Última Aurora



O céu vermelho-azulado assemelhava-se ao crepúsculo da última hora e à aurora do  último dia. Pássaros voavam sobre sua cabeça. Algumas espécies conhecidas. Outras, nunca vistas na Terra. Robert   passou a mão em seu  corpo machucado. Não sangrava, não doía...
 Cenas do juízo particular desfilaram em sua mente: “Viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia: ‘Vai e toma o pequeno livro aberto da mão do anjo que está sobre o mar e profetiza de novo a numerosas nações, povos, línguas e reis.' Sua missão ainda não terminou. Volte!”
 Olhou para baixo e viu traficantes disparem saraivada de tiros contra pessoas que bebiam numa barraca de esquina na rua Ceará em Vila Mimosa. A polícia conta os mortos: sete. Sete mortos... Alguns  sem documentos foram reconhecidos por prostitutas como sendo: Adail, o caburé. Turíbio Soberbo, e Capistrano. Também o coronel Hostilio Habran estava morto.
Caburé fugia da perseguição de  um ajo torto, que queria arrastá-lo para as profundezas do abismo. Mas, um homem que se identificou como sendo Juan, pegou-o pelo braço e o levou a uma mulher, com feições indígenas.
— Virgem de Guadalupe, este é teu filho, disse Juan.
—  A Mulher colocou seu manto sobre a cabeça de Adail, e quando ele despertou, ouviu o som de música celestial. Anjos enfileirados formavam o corredor de entrada, e em coro, entoavam cânticos de louvor.
A porta era  estreita, e ao lado dela, um ancião controlava o acesso, girando uma chave, ora para a esquerda, ora para a direita, de modo a abrir a porta ou fechá-la conforme o sentido que girava a chave. 
O homem grisalho perguntou:
—Quem é você?
— Caburé.
—Diga seu nome de batismo.
— Adail.
— E este outro?
— Davi.
 — Entrem. Disse São Pedro. 
Abriu-se o templo de Deus. 
 Davi viu muitos fiéis de sua igreja, alunos  e professores do Marista, todos sentados em torno de  uma enorme  mesa, como se estivessem numa reunião do Conselho de Classe. Ao redor havia vinte e quatro tronos, e neles, sentados, vinte e quatro Anciãos vestidos de vestes brancas e com coroas de ouro na cabeça.
Três homens aproximaram-se. Eles tinham as mesma feições, o mesmo rosto,  e falaram numa só voz: ‘Suba.’
 Subiu. 
Passou por um corredor estreito que dava acesso a uma grande sala onde a assembleia dos justos participava de uma ceia. A mesa assemelhava-se ao altar do grande sacrifício e dela saia um feixe de luz que iluminava toda a Terra. Depois disso, viu uma grande multidão que ninguém podia contar, de toda nação, tribo, povo e língua: conservavam-se de pé diante do trono e diante do Cordeiro, de vestes brancas e palmas na mão.
O céu fez silêncio de meia hora e em seguida, ouviu-se um coro de anjos que dizia:  ‘Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do universo. Os céus e a terra proclama vossa glória. Hosana nas alturas’.
A brisa celeste soprava levemente seus cabelos. Sem dor  e sem medo, pensou as feridas da alma, marcadas pela unha dos tatus que trocara na mercearia por uma dose de cachaça. Atento, Adail  ouvia o padre Davi explicar: Deus abençoou Noé e seus filhos com estas palavras: ‘Vós sereis objeto de temor e de espanto para todo animal da terra’. — O padre fez uma pausa, depois continuou —  toda ave do céu, tudo o que se arrasta sobre o solo e todos os peixes do mar: eles vos são entregues nas mãos. — Acenou ao padre Vitor Augusto que passava num carro de fogo, puxada por dois cavalos, também de fogo — e outra vez, Davi retomou a Palavra — Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento...’ 
‘Tudo o que se move e vive nos servirá de alimento’.Adail repetia em sua mente,  e se sentia redimindo da ‘culpa’ de ter abatido muitos tatus.— Não pequei — disse em voz alta — Não cometi pecado por caçar tatu. E não permitiu também que sua consciência o acusasse de beber cachaça e não pagar a conta. Estivera no purgatório, e só saiu de lá, depois de pagar o último centavo. Só não compreendeu, no entanto, por que na lei dos homens é crime matar animal selvagem, mas é permitido sacrificar uma criança no ventre da mãe.
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.

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