas com suavidade na pronúncia -, sou o próprio Diabo, como pode ver. Ou Lúcifer, para os mais íntimos. O tinhoso para a maioria das pessoas, cristãs em sua boa parte, que desprezam tal criatura, feita também sob a imagem e semelhança do Criador de todas as coisas, a tratar-me como a mais desprezível das criaturas existentes. Sou eu quem debocho, ou melhor, corrijo-me: debochava, ao ouvi-lo, Emílio, em suas pregações.
Emílio sentiu um certo arrepio n’alma ao ouvir seu nome mencionado pelo Diabo. O próprio capiroto, alvo de tantos ataques e tantos maus adjetivos, ali estava prostrado no seu jardim, aos prantos, explicando-se.
– Ademais, em uma das prédicas, pus-me a ouvir o que disseste sobre a leitura do Livro. Fi-lo e apesar dos ataques todos à minha pessoa, sem direito a réplicas e tudo o mais, percebi o quanto a minha vida poderia mudar. Pela primeira vez em séculos de existência, senti-me atraído pelo Sagrado…
Até o cão se havia silenciado: incomodado com o odor da satânica figura, retirou-se à sua casinha sem mais barulhos para atormentar a vizinhança. A noite estava calma, havia um vento frio, silvante. Por conta disso, Emílio pediu-o para que entrasse e se acomodasse. Apesar de ser um líder cristão, pastor evangélico fervoroso que era, sentiu-se compadecido com os relatos do Capeta.
Deu-lho uma toalha e lhe pediu para que tomasse um demorado banho. Enquanto isso, acordaria e relataria à esposa o que estava a se passar ali.
– Um demônio em nossa casa? – disse ela, a saltar da cama, com os olhos arregalados.
– Sim, meu amor, mas compreenda… – tentou ele ponderar.
– Você está dizendo que o Pai da Mentira está a tomar banho em nossas habitações e me está pedindo para compreender? Você acha que é o quê? Um conto de Gógol? Acorda para a vida, Emílio – alterou-se ela.
Emílio estava preocupado se o Diabo ouvisse o que estava a dizer a mulher. Tentava acalmá-la, fazê-la falar o mais baixo possível, mas ela não parecia disposta a parar de falar alto. Explicou-a toda a situação e concluiu:
– Beatriz, pense o seguinte: imagine amanhã de manhã, na hora do culto, quando os fiéis estiverem na adstringência da fé, isto é, asseados todos com a presença do Espírito Santo na igreja quando, de repente, o pastor anuncia que alguém dará seu testemunho. Esse alguém que durante muito tempo pôs a humanidade em conflitos, em guerras. Maridos contra esposas, países contra países, pais contra filhos. O arquiteto da corrupção, da destruição, do caos terreno, das pragas, de todos os males que se nos acometem… Imagine, eis que o pastor Emílio anuncia que, diretamente do quinto dos Infernos, o Diabo vem dar seu testemunho e vem anunciar sua conversão em nossa igreja! Pense bem, depois da catarse, os dízimos. Amanhã há de chover dinheiro!
Os olhos de Beatriz brilharam. Até comida e repouso ofereceram ao Diabo. O pastor, em determinado momento, a perceber a brecha iniciada pela esposa, inquiriu ao tinhoso se ele pudesse dar seu testemunho e participar do encontro ecumênico na manhã seguinte.
– Certamente, meu amigo – replicou o Diabo, a limpar a boca. – Ademais, esta sopa está excepcional.
A esperada manhã chegou. A igreja estava abarrotada de gente e, para surpresa do público, o pastor havia adentrado pelas portas do fundo. Ouvia-se gente dizendo que o líder da igreja havia levado algum jogador de futebol, político ou alguém famoso. O burburinho ia aumentando e mais pessoas – que não eram tão assíduos à fé – iam chegando e preenchendo as cadeiras da igreja. Beatriz estava bastante alegre, disposta, a abraçar cada pessoa que adentrava os umbrais daquela congregação.
O culto que geralmente começava às sete e meia, fora iniciado às nove e trinta e sete daquele domingo ensolarado. O pastor começou o culto, pediu aos fiéis para que lessem algumas passagens do Novo Testamento – a quem estivesse munido o livro – e, em seguida, começou a anunciar o primeiro testemunho da manhã.
Depois de vários relatos, fez Emílio um discurso tocante, a deixar cada ouvinte boquiaberto, com os olhos umedecidos, como se estivesse recebendo uma unção. Por fim, anunciou o Diabo – que subira ao altar completamente tímido, assustadiço, com frio na barriga. Respirava forte, a demonstrar-se bastante preocupado.
Sob vaias e xingamentos, começou seu discurso bastante emocionado. Várias pessoas começaram a se levantar e ir. Outras, mais tolerantes à presença de quem ia, no passado, contra os princípios cristãos, queriam ouvi-lo para poderem, a posteriori, em jantares de família, dar sua opinião.
A presença do Diabo naquela igreja na periferia de São Paulo causou um rebuliço: vídeos na internet começaram a circular. Logo, a imprensa brasileira em peso acampara em frente à casa do pastor onde se hospedara o Diabo.
– Ele não quer dar entrevista – dizia Emílio, a tentar ultrapassar os jornalistas e cinegrafistas todos.
Nunca noticiou-se tanto sobre uma única figura. Houve um concílio ecumênico entre pastores, padres, rabinos, entre outros, para que discutissem a vinda dessa malquista criatura às terras tupiniquins. O Vaticano emitiu uma nota a alegar que mandaria padres exorcistas ao Brasil para uma charla com o demônio. Ademais, ponderou que recusaria aceitar desprezível figura na Santa Igreja – mesmo a estar convertida.
Atos de terrorismo, vandalismo, roubos, intolerância e tudo o mais começaram a acontecer em massa após a chegada do Diabo.
– Eu não tenho nada com isso – disse ele, a assistir à telenovela. – Não presido mais o Inferno.
Um sistema de seguranças teve de acercar a casa do pastor, pois os antigos fiéis agora queriam a cabeça não só do Diabo, mas também de Emílio. Este desesperara-se.
– Acalme-se, Emílio – redarguiu certa feita o Diabo -, estes certamente encontrar-se-ão com meus subalternos.
– Não posso mais, Satanás – choramingou o pastor. – Eu te acobertei, te acolhi, te iniciei na fé cristã, mas não aguento mais! Estão todos contra nós! As pessoas são mesmo intolerantes, mesmo a se dizerem cristãs. Falam tanto em perdão, que todos somos iguais e semelhantes, que para Deus ninguém é mais ou menos que ninguém, e tratam-nos desta forma. Suplico-te: volte ao Inferno! É melhor que esta merda toda aqui…
– Eu não posso, pastor – disse o Diabo. – Não conseguirei nunca voltar aos Céus!
– Os Céus devem ser lotados de gente, com filas e tudo o mais – disse o pastor. – Imagine a quantidade de gente que se arrependeu de todas as barbaridades e atrocidades feitas em terra antes de morrer… Hoje moram no Paraíso e devem estar transformando-o em um lugar como este.
– É verdade – pensou bem o tinhoso. – Se na época em que rebelei-me e desci já era meio caótico, agora deve ser pior. Diziam meus subalternos que Marquês de Sade e Safo de Lesbos começaram a dar festas bacantes sem a permissão do Divino…
Pôs-se a rir e percebeu que a maldade ainda residia em seu coração. Cogitou que poderia ter-se equivocado. Ter sido sim tocado pelas palavras bíblicas, mas que estas não lhe foram suficientes para mudar-lhe a essência.
Agradeceu muito a Emílio e Beatriz pela hospedagem, a assegurar-lhe que, se quisessem, havia-lhes lugares e cargos disponíveis nas repartições do Inferno, e retirou-se pelas portas dos fundos, a volver pelo buraco ao qual havia feito para subir, e tornou a sentar em sua poltrona.
Mesmo durante o período cristão do Diabo, a humanidade continuou a cometer atrocidades. Muitos fiéis de Emílio, a maioria intolerante que esbravejara com a presença do Capeta, tornaram a se encontrar com o Pai da Mentira.